Um olho no dólar outro na fome
Por Maria Luiza Falcão Silva
O dólar está se valorizando. Como o Federal Reserve (FED, banco central norte-americano) vem aumentando as taxas de juros para reduzir a inflação, a medida tornou os investimentos mais atraentes nos Estados Unidos (EUA), contribuindo para manter o dólar ainda mais forte. A crise sanitária e a guerra na Ucrânia causaram turbulências e certa aversão a risco nas economias mundiais, levando os investidores a buscarem refúgio mais seguro em títulos do governo da maior economia do mundo. A expectativa é de que não haja um taper trantum como ocorreu em 2013.
Esse movimento migratório dos investimentos de volta para os EUA fortaleceu a moeda americana em relação a outras moedas. O dólar ganhou em relação ao euro, do qual se aproxima da paridade de um para um – algo não visto em 20 anos. Tudo indica que os dólares dos turistas norte-americanos comprarão mais em muitos destinos no exterior. E a maioria dos especialistas acredita que permanecerá forte ao longo do ano de 2022.
O swing da economia norte-americana, desde o início da pandemia do coronavírus, é surreal. Contrapôs economistas da envergadura de Paul Krugman e Larry Summers, ambos agraciados com Prêmios Nobel de Economia.
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O impacto inicial da crise sanitária e dos lockdowns, em escala mundial, elevou a taxa de desemprego nos Estados Unidos, em abril de 2020, para 14,7%, o mais alto em mais de 70 anos- o pior índice desde que os registros começaram a ser feitos, em 1948. Apenas dois meses antes, em fevereiro, o desemprego alcançava um mínimo histórico de 3,5%. A pandemia extinguiu, em um só mês, todos os postos de trabalho gerados depois da crise econômica de 2008 e 2009. (1)
Em 2020, o então presidente americano Donald Trump assinou mais de US$ 3 trilhões em ajuda federal, aprovadas sob pressão do Congresso. Difícil de esquecer os apelos da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, pedindo a Trump para pressionar os Republicanos a apoiarem o projeto de lei para aumentar o tamanho dos depósitos em dinheiro para as pessoas mais afetadas pela crise sanitária nos Estados Unidos, quase em forma de súplica: “cada voto Republicano contra este projeto é uma votação para negar as dificuldades financeiras que as famílias enfrentam e para negar ao povo norte-americano o alívio de que necessita”.(2) No governo de Joe Biden, em março de 2021, houve mais um pacote de estímulos de US$ 1,9 trilhão, para medidas de auxílio contra a crise – promessas de campanha. Larry Summers previu que o novo plano de estímulo de Biden “desencadearia pressões inflacionárias de um tipo que não se via em uma geração”.
Sem dúvida essas medidas representaram um empurrão na economia tal que, em março de 2021, um ano depois do caos do desemprego, a economia dos Estados Unidos estava bombando, a apenas 1,6 milhão de empregos abaixo de onde estava em fevereiro de 2020. A taxa de desemprego caiu a um valor muito baixo, em torno de 3,9% desde dezembro de 2021, sugerindo que o mercado de trabalho atingiu o pleno emprego ou está próximo a ele.
Com o mercado aquecido, os especialistas falam em inflação de salário. Larry Summers também já havia alertado: “Minha opinião é que é melhor pensar na inflação salarial como uma medida central da inflação. Em última análise, os custos voltam para os salários. E se o crescimento salarial for alto, é difícil ver como você terá uma inflação duradouramente baixa. E se o crescimento salarial for baixo, é difícil ver como você terá uma inflação duradouramente alta”.(3)
Para Krugman “o pior cenário do pacote de estímulo fiscal do Biden, seria um aumento transitório dos preços ao consumidor, como aconteceu no início da Guerra da Coreia. O projeto de lei de alívio é “definitivamente um estímulo significativo, mas não um estímulo altamente inflacionário.”(4) Errou feio!
O FED, implantando estratégias usadas após a crise financeira, empurrou as taxas de juros de curto prazo para perto de zero, criando um cenário muito propício para aquecimento da economia norte-americana. As pessoas tinham emprego e estavam com dinheiro para consumir. O mercado de trabalho tornou-se “apertado” e propiciou aumentos de salário. A euforia era grande. Trump, já não era presidente, a economia ia muito bem e a crise sanitária dava sinais de arrefecimento. Aí o “malvado” do Putin invadiu a Ucrânia e aí tudo complicou.
Com a guerra, no Leste Europeu, as cadeias de valores de suprimentos foram interrompidas, os preços do petróleo e seus derivados saíram de controle, o preço dos alimentos disparou, os custos de energia subiram, sementes fundamentais desapareceram. Cresceram, também, os preços nos setores de habitação, passagens aéreas, veículos novos e usados. Nos EUA, a oferta não respondeu satisfatoriamente ao aumento da demanda, porque com a guerra e a interrupção do fornecimento de matérias primas básicas havia limites à expansão da produção. Assim, os preços subiram por fortes pressões de demanda, motivadas por programas de transferências de renda, demanda reprimida e crédito barato e, também, por estrangulamentos e pressões de custo do lado da oferta. Mais um recorde era batido, agora da inflação, que atingiu o maior nível em trinta anos, 8,3%, em abril de 2022. Virou manchete em todos os jornais. Estremeceu o mundo.
Corretamente, mas, talvez, tardiamente, o FED subiu os juros em 0,25 ponto percentual, em março de 2022, para uma taxa de 0,50%. Em abril, mais uma adição de 0,5, elevando os juros básicos para 1%. Agora, em 15 de junho, mais outro, de 0,75 e os juros atingiram 1,75%. Novo recorde é batido, maior elevação desde 1994. Não há sinais de que pare por aí, conforme anunciado pelo presidente do FED, Jerome Powell.
Os sucessivos aumentos de juros, vêm no bojo de reversão total na política monetária da economia americana, conforme descreve Otaviano Canuto. O “afrouxamento quantitativo” (QE, em inglês) retomado com força em março de 2020, como resposta ao choque financeiro no início da pandemia, dará lugar a um “aperto quantitativo” (QT, em inglês). E acrescenta: “Dessa vez, porém, dá para presumir que o FED quer os instrumentos atuando para valer numa mesma direção de contenção da demanda. As dúvidas dizem respeito ao ritmo e a extensão do aperto, tanto no que diz respeito a taxas básicas, quanto ao tamanho do balanço do FED ao final do QT”.(5) Resumo da ópera, a coisa é para valer e vai ter consequências para a economia mundial e de forma especial para países emergentes.
Não foi apenas nos Estados Unidos que o crescimento dos preços se generalizou. A inflação globalizou-se. Mas, mesmo assim, está favorável para os norte-americanos passearem pelo mundo porque o dólar vem se valorizando frente às demais moedas. Tenho acompanhado nos jornais que famílias que iam de férias para o Panamá agora preferem conhecer Paris, aquecendo o setor de turismo em países europeus. A paridade de um dólar equivalente a um euro entusiasma.
Enquanto no centro do capitalismo o cenário é confuso e cheio de recordes, no Brasil também batemos um, o da Fome. Cerca de 33,1 milhões de pessoas passam fome no Brasil, 73% a mais do que em 2020. Mais da metade da população do País – 125,2 milhões de pessoas – vive com algum grau de insegurança alimentar, cujo maior nível de gravidade é a fome. O dado, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da rede Penssan, representa uma alta de 7,2%, em relação a 2020. Só 4 entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação. Mais uma vitória do governo de Bolsonaro, levar o País de volta ao mapa da fome. (6)
O recrudescimento da epidemia de fome no Brasil está associado ao desemprego, à concentração de renda e riqueza, ao empobrecimento da população, à pandemia, à inflação, à guerra no Leste Europeu e ao desmonte de políticas sociais pelo governo de Jair Messias e sua desastrosa equipe econômica comandada pelo ultrapassado e incompetente Paulo Guedes. Num mundo em guerra e em estagflação, quando a intervenção estatal torna-se imprescindível, ele tenta aplicar no Brasil as regras do liberalismo fundamentalista, a serviço de um presidente que só trabalha pela sua reeleição. E, em nome dela, tudo se justifica.
Subestima-se, a volatilidade que vem de fora. O aumento atípico dos juros, na maior economia do Planeta, afeta o mundo inteiro. No Brasil, a fuga de dólares para os EUA, desvaloriza o real, provoca elevações da taxa básica de juros básica para retê-los, que provoca uma transferência de recursos da economia real para o sistema financeiro, encarece o crédito, penaliza a produção. Leva, também, ao crescimento da dívida interna e externa e seus serviços. Com baixo crescimento e um teto de gastos que trava o sistema, a economia não consegue absorver os 11,949 milhões de desempregados.
O Brasil antecipou-se aos Estados Unidos no aumento de juros e houve um momento em que serviu até de porto seguro para os movimentos especulativos de dinheiro da economia global financeirizada, atraídos por privatizações de setores estratégicos e por mercados longe da guerra na Ucrânia. Os fluxos de investimentos diretos (IDP) cresceram entre o final de 2021 e o início de 2022, mas arrefeceram a partir da trajetória de elevação dos juros nos EUA. Nos doze meses encerrados em fevereiro de 2022, o IDP totalizou US$50,7 bilhões (3,09% do PIB), ante US$47,7 bilhões (2,94% do PIB) no mês anterior e US$44,8 bilhões (3,18% do PIB) em fevereiro de 2021.(7) O mercado se animou, mas agora acabou.
