Selic Disparatada: Substituta da Correção Monetária
por Fernando Nogueira da Costa
A urbanização foi decisiva para o desenvolvimento nacional. O chamado “setor terciário”, envolvendo múltiplos serviços urbanos, sempre propiciou maior valor adicionado, segundo o Sistema de Contas Nacionais, e ocupações, segundo a PNADC-IBGE. Serviços geraram 67,4% do valor adicionado em 2023.
Segundo a PNADC-2T24, comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas ocupavam 19,266 milhões pessoas, transporte, armazenagem e correio 5,738 milhões, alojamento e alimentação 5,516 milhões, informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas 12,923 milhões, administração pública, defesa, seguridade social, educação, saúde humana e serviços sociais 18,573 milhões, outros serviços 5,556 milhões, serviços domésticos 5,883 milhões. Logo, o setor terciário ocupava 73,5 milhões diante de 8 milhões na agropecuária, 12,9 milhões na indústria geral e 7,5 milhões na construção. Na população ocupada (101,8 milhões), 70% eram nesse setor.
Diretamente, a “terceirização” da economia brasileira propicia o maior meio de ocupação da enorme população brasileira. Esses “serviços” latu sensu geram o fluxo de renda para a maior parte das pessoas físicas. Elas necessitam planejar sua vida financeira com o objetivo de investir parte desse fluxo e o acumular em estoque de riqueza, ao longo dos anos, até sua fase de vida inativa.
Para o bem-estar social, é fundamental a proteção do valor do capital financeiro de cada cidadão com acesso a bancos. No passado, a correção monetária permitiu ao sistema financeiro nacional manter o valor real dos ativos (formas de manutenção de riqueza), mesmo em períodos de inflação alta. Hoje, a disparatada taxa de juro real cumpre esse papel em renda fixa segura com juros compostos.
Quando as pessoas e as empresas passaram a manter seus recursos dentro do sistema bancário, contribuíram para a acumulação de capital necessário ao investimento no país. Além disso, a correção monetária aplicava-se também a títulos emitidos pelo governo, permitindo-o financiar déficits com a venda de títulos indexados, ajudando a evitar uma crise de liquidez.
A indexação dos ativos estimulou o desenvolvimento do mercado financeiro, pois as instituições precisavam criar e oferecer novos produtos e serviços para captar recursos, como títulos de dívida pública indexados (ORTN, LFT, NTN), depósitos bancários com correção monetária e fundos de investimento atrelados à inflação. Isso incentivou a criação de produtos mais complexos e diversificados, como hedge cambial, quando se adotou o regime de câmbio flexível, fortalecendo o sistema financeiro brasileiro e criando as bases para o atual mercado de capitais e de crédito.
A correção monetária também teve um impacto positivo no desenvolvimento da tecnologia bancária. A necessidade de ajustes constantes nas contas bancárias e nos contratos financeiros, devido à inflação, forçou os bancos a investirem em tecnologias capazes de processar grandes volumes de dados e cálculos de atualização monetária com precisão online no vasto território nacional. Isso impulsionou a informatização e a modernização do sistema de pagamentos, criando uma infraestrutura financeira muito ágil.
Mesmo em um ambiente de inflação alta, a correção monetária ajudou a manter uma certa estabilidade na acumulação da riqueza financeira. Com as aplicações financeiras protegidas da desvalorização da moeda, o sistema bancário continuou a captar recursos, evitando um colapso financeiro e possibilitando a intermediação bancária. Essa resiliência foi crucial para o funcionamento da economia brasileira durante o regime de alta inflação de 1974 a 1994.
Embora a correção monetária tenha trazido benefícios importantes, como a preservação do valor dos ativos e a estabilidade do sistema financeiro, também teve alguns efeitos negativos. Um dos principais efeitos colaterais foi a criação de uma inércia inflacionária.
Como muitos contratos e preços estavam indexados à inflação passada, a correção monetária acabou perpetuando a inflação. Mesmo quando a inflação dava sinais de desaceleração, a indexação garantia os preços e salários continuarem a subir, mantendo a inflação em um patamar elevado. A memória inflacionária criou essa tradição de reposição anual da perda de poder aquisitivo nos salários e nas tarifas, repassados gradualmente aos preços.
Até a bancarização massiva propiciar cidadania financeira a todos com esse pleito, após 2003, a correção monetária beneficiava de forma desproporcional os detentores de ativos financeiros. Contribuiu para a concentração de riqueza em favor de quem tinha mais recursos para investir em ativos indexados e proteger seu capital da inflação, enquanto os trabalhadores das classes mais pobres sofriam com a perda do poder de compra dos salários.
