A força do conhecimento. V. Subindo uma rampa em espiral, por Felipe A. P. L. Costa

Mas a ciência não se limita a acumular novos fatos. Nem tampouco se contenta com uma descrição da natureza, por mais fiel e meticulosa que esta seja.

A força do conhecimento. V. Subindo uma rampa em espiral.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

1. CONHECIMENTO CIENTÍFICO.

Aristóteles via a investigação da natureza como uma jornada progressiva a ligar as observações factuais (capazes de mobilizar os nossos sentidos) aos princípios gerais da ciência (cuja elaboração mobiliza a mente humana), e daí de volta às observações. A explicação dada a um fenômeno natural qualquer seria uma transição entre a constatação de um fato e o conhecimento das razões ocultas desse fato – e.g., como e por que ele ocorreu [1].

Nas palavras de Hempel (1979, p. 165-6):

   “Afirma-se, algumas vezes, que o papel de uma explicação é o de tornar compreensível um fato novo ou não conhecido, por meio de processo que o assimile ou reduza a fatos que já nos são familiares. Contudo, não há dúvida de que essa ideia não caracteriza adequadamente a explicação científica.

   “Sem cogitarmos da fluidez e subjetividade da noção de familiaridade aqui invocada, diremos que essa concepção sugere, antes de tudo, que os fatos familiares não requerem explicações. Entretanto, se, em nossa vida cotidiana, podemos admitir essa maneira de ver, não pode ocorrer o mesmo no campo da Ciência. Em verdade, a Ciência tem-se dado a grandes esforços para explicar a variação das marés, as tempestades, o arco-íris, o azul do céu, as semelhanças entre pais e filhos, os lapsos no falar e no escrever, as lacunas de memórias e muitas outras coisas ‘familiares’. O ponto é ilustrado, de maneira marcante, pelo paradoxo de Olbers. Em 1826, o astrônomo alemão Heinrich Olbers notou que, como consequência de umas poucas presunções simples e extremamente plausíveis, inclusive algumas leis da ótica e a hipótese de que as estrelas se distribuem uniformemente por todo o universo, o céu deveria mostrar-se muito brilhante em todas as direções, dia e noite. Dessa forma, o fato de a noite ser escura, fato que nos é tão familiar, foi visto como fonte de sério problema, para o qual se reclamava explicação. Resposta foi recentemente sugerida com base na teoria cosmológica de um universo em expansão: pode ser demonstrado, em verdade, que a extinção de remotas fontes de luz responde pelo fato de a escuridão dominar a noite. Eis, pois, um fato muito conhecido que vem a ser explicado em termos de uma teoria onde se reúnem ideias pouco familiares e, para dizer tudo, muito estranhas.”

2. POR QUE AS COISAS SÃO COMO SÃO?

Há mais conhecimento científico acumulado hoje do que havia a 50, 100 ou 200 anos. Não é bem uma surpresa. Afinal, há mais cientistas vivos hoje do que jamais houve em qualquer época. Novidades relevantes são anunciadas quase todos os dias, tornando ainda maior e mais meticuloso o gigantesco mural que estamos a pintar do mundo.

Mas a ciência não se limita a acumular novos fatos. Nem tampouco se contenta com uma descrição da natureza, por mais fiel e meticulosa que esta seja. Acumular novos fatos só faz sentido em um contexto mais geral que é o de elaborar explicações (palpites e conjecturas) a respeito do mundo – afinal, por que as coisas são como são?

Nas palavras de Dennett (1998, p. 23-4):

   “Nossa curiosidade assume formas diferentes, como Aristóteles observou no alvorecer da ciência humana. […] Ele identificou quatro perguntas básicas que gostaríamos de ver respondidas sobre qualquer coisa […].

   “Podemos ter curiosidade em saber: (1) de que matéria alguma coisa é feita, ou a sua causa material; (2) que forma (ou estrutura, ou formato) essa matéria assume, a sua causa formal; (3) o seu início, como ela começou, ou a sua causa eficiente; (4) qual o seu propósito, meta ou fim (como em ‘Os fins justificam os meios?’), o seu telos como Aristóteles chamou, às vezes mal traduzido, como ‘causa final’.