A expectativa para o segundo semestre de 2022, é de que os fluxos de capitais para as economias em desenvolvimento sejam fortemente afetados pela guerra na Ucrânia, que se prolonga além do esperado; pelo novo cenário da economia global e por fatores macroeconômicos, incluindo o aumento das taxas de juros no país mais poderoso do mundo e em outras economias centrais. Assim, enquanto o dólar sobe, os americanos passeiam e a gente padece de fome e miséria.
A inflação importada, embutida no preço de muitas mercadorias essenciais, decorrentes dos aumentos do preço do petróleo e de commodities essenciais – milho, trigo , fertilizantes, etc., não é fácil de ser debelada. Os juros no Brasil tiverem em 15 de junho mais uma elevação, de 0,5 pontos percentuais, passando de 12,75% para 13,25% ao ano. Os sucessivos aumentos de juros buscam manter um diferencial com a taxa internacional, para não haver fuga de capitais e desvalorização do real que por sua vez encarece as importações e alimenta a inflação. Essa receita manjada torna o crédito mais caro e desestimula a produção. Aqui não há o que desacelerar, estamos na arapuca da estagflação.
O povo está sem dinheiro. Os preços dos alimentos estão nas alturas. O gás de cozinha aumentou de R$ 80 reais, em 2020, para algo em torno de R$ 130 reais, em 2022. Um incremento de mais de 50%. As transferências de renda, sob a forma de auxílios emergenciais, aprovados sob pressão do Congresso, entre 2020 e 2021, não foram suficientes para dinamizar a economia, uma vez interrompidos. O sistema de proteção social foi desmontado em plena crise sanitária. O mercado de trabalho não se encontra “apertado”, muito pelo contrário, o agronegócio mecanizado se aproveita da alta internacional nos preços das commodities e da desvalorização do real/valorização do dólar, para auferir lucros extraordinários exportando. Produzir soja é muito mais interessante do que produzir feijão.Os serviços que puxam o pífio crescimento são de setores que utilizam mão de obra de pouca qualificação, que prestam serviços às famílias, alguns quase informais, em condições muitas vezes precárias.
A sensação que se tem é de um governo totalmente perdido, um banco central dependente do que acontece nos Estados Unidos, e um país que naufraga dirigido por um timoneiro predador, incompetente, suicida em massa. Temos uma chance histórica de mudar esse quadro de “barbárie” por ocasião da troca do comando do governo do Brasil, nas eleições que se avizinham.
Referências:
(1) https://brasil.elpais.com/economia/2020-05-08/desemprego-nos-eua-chega-a-147-o-mais-alto-em-70-anos.html
(2) https://www.agenciacma.com.br/trump-sanciona-pacote-de-ajuda-financeira-nos-eua/
(4) https://www.infomoney.com.br/economia/paul-krugman-descarta-inflacao-nos-eua-como-na-decada-de-1970/
(5) Ver Canuto, Otaviano https://www1.folha.uol.com.br/colunas/por-que-economes-em-bom-portugues/2022/06/comecou-o-aperto-quantitativo.shtml
(6) https://www.oxfam.org.br/noticias/fome-avanca-no-brasil-em-2022-e-atinge-331-milhoes-de-pessoas/ (7) https://www.bcb.gov.br/estatisticas/estatisticassetorexterno
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
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Se você plantar uma roça e depois de um certo tempo o terreno não apresentar o surgimento de uma colheita, possívelmente você vai tomar alguma medida. A economia brasileira não tem apresentado boas colheitas já há um tempo, e do ponto de vista dos envolvidos em todo o conjunto estrutural para o funcionamento da economia, nada precisa ser feito. O mundo sofre com os efeitos somados da pandemia mundial e do conflito europeu; com gravidade e intensidade desigual de acordo com cada lugar. Os parâmetros da economia dos EUA, apresentam uma necessidade de ajuste para o equilíbrio sistêmico dessa economia, que pela sua penetração internacional traz reação dos agentes econômicos em boa parte dos países. Ao longo de um período, a economia brasileira não apresentou robustecimento nos seus parâmetros econômicos, que oferecesse ao País uma realidade de reação melhor. Não melhorar as condições de produção de riqueza, trazendo consequente redução de capacidade nos vários componentes das partes que fazem as atividades econômicas, só pode ser traduzido pelo empobrecimento de partes da sociedade. A estagnação do País não é o baixo crescimento do PIB, e sim as condições gerais que sentenciam o Brasil a um parâmetro inferior àquele que seria absolutamente necessário e condizente com sua dimensão e posição no ranking das grandes economias.
A Sra. se esqueceu do “Complexo Militar Industrial”!!!