Em princípio, a correção monetária seria desnecessária, caso a inflação fosse controlada. Contudo, o seu legado, em termos de avanços tecnológicos e de desenvolvimento do mercado financeiro, continua a beneficiar todos os clientes do sistema bancário brasileiro, caso possuam educação financeira para com a gestão de seu dinheiro se beneficiar de um dos maiores juros reais do mundo. A Selic disparatada substituiu a correção monetária!
Este é o dilema: os enriquecidos adotaram esse “modus vivendi” do rentismo complementar à renda do trabalho, no caso do Varejo de Alta Renda, e sem ser necessária essa renda, no caso do Private Banking. Dívida pública é feita para rolar (não para ser paga) e, parte com ela, parte com arrecadação fiscal, o governo faz gasto social – e paga elevadíssimo juro sobre ela.
O Banco Central do Brasil justificaria essa disparidade para evitar fuga de capital ou dolarização como na Argentina. Esse arranjo, sob lobby dos “Faria Limers” na imprensa neoliberal, provoca a estagdesigualdade na economia brasileira. Crescer 3% aa criaria “pressão de demanda inflacionária” para esses lobistas! Credo!
É estéril (ou inócua) a denúncia da desigualdade da riqueza no sistema capitalista. Hoje, “os empreendedores da periferia”, seja organizados pelo crime, seja com pertencimento à Teologia da Prosperidade, aceitam a regra do jogo capitalista e desejam mais livre-iniciativa e menos governo ou tributo.
Estudo de Pedro Fandiño, Celia Kerstenetzky e Tais Simões, do IE -UFRJ, concluiu o esperado: apesar das mudanças profundas pela qual passou o Brasil, desde o século XVII, o tamanho da desigualdade de riqueza no país ficou praticamente estável nos últimos séculos. A elevada desigualdade de riqueza atribuída a instituições nocivas do período colonial, como escravidão, latifúndio e monocultura, assim como controle de acesso à terra e ao poder político, constituem uma espécie de legado dessas instituições.
Essa “acumulação primitiva” brasileira levou seu capital-dinheiro às cidades, onde os comerciantes possuíam uma riqueza média superior à dos escravistas rurais. Com o êxodo rural, facilitado inclusive pela construção das grandes rodovias nos anos 50s, a aquisição da riqueza imobiliária nas cidades foi a grande especulação até surgir a correção monetária e as oportunidades financeiras, após as reformas bancária e do mercado de capitais da “modernização conservadora” pós-1964.
Embora a maior parte da riqueza imobiliária se concentre no topo da população com maior renda, seja pela autoconstrução, seja pelo financiamento habitacional, quase ¾ dos habitantes possuem a própria moradia. Em meados do século XX, apenas 36,2% da população habitava no meio urbano e 63,8% no meio rural. Em 2010, a urbana já era 84,3% da população total. Comparativamente, na China, nesse ano, a urbana finalmente a rural – e propiciou um boom imobiliário, cuja “bolha” explodiu mais recentemente.
Após a fase de indústria nascente com grande processo de urbanização e dispersão de preços relativos, devido a “pontos de estrangulamentos” estruturais em setores de atividade ainda com escassez de oferta, há um processo de ajustamento, em longo prazo, até alcançar a estabilidade inflacionária. O temor maior passa a ser a “eutanásia dos rentistas”, principalmente em títulos (ou aluguéis) prefixados, quanto a taxa de inflação ultrapassa a taxa de juro ou a taxa de arrendamento.
Segundo José Eustáquio Diniz Alves, no livro “Demografia e Economia nos 200 Anos da Independência do Brasil e Cenários para o Século XXI”, o Brasil passou por um ponto de inflexão e está em processo de encolhimento diante do mundo. “Desde 1981, o país diminui seu peso na comunidade de nações e se apequena diante da dinâmica mundial. O Brasil, antes um país emergente, crescendo acima da média mundial, se tornou uma nação submergente, crescendo menos diante dela”.
Temos de rever conceitos. Em vez de pregar “o que deveria ser”, diagnosticar “o que é”. A vida é dura e temos de aprender a lidar com ela, isto é, com a realidade. Denunciar o capitalismo, simplesmente, não o transformará… É um sistema emergente a partir de vários componentes incontroláveis centralmente…
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected].
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No tempo da correção monetária, o pessoal do clube da usura não se preocupava com os gastos públicos, pois a mesma garantia a rentabilidade do capital improdutivo. Com o advento do plano real e consequente fim da correção monetária, os expertos chupistas não tardaram em inventar as metas inflacionárias, mecanismo razoalvemente seguro para calibrar a rentabilidade do capital rentista e ainda tem a famosa desculpa do combate a inflação para aplicar o fator 3 sobre meta para garantir a rentabilidade. Aliás é bom lembrar que o sistema finaceiro ganhava tanto dinheiro com a inflação, que antes do palano real os bancos cobravam poucas tasrifas e ainda fornecia na modalidade 0800 o fornecimento de talonário de cheques.