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O que está por trás da privatização da Eletrobras?, por Gustavo Teixeira

A privatização da Eletrobras (MP 1.031) tem como eixo central justamente a quebra dos contratos que foram alcançados pela MP 579, em prejuízo do consumidor cativo.

Marcello Casal Jr – Agência Brasil

Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

O que está por trás da privatização da Eletrobras?

por Gustavo Teixeira

Às vésperas do pleito eleitoral o governo federal corre para atender interesses financeiros na privatização da Eletrobras. A medida é controversa e alvo de críticas por parte de diferentes segmentos da sociedade, mas recebeu aval com ressalvas do Tribunal de Contas da União.

Embora na última campanha presidencial o então candidato Bolsonaro tenha se posicionado contra a venda de ativos estatais do setor energético, a privatização da maior empresa de energia elétrica da América Latina – uma das maiores do mundo em energia renovável – tem sido a grande obsessão da sua equipe econômica, que mais recentemente externou a mesma intenção com relação à Petrobras. A proposta é extemporânea e, infelizmente, segue a mesma linha “negacionista” assumida pelo executivo federal na gestão da pandemia do coronavírus e dos eventos extremos em decorrência do fenômeno das mudanças climáticas.

A atual proposta de privatização da Eletrobras foi editada na forma de medida provisória (MP 1.031/2021) e encaminhada em regime de urgência ao congresso nacional no início do ano passado, enquanto o Brasil registrava recordes de casos e mortes por Covid-19. À época, o Ministro da Economia argumentou que ela fazia parte das prioridades do governo no combate à pandemia. 

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Durante a tramitação no parlamento a proposta acabou incorporando os famosos “jabutis”. Sem dúvida, o maior deles é a contratação de usinas térmicas a gás. O relator do projeto na Câmara Federal, Deputado Elmar Nascimento (União Brasil, nascido da fusão entre Democratas e PSL) incluiu no texto a exigência de contratação de térmicas a serem instaladas em estados da federação onde não existe gás, nem gasoduto. Esse ponto tem gerado muitas críticas por parte do setor produtivo que estima que o custo adicional possa ultrapassar R$ 100 bilhões. Isto mesmo, um jabuti de cem bilhões! (ver documento da Abrace – Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e dos Consumidores Livres).

No entanto, a resposta à questão levantada no título deste artigo não passa pelos “jabutis” ou por quem os colocou lá, mas sim por uma política adotada pela presidente Dilma Roussef há uma década.

A renovação das concessões do setor elétrico em 2012

Setembro deste ano marca o aniversário de dez anos da edição da polêmica Medida Provisória nº 579 de 2012 (MP 579), que definiu as condições para a prorrogação de um conjunto importante de concessões de energia elétrica. Os sucessores de Dilma atuaram incansavelmente no sentido de revertê-la. Uma tentativa fracassada (PL 9.463/2016) foi enviada ao congresso nacional pelo executivo federal poucos dias após o impeachment da presidente.

Agência Brasil

Em síntese, a política adotada estabeleceu que concessões a vencer – usinas hidrelétricas (UHEs) e sistemas de transmissão – permanecessem sob a operação das empresas (estatais) praticando tarifas módicas. O objetivo central era provocar uma mudança estrutural no patamar da tarifa de energia elétrica brasileira, que é uma das mais caras do mundo. A medida acabou alcançando apenas as concessões da Eletrobras. Outros grupos envolvidos – Cemig, Cesp e Copel – não aceitaram as condições de renovação, que se resumiam no pagamento de um valor a título de indenização por ativos não amortizados e novas tarifas ao custo de operação e manutenção.

Com energia hidráulica disponível (descontratada), estas empresas puderam auferir “lucros extraordinários” durante o início da crise hídrica de 2014/2015 (ver auditoria do TCU 2014)[1]. Contudo, a partir de 2016 a vigência dos contratos de concessão expirou. No contexto da política de ajuste fiscal do governo federal as concessões passaram a ser leiloadas pelo critério de maior oferta de pagamento de outorga em detrimento do critério de menor tarifa. A União arrecadou cerca de R$ 25 bilhões em bônus e a operação das UHEs foi concedida a grupos estrangeiros, estatais e privados.

Para a Eletrobras o resultado da MP 579 foi outro. As concessões permanecem sendo operadas pelas empresas do grupo – Chesf, Eletronorte e Furnas – e a energia das UHEs renovadas foi alocada em regime de cotas para o mercado cativo (pequenos consumidores). Uma “inovação” regulatória que há dez anos representa a energia mais barata contratada pelas distribuidoras, respondendo por 20% do total dos contratos.

A medida resultou numa expressiva queda da tarifa final em 2013, mas a redução foi passageira e logo no ano seguinte as tarifas voltaram a aumentar por várias razões, dentre elas a crise hídrica, a não adesão de parte das geradoras, e também problemas inerentes à própria medida.

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As condições impostas para prorrogar os contratos de concessão repercutiram negativamente no desempenho financeiro das empresas Eletrobras. Entre 2013 e 2016 o grupo acumulou prejuízo da ordem de R$ 30 bilhões. Contudo, os planos de investimento não foram alterados e no mesmo período o investimento realizado somou R$ 50 bilhões.

Por meio da realização de um forte ajuste estrutural – via privatização das seis distribuidoras federalizadas e da adoção de planos de demissão – e, sobretudo, com o reconhecimento por parte da agência reguladora de uma receita a receber a título de diferença da indenização dos ativos de transmissão renovados em 2012 (R$ 40 bilhões), a Eletrobras equacionou a questão financeira e voltou a registrar lucros recorrentes. Hoje possui R$ 25 bilhões em reserva estatutária de lucros retidos para investimento e uma relação dívida líquida/EBITDA de 1,5, uma das mais baixas do setor. Em 2020, distribuiu R$ 4,5 bilhões em dividendos, mesmo assim tem investido pouco.

Da MP 579/2012 à MP 1.031/2021

Pois bem, a privatização da Eletrobras (MP 1.031) tem como eixo central justamente a quebra dos contratos que foram alcançados pela MP 579, em prejuízo do consumidor cativo. Os contratos de concessão que definem a alocação da energia das usinas renovadas em regime de cotas para o mercado cativo serão extintos.

A chamada “descotização” permitirá a comercialização dessa energia a preços de mercado. Em contrapartida, impõem-se o fim do controle estatal da Eletrobras, das concessões renovadas em 2012 e de todos os demais ativos do grupo, com exceção da Eletronuclear e da usina binacional de Itaipu que irão constituir uma nova estatal criada este ano, a Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional S.A. A medida ainda relega o financiamento do Centro de Pesquisa de Energia Elétrica controlado pela Eletrobras e referência em pesquisa na área de eficiência energética, à sua própria sorte.

Ou seja, a proposta de privatização da Eletrobras está estruturada de modo a desfazer a política instituída no governo Dilma de manter UHEs e ativos de transmissão sob operação estatal e ofertando tarifas módicas à população.

Agência Brasil

 A quem interessa a privatização da Eletrobras?

Através da diluição da participação acionária da União por meio de oferta de novas ações, a Eletrobras será privatizada por uma “capitalização”, numa modelagem semelhante àquela adotada no caso da BR Distribuidora, fazendo com que a empresa deixe de ter um acionista controlador. Posteriormente, a União poderá vender suas ações (assim como fez no caso da BR Distribuidora), reduzindo ainda mais ou alienando totalmente sua participação no capital do grupo. Com a operação o governo espera arrecadar recursos suficientes para: (1) o pagamento do bônus de outorga que será cobrado pela “descotização”; (2) mitigar os impactos do aumento das novas tarifas; e (3) constituir fundos regionais, outro “jabuti” criado pelo parlamento.

Essa modelagem interessa, sobretudo, aos grandes investidores institucionais, fundos soberanos, fundos de pensão e gestoras de fundos privados, os quais vêm adquirindo ou aumentando sua participação (e influência) no capital de importantes companhias brasileiras.

A justificativa utilizada pelo governo de que a Eletrobras não possui capacidade de investimento não se sustenta, pois conforme mencionado o grupo superou os impactos provocados pela prorrogação de 2013 e hoje apresenta uma situação financeira invejável e, sobretudo, possui bons indicadores operacionais. Não é demais lembrar que no caso do apagão do estado do Amapá, causado por problemas operacionais numa concessão de transmissão controlada por um fundo (especializado em reestruturação de dívidas), em que a população ficou 20 dias sem energia, foi a Eletronorte que atuou para restabelecer o sistema.

Com a privatização da Eletrobras o Estado brasileiro se associa de forma subordinada aos interesses do capital financeiro no processo de acumulação de riqueza do setor energético nacional. Como é de amplo conhecimento, tem ocorrido uma brutal transferência de renda para os acionistas dessas corporações (ver Consultoria Economatica). A atual política de preços e dividendos da Petrobras é um exemplo e indica o que deve ocorrer com os preços da energia elétrica caso o processo de privatização da Eletrobras seja concluído.

Divulgação

A privatização criará um monopólio privado, operando metade dos reservatórios hidrelétricos do Brasil, que equivale a 2,5% da capacidade hidráulica instalada no mundo[2]. Nenhum país que possui recursos hídricos semelhantes aos nossos (EUA, Canadá, Noruega, e outros) privatizou seus reservatórios, abrindo mão da gestão das águas. Quase 70% da energia elétrica consumida no país passa pelo sistema de transmissão da Eletrobras. Ou seja, a cada 10 lâmpadas acesas, em média 7recebem energia transmitida pelas empresas Eletrobras.

As empresas estatais prevalecem no setor energético e podem apresentar algumas vantagens na execução de políticas voltadas para a transição ecológica. A maior facilidade de financiamento decorrente de garantias estatais implícitas e explicitas pode se traduzir em custos de capital mais baixos. Os governos também podem usar sua influência sobre as estatais para “alavancar” políticas setoriais. Isso pode envolver, por exemplo, incluir a transição energética como parte dos mandatos de políticas públicas das empresas estatais (OECD 2018)[3].

Os ativos que serão privatizados foram constituídos há décadas, e parte já está totalmente amortizada. Não há nenhuma garantia de que os novos acionistas realizarão os investimentos necessários. Pelo contrário, a vantagem que decorre da concentração de mercado indica que a estratégia empresarial deverá seguir rumo oposto. É por essa razão que a concentração de mercado de uma Eletrobras privatizada é temida até por entusiastas históricos da sua privatização.

Deste modo, com a tentativa de privatizar a Eletrobras o governo pretende avançar em direção de uma maior financeirização no setor energético nacional. Ao adotar tal estratégia, atua na contramão do que tem sido feito pela maioria dos países para lidar com a crise climática e os desafios da transição para uma economia de baixo carbono. Com intuito de compartilhar dos retornos financeiros oriundos da privatização, o estado brasileiro recusa-se a cumprir suas obrigações e responsabilidades com os cidadãos, abdicando sua função no planejamento e na coordenação de políticas públicas voltadas para o crescimento e o desenvolvimento econômico, social e sustentável.

Gustavo Teixeira – pesquisador do FINDE/UFF e Ilumina

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O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

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O Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB) desenvolve estudos e pesquisas sobre economia brasileira, em seus diversos aspectos (histórico, político, macroeconômico, setorial, regional e internacional), sob a perspectiva da heterodoxia. O NEB compreende como heterodoxas as abordagens que rejeitam a hipótese segundo a qual o livre mercado proporciona a melhor forma possível de organização da economia e da sociedade.


[1]Tribunal de Contas da União. Auditoria Operacional, n.º 011.223/2014-6 (p.25-26). Disponível em:

https://tcu.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/315619102/1122320146/inteiro-teor-315619128

[2]International Hydropower Association.                                 

Disponível em:  https://www.hydropower.org/iha/discover-facts-about-hydropower

[3] OCDE (2018). “State-Owned Enterprises and the Low-Carbon Transitions.” OECD Publishing, Paris.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Leia também:

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60 motivos para a Eletrobras não ser privatizada; aumento nas contas de luz é o 1º

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2 Comentários

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  1. O Brasil foi sequestrado a partir do golpe de 2016 e a prisão de Lula em 2018.
    É refém de uma quadrilha muito poderosa envolvendo grande sociedade.
    Não há governo, há sequestradores governando o Brasil.

  2. Existe uma grande dificuldade na discussão de temas de interesse estratégico e que afetam as condições de permanência do País enquanto sociedade organizada. As próprias condições de desenvolvimento, crescimento, progresso, prosperidade, organização da sociedade e suas subdivisões; tudo isso está relacionado à existência ou não de considerações da aplicação estratégica em determinados setores a privilégio do Brasil e o todo que está abrigado sob essa definição. O Brasil não é o mundo e o mundo não é o Brasil. Um está contido no outro. A coisificação do País, como um amontoado de interesses em que cabe qualquer um interesse, menos os próprios interesses têm legado o todo brasileiro a uma não evolução. Entram governos e saem governos, continua-se a condenar esse todo. Elites apátridas, sem vínculo de localidade, nem parte e nