A agenda mercantil das privatizações: o caso da Eletrobras, por Roberto Pereira D’Araújo e Rodrigo Medeiros

Fala-se muito na privatização da Eletrobras e de outras empresas estatais no presente.

Agência Brasil

A agenda mercantil das privatizações: o caso da Eletrobras

por Roberto Pereira D’Araújo e Rodrigo Medeiros

Momentos de crise costumam ser oportunidades de nos confrontarmos com grandes questões e encruzilhadas civilizatórias. Restam poucas dúvidas de que o Brasil se encontra em um momento crítico de sua história. De acordo com um estudo recente do Instituto Lowy, baseado em Sidney, o Brasil fez a pior gestão do mundo na pandemia em um ranking de 98 países analisados a partir de seis dimensões da crise sanitária [1]. Esse mesmo estudo repercutiu internacionalmente e foi publicado em diversos veículos de comunicação social.

Uma pesquisa brasileira publicada recentemente, e que foi repercutida amplamente a partir do jornal El País Brasil, no dia 21 de janeiro, em matéria assinada por Eliane Brum, apontou que o governo Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus” [2]. Dificilmente seria possível separar a ideologia política de extrema direita da agenda econômica ultraliberal. Afinal, há afinidades e convergências entre essas duas dimensões, como mostrou o caso do Chile, sob a ditadura do general Pinochet e cuja estrutura constitucional foi mantida na redemocratização a partir da tutela dos grupos econômicos beneficiados no regime de exceção. O apoio organizado à agenda regressiva das reformas e das privatizações busca operar para ocultar a existência de grandes interesses econômicos em jogo no Brasil. A socialização de prejuízos e a concentração de riquezas representam formas clássicas de manejo político das crises em nosso país.

Importante estudo das universidades do Porto e de St. Gallen revelou, no segundo semestre de 2020, que as elites brasileiras tiram mais valor da sociedade do que criam [3]. O Brasil ficou em 27º lugar entre os 32 países avaliados no primeiro Índice de Qualidade das Elites (EQx), que mede se as ações de grupos de líderes de um país facilitam ou dificultam o progresso nacional. No caso do Brasil, “o que nós vemos é que as elites, quer políticas, quer econômicas, concentram em si ainda um elevado poder e acabam por utilizar esse poder para promover algumas atividades mais extrativas do valor da sociedade”, explicou a professora Cláudia Ribeiro, da Universidade do Porto à Sputnik Brasil.

Essas questões estão presentes na discussão sobre o setor elétrico brasileiro, vital para a integração nacional, o desenvolvimento e a competitividade do país [4]. Geralmente, alguns imputam a vulnerabilidade das empresas estatais brasileiras a dois grandes problemas: o domínio de partidos políticos na direção das empresas e o que chamamos de “estratégias públicas”. O sistema elétrico brasileiro, por sua vez, possui singularidades históricas que se contrapõem ao estabelecimento de um ambiente de competição de mercado. A divisão de tarefas e esforços federativos foi a base da construção física do sistema elétrico brasileiro: geração de energia, transmissão e distribuição, em formato de monopólio natural.

Para se aplicar o paradigma do mercantilismo importado do Reino Unido no setor de energia elétrica, desde meados dos anos 1990, ocorreram constantes necessidades de ajustamentos que trouxeram maiores custos e prejuízos ao Brasil. O Mercado Atacadista de Energia (MAE) seria substituído em 2004 pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) para efetuar a contabilização e a liquidação financeira das operações realizadas no mercado de curto prazo. O Brasil possui atualmente a tarifa vice-campeã de preços caros, conforme revelou a Agência Internacional de Energia [5]. O modelo mercantil não foi estabelecido com base nas características físicas do sistema elétrico brasileiro. A mimetização exigiu a determinação de valores fixos de energia, desrespeitando completamente a natureza de alta variância das energias naturais de um país de clima tropical. Essa opção proporcionou, por um lado, lucros extraordinários ao “mercado livre” e prejuízos expressivos ao consumidor comum.

Fala-se muito na privatização da Eletrobras e de outras empresas estatais no presente. Muito embora a Lei 13.303/2016 tenha disposto sobre o estatuto da empresa pública, exigindo profissionalismo mínimo para os cargos de direção e de conselho de administração, percebe-se que temas concretos continuam muito mal definidos. Decisões foram tomadas à revelia da lei das Sociedades por Ações. Exemplos históricos da Eletrobras ilustram as carências e a vulnerabilidade das empresas estatais. Imaginem uma legislação, que, sendo adotada, limitaria o governo, o seu acionista majoritário. Vejamos, logo abaixo, alguns exemplos do histórico de fragilização da Eletrobras na Nova República.

Exemplo 1: É proibido ao acionista majoritário propor atividades que não sejam da especialidade e do objetivo da empresa.

Seria impossível exigir da Eletrobras a aquisição de distribuidoras rejeitadas pelo “mercado”, usando fundo direcionado a outras funções, como ocorreu no governo FHC (1995-2002). Houve fragilização da estatal.