   “É preciso fazer algumas adaptações para que esses quatro aitia aristotélicos correspondam às perguntas-padrão: ‘o quê, onde, quando e por quê?’ O ajuste nem sempre é bom. Perguntas que começam com ‘por quê’, entretanto, de fato querem saber sobre a quarta ‘causa’ de Aristóteles, o telos de uma coisa. ‘Por que isto?’, perguntamos. Para que serve? Como dizem os franceses, qual a sua raison d’être, ou razão de ser? Por séculos filósofos e cientistas têm reconhecido estes ‘porquês’ como problemáticos, tão distintos que o tema que eles levantam merece um nome: teleologia.”

3. PERGUNTAR, PERGUNTAR, PERGUNTAR.

Algumas das questões científicas mais instigantes foram levantadas há muito tempo, por integrantes de gerações anteriores ou bem anteriores à nossa. As narrativas em torno delas é que vêm mudando.

Formular perguntas é uma etapa fundamental de toda e qualquer investigação científica. Não é de estranhar que vários autores sejam lembrados pelas questões que formularam, não tanto pelas soluções que propuseram [2]. Ou, como anotou Kuhn (1982, p. 42): “De Tycho Brahe a E. Lawrence [3], alguns cientistas adquiriam grandes reputações, não por causa da novidade de suas descobertas, mas pela precisão, segurança e alcance dos métodos que desenvolveram visando a redeterminação de fatos anteriormente conhecidos”.

4. UMA PAISAGEM CADA VEZ MAIS AMPLA.

Dois mil anos atrás, os filósofos gregos já se interrogavam a respeito da natureza íntima da matéria – uma questão com a qual nós ainda nos defrontamos, embora a resposta atual esteja assentada em evidências diferentes daquelas usadas em épocas tão remotas [4].

Fazer e refazer a mesma pergunta não significa que a ciência esteja estagnada. Na verdade, o conhecimento tem nos levado cada vez mais para o alto, como se estivéssemos a subir uma rampa em espiral. A resposta atual que damos a uma pergunta equivaleria à paisagem momentânea que apreciamos durante a subida. As respostas tendem a se tornar cada vez mais precisas e detalhadas, assim como vislumbramos uma paisagem cada vez mais ampla à medida que ganhamos altura.

São as perguntas que nos fazem avançar.

Tenha isso em mente sempre que quiser fazer alguma pergunta. Não tenha medo nem fique acanhado. Ninguém deve sentir vergonha de suas dúvidas. Ao contrário, devemos converter dúvidas em perguntas e, sempre que possível, discutir a respeito delas com amigos, colegas ou professores.

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NOTAS.

[*] O presente artigo (assim como quatro artigos anteriores – ver Livros, lentes & afins, Por que a Terra é esférica?, Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções e O que é cultural, afinal?), foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Há uma campanha de comercialização envolvendo os livros anteriores do autor – ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para mais informações ou para adquirir os quatro volumes (ou algum volume específico), faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Para detalhes e discussões, ver Losee (1979) e Dennett (1998).

[2] Exemplo emblemático é o caso do Último Teorema de Fermat – proposto pelo matemático francês Pierre de Fermat (1601-1665), em 1637, mas que só foi solucionado em 1995 (ver Singh 1998).

[3] Alusão ao astrônomo dinamarquês Tycho [Tyge Ottesen] Brahe (1546- 1601) e ao laureado físico estadunidense Ernest [Orlando] Lawrence (1901-1958), agraciado com o Nobel de Física (1939) pela invenção do cíclotron.

[4] O contrário pode ocorrer, ainda que menos no âmbito da ciência e mais no contexto da ideologia e da cultura de massas – e.g., questões envolvendo o tamanho, a forma e os movimentos da Terra (ver artigo Por que a Terra é esférica?).

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REFERÊNCIAS CITADAS.

+ Dennett, DC. 1998 [1995]. A perigosa idéia de Darwin. RJ, Rocco.

+ Hempel, CG. 1979 [1967]. Explicação científica. In: Morgenbesser, S, org. Filosofia da ciência. SP, Cultrix.

+ Kuhn, TS. 1982 [1962]. A estrutura das revoluções científicas. SP, Perspectiva.

+ Losee, J. 1979 [1972]. Introdução histórica à filosofia da ciência. BH, Itatiaia & Edusp.

+ Singh, S. 1998 [1997]. O Último Teorema de Fermat. RJ, Record.

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Redação

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