Por Ricardo Westin
Estudiosos da desigualdade racial afirmam que, para que a luta contra a discriminação da população negra produza resultados consistentes, há um passo decisivo que nós, brasileiros, ainda não demos: assumir que somos, sim, racistas — seja como indivíduos, seja como sociedade.
De acordo com o filósofo e jurista Silvio Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama (ONG que atua pela igualdade racial) e professor da Universidade Mackenzie e da Fundação Getulio Vargas, quando se admite a existência do racismo, cria-se automaticamente a obrigação moral de agir contra ele:
— A negação é essencial para a continuidade do racismo. Ele só consegue funcionar e se reproduzir sem embaraço quando é negado, naturalizado, incorporado ao nosso cotidiano como algo normal. Não sendo o racismo reconhecido, é como se o problema não existisse e nenhuma mudança fosse necessária. A tomada de consciência, portanto, é um ponto de partida fundamental.
Como exemplo da negação, o advogado e sociólogo José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares e diretor da Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sociocultural (Afrobrás), cita um comportamento contraditório à primeira vista: a inflamada indignação demonstrada pelos brasileiros nas redes sociais e até em protestos de rua, seguindo uma onda antirracista mundial, em reação ao assassinato do segurança americano negro George Floyd, asfixiado por um policial branco em Minneapolis em maio.
A indignação parece contraditória porque os brasileiros quase diariamente veem na televisão e no jornal crimes praticados no seu próprio entorno tão racistas e cruéis quanto o ocorrido nos Estados Unidos, mas nem de longe reagem com a mesma comoção — se é que chegam a reagir.
— Os brasileiros entendem que é lá fora que existe ódio racial, não aqui. Acreditam que no Brasil vivemos numa democracia racial, miscigenados, felizes e sem conflito. Essa é a perversidade do nosso racismo. Ele foi construído de uma forma tão habilidosa que os brasileiros chegam ao ponto de não quererem ou não conseguirem enxergar a realidade gritante que está bem diante dos seus olhos.
O racismo ontem e hoje: anúncio de emprego para cozinheira em São Paulo em 1924 e para cuidadora de idosos em Belo Horizonte em 2019 (imagens: Biblioteca Nacional Digital e reprodução)
Para mostrar que o combate efetivo ao racismo depende do fim da negação, o advogado Humberto Adami, que preside a Comissão da Verdade da Escravidão Negra, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), também recorre ao crime racial nos Estados Unidos. Adami lembra que, no Brasil, os canais de notícias deram um grande espaço para o assassinato de Floyd e escalaram seus jornalistas mais renomados para fazer a análise em programas de debate — todos jornalistas brancos.
— Os telespectadores mais atentos à questão racial reagiram na hora. Foi só então que os canais se deram conta do absurdo da situação e, para se retratarem, chamaram jornalistas negros para o debate sobre o racismo. Os indivíduos e as instituições costumam ter a mais absoluta convicção de que não são racistas, mas as atitudes acabam revelando o contrário. Se uma sociedade é racista, também a sua mídia, a sua universidade, a sua polícia, os seus tribunais etc. vão ser racistas. Esse episódio dos canais de TV mostra o quanto os negros ficam em desvantagem quando a negação prevalece e como tudo muda quando tomamos consciência de que somos racistas.
O senso comum tende a compreender o racismo de maneira simplista, limitando-o àquelas situações em que uma pessoa negra é proibida de entrar no clube, impedida de tomar o elevador social, revistada ao sair da loja ou insultada com palavras pejorativas que remetem à cor da pele. Tais casos, claro, configuram racismo e são passíveis de punição, mas o preconceito vai muito além disso.
O racismo também se manifesta de formas que podem ser menos gritantes, mas produzir efeitos mais devastadores na vida da pessoa negra. Os números do quadro abaixo são ilustrativos. Em qualquer aspecto da vida que se considere, os pretos e os pardos (grupos que o IBGE classifica como negros) estão sempre em franca desvantagem na comparação com os brancos.
No Brasil, ser negro significa ser mais pobre do que o branco, ter menos escolaridade, receber salário menor, ser mais rejeitado pelo mercado de trabalho, ter menos oportunidades de ascensão profissional e social, dificilmente chegar à cúpula do poder público e aos postos de comando da iniciativa privada, estar entre os principais ocupantes dos subempregos, ter menos acesso aos serviços de saúde, ser vítima preferencial da violência urbana, ter mais chances de ir para a prisão, morrer mais cedo.
Quando a negação prevalece, essa realidade é interpretada como decorrência natural e inevitável das desigualdades sociais do Brasil e não se consegue enxergar que a verdadeira causa é o racismo. É por isso que os negacionistas rechaçam políticas de cunho racial como a demarcação de terras quilombolas e a criação de cotas nas universidades e nos concursos públicos.
De acordo com estudiosos da questão, as bases do racismo brasileiro se assentam nos quase quatro séculos em que a escravidão africana vigorou. No decorrer dos períodos colonial e imperial, foi a escravidão que se encarregou de posicionar os negros e os brancos em mundos diferentes. Com a assinatura da Lei Áurea, em 1888, os brancos criaram mecanismos menos explícitos do que as senzalas e os grilhões para manter os negros num lugar de subordinação.
As pessoas de pele negra puderam deixar a servidão, mas não receberam os instrumentos necessários para tocarem a vida por conta própria com dignidade. Eles não ganharam terra nem escola, apesar de parlamentares terem apresentado projetos de lei nesse sentido. Tampouco prosperaram os planos de indenizá-los pelos anos de cativeiro. Restringiram-lhes até mesmo o trabalho. Para as plantações de café e as primeiras indústrias, o governo preferiu incentivar a imigração de trabalhadores da Europa e da Ásia.
O professor Silvio Almeida diz que, da escravidão ao formato atual, o racismo foi se metamorfoseando no correr no tempo, hábil em adaptar-se às mudanças da sociedade:
— No começo do século 20, por exemplo, estava em voga o racismo científico. No meio acadêmico, havia a ideia de que era o elemento negro que produzia a desordem e as crises que o Brasil vivia na Primeira República. O racismo científico, assim, legitimou o uso da violência contra essa população. Ao mesmo tempo, acreditava-se que a miscigenação seria benéfica para o país porque, nessa mistura, o sangue branco forte prevaleceria sobre o sangue negro fraco e haveria o branqueamento da população. Aquele grupo desestabilizador acabaria sendo eliminado. Sendo mais direto: eugenia. Na década de 1930, o discurso que passou a vigorar foi a da democracia racial. O Brasil seria um país plural, com o branco, o negro e o indígena convivendo em harmonia, todos importantes, desde que cada raça ficasse no seu lugar. Já não se pensava mais em eliminar o negro, mas sim em absorvê-lo e mantê-lo numa posição subalterna.
Na visão do reitor José Vicente, o racismo hoje se apresenta “desfigurado, multifacetado e extremamente escorregadio”:
— A casa grande e a senzala continuam existindo, só que agora com uma tintura de modernidade. O racismo foi sofrendo mutações e se aprimorando ao ponto de ter ganhado uma sutileza que faz com que muitas vezes só seja detectado no detalhe. Veja a lei de 2003 que tornou obrigatório o ensino da história da África e da cultura negra nas escolas. É um conteúdo importante e necessário, acima de tudo porque 55% da população brasileira é negra. Mesmo assim, apenas uma parte pequena das escolas obedece a lei. Os diretores e os professores vão encontrar mil argumentos para justificar o descumprimento e dizer que isso não tem nada a ver com o racismo. Muitos são racistas por ignorância, desconhecimento, mas outros tantos são racistas de forma esclarecida, consciente.
O que vigora no Brasil é o que os estudiosos chamam de racismo estrutural. O racismo é estrutural porque se apresenta como um alicerce em cima do qual se constroem as relações políticas, econômicas e sociais no país. As pessoas e as instituições são moldadas, por vezes de forma inconsciente, para encarar como normal que brancos e negros ocupem lugares diferentes.
A advogada Flávia Pinto Ribeiro, que é vice-presidente da Comissão OAB Mulher da seccional Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, exemplifica:
— As pessoas são racistas quando não ficam espantadas ou indignadas diante da notícia do assassinato de uma pessoa negra, diante da ausência de negros nos governos, nos tribunais e na direção de empresas, diante de um Estado que oferece transporte de qualidade, saneamento básico e segurança pública aos bairros ricos, mas nada disso às periferias, habitadas majoritariamente por negros. O racismo estrutural é tão cruel que até mesmo pessoas negras reproduzem o racismo.
Ela diz que, para as mulheres negras, a situação é pior:
— Assim como o racismo, no Brasil também o machismo é estrutural. As negras, por isso, são duplamente discriminadas, vistas tanto como objetos, por causa do machismo, quanto como sub-humanas, por causa do racismo. Se aos homens negros já é dado pouco espaço na sociedade, às mulheres negras é dado menos ainda.
O conceito de racismo estrutural mostra que o que existe é um movimento da sociedade como um todo para tirar da população negra e dar à população branca. Dessa forma, mas sem ignorar as responsabilidades pessoais, ações pontuais de racismo se apresentam como manifestações em menor escala de um comportamento que é mais amplo e coletivo.
— Sabe quantas pessoas estão presas hoje no Brasil por terem cometido atos de racismo? — pergunta o advogado Humberto Adami. — Nenhuma. Esse é mais um sinal do nosso racismo estrutural. Temos leis que preveem punições para os crimes de racismo e injúria racial, mas elas não são aplicadas. E não são aplicadas porque simplesmente não há a demanda por parte da sociedade.
— Ser negro no Brasil é ter a convicção de que você vai receber do mundo um tratamento diferenciado — afirma o reitor José Vicente. — Os direitos mais comezinhos não vão lhe ser disponibilizados na sua inteireza, e você sempre vai ter que exigi-los com mais intensidade e até brigar por eles. Nem mesmo o direito de ir e vir pode ser usufruído de forma serena. Toda vez que o filho negro sai de casa para ir à escola ou ao cinema, o pai negro precisa lembrá-lo das estratégias de sobrevivência: não usar gorro ou boné, manter a roupa alinhada, levar o documento de identidade e até a carteira de trabalho, baixar a cabeça e levantar as mãos se for abordado pela polícia. O filho branco, ao contrário, pode usar a roupa toda rasgada e ter a certeza de que não vai ser importunado. Ser negro significa estar num processo de embate permanente nos ambientes públicos e até nos privados.
O senador Paulo Paim (PT-RS), que foi vice-presidente da CPI do Assassinato de Jovens Negros e redigiu o projeto de lei que deu origem ao Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288, de 2010), diz que, sendo o racismo estrutural, não existe negro no Brasil que escape da discriminação:
— Eu, como todo negro, posso citar uma dezena de situações de racismo que vivi. Se uma pessoa de pele negra, independentemente da posição social, disser que jamais viveu um episódio de discriminação na vida é porque se trata de uma ferida tão profunda que ela prefere silenciar para não voltar a sentir a dor.
Segundo os especialistas, as pessoas racistas devem, sim, ser punidas. No entanto, mais eficaz do que apenas combater os crimes individuais é derrubar as estruturas da sociedade que criam o racismo e as pessoas racistas.
— Uma das medidas necessárias para enfraquecer o racismo é enegrecer todas as nossas instituições, que hoje são brancas, permitindo a entrada do negro nos governos, nos tribunais, nos postos de comando das empresas, das escolas, das universidades. As cotas raciais ajudam nesse caminho. O enegrecimento das instituições é importante porque muda a imagem cristalizada de que o negro é sub-humano e não tem capacidade para ocupar todos os espaços da sociedade — afirma a advogada Flávia Pinto Ribeiro.
— É preciso retirar essa lente que faz as pessoas enxergarem a desigualdade e o racismo como naturais — concorda o professor Silvio Almeida. — Isso exige que se mude a educação, a escola, para criar na mente e no coração dos indivíduos o desejo de igualdade, diversidade e integração. Isso também exige que se mude a abordagem dos meios de comunicação, desde as novelas até os jornais. Quando os programas entrevistam as pessoas negras só no dia 13 de maio [aniversário da Lei Áurea] ou no dia 20 de novembro [Dia da Consciência Negra] ou então para que apenas contem suas tragédias pessoais, eles estão reforçando a produção de um imaginário que cola o negro diretamente ao seu pertencimento racial. Sem essa lente, as pessoas mudam seus próprios comportamentos e também induzem mudanças na política, na economia, no direito, na cultura.
Segundo ele, não é uma transformação fácil de ser feita, já que o racismo garante aos brancos uma posição privilegiada na sociedade. Mas há argumentos para convencê-los a se engajar nessa mudança e abrir mão de benefícios que historicamente as engrenagens racistas da sociedade lhes garantem. Almeida diz:
— Não é possível haver democracia numa sociedade racista. A sociedade racista é sistemicamente autoritária, porque precisa se utilizar da força para rejeitar as reivindicações justas da maioria e atender à minoria. Manter a desigualdade, a pobreza e a baixa representatividade política exige violência sistêmica, que depois acabará sendo aproveitada também contra os brancos. Além disso, se a maioria da sociedade é pobre, violentada e humilhada o tempo todo, essa sociedade não pode ser saudável. É um lugar péssimo para qualquer pessoa viver, inclusive os brancos. O engajamento na luta antirracista significa compromisso com a democracia, o bom desenvolvimento econômico e a humanidade.
Reportagem: Ricardo Westin
Pauta, coordenação e edição: Nelson Oliveira
Coordenação e edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Infografia: Cláudio Portella
Pesquisa fotográfica: Ana Volpe
Foto de capa: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Entrevista com Paulo Paim realizada com apoio da TV Senado
Fonte: Agência Senado
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