Exemplo 2: O acionista majoritário não pode impor políticas que impliquem em prejuízos para a empresa. Se a política tem esse viés, ou o Tesouro arca com a perda, ou é abandonada. É proibido impedir que a estatal participe de mercados disponíveis para empresas concorrentes.

Seria impossível o acionista majoritário manter a descontratação da Eletrobras sob um cenário de queda de demanda no período pós-racionamento, pois o impacto negativo era evidente e mensurável. O adiamento da descontratação chegou a ser sugerido no governo FHC, na transição de governos, ao final de 2002, mas foi rejeitado pela futura ministra Dilma Rousseff. Seria impossível também proibir a atuação da Eletrobras no mercado livre, como foi exigido no governo Lula, já que empresas privadas atuaram. Houve fragilização da estatal.

Exemplo 3: O acionista majoritário está impedido de determinar políticas de pessoal específicas. Essa decisão compete exclusivamente ao presidente da empresa e seu corpo gerencial.

Seria inviável exigir terceirização de mão de obra em atividades-fim, ou obstaculizar qualquer decisão de contratação de pessoal terceirizado para o quadro próprio. O governo FHC implantou a terceirização e o governo Lula impediu a redução de quadros terceirizados da atividade-fim. Outra fragilização da Eletrobras.

Exemplo 4: O acionista majoritário não pode impor parcerias com empresas estatais que não sejam aprovadas pelo conselho da empresa baseadas em profundas análises e justificativas técnicas.

O governo Dilma, entre 2011 e 2014, ao perceber que o setor privado não investia o suficiente para manter o equilíbrio entre oferta e demanda, fez com que a Eletrobras entrasse em parcerias de forma minoritária com taxas de retorno menores que o custo de capital da estatal. Nova fragilização da Eletrobras em novo benefício ao setor privado, que usou a estrutura da estatal praticamente de graça.

Exemplo 5: Qualquer proposta de política pública que o acionista majoritário propuser à empresa, tem que ser detalhadamente justificada. Qualquer dúvida existente sobre o impacto financeiro da medida, interrompe a proposta.

O governo Dilma, objetivando uma redução drástica na tarifa, propôs a antecipação do fim da concessão de usinas e linhas em troca de redução da receita desses ativos. Ele impôs uma metodologia repleta de equívocos que não se baseava na contabilização da empresa e que desconsiderou custos administrativos na formação do “preço justo”. Nenhum país do mundo adota a distorção de usinas com “tarifas”. Quem deveria ter tarifa é a empresa. Os Estados Unidos aplicam o “return rate regulation” para contabilizar amortizações. Nova fragilização da estatal, que assumiu praticamente sozinha uma redução tarifária sem ter sequer um diagnóstico prévio sobre a explosão de preços.

Exemplo 6: É vedada ao acionista majoritário a interferência na política de pessoal da empresa.

O demissionário presidente da empresa, Wilson Ferreira, mesmo sem a aprovação da privatização da estatal, promoveu uma redução do quadro da empresa e suas subsidiárias preparando a venda de ativos com um mínimo de estrutura administrativa. Os índices de empregados por MW instalado da Eletrobras já estavam entre os mais baixos entre os de empresas similares. Cito a “badalada” Engie, com 1,5 funcionários por MW instalado enquanto a Eletrobras, mesmo com as distribuidoras, tinha 0,44 funcionários por MW [6]. Evidentemente, o objetivo é a venda dos ativos.

Exemplo 7: Dirigentes deveriam ser escolhidos pela sua expertise e teriam mandato fixo. Em caso de saída do cargo, quarentena de um ano, sendo que sua atividade financeira seria monitorada pelos órgãos da justiça. Nas agências norte-americanas é assim que se faz.

Há desinformação no discurso do senhor Wilson sobre a “ineficiência” da estatal e a suposta pujança do capital privado. Um cenário mercantil mimetizado só elevou preços e fragilizou a Eletrobras. Apesar das aparentes dissidências políticas dos governos nos últimos vinte e cinco anos, a Eletrobras, por incrível que isso soe, parece ter sofrido um plano coordenado de tornar a empresa ineficiente para justificar a sua venda. Portanto, não basta para o campo progressista a bandeira da não privatização, é necessário um projeto de reconstrução das empresas estatais, que deverá estar em sintonia fina com um plano de reconstrução nacional após esses tempos tão distópicos. Importante termos a consciência de que a distopia presente não é obra do acaso.

Roberto Pereira D’Araújo é diretor do Instituto Ilumina e Rodrigo Medeiros é professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

Notas

[1] https://www.dw.com/pt-br/brasil-fez-a-pior-gest%C3%A3o-do-mundo-na-pandemia-diz-estudo/a-56369231

[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html

[3] https://elitequality.org/

[4] D´ARAÚJO, R. P. Setor elétrico brasileiro. Brasília (DF): Confea: 2009.

[5] https://www.iea.org/reports/energy-prices-2020

[6] https://www.power-technology.com/features/featurethe-top-10-biggest-power-companies-of-2014-4385942/

Rodrigo Medeiros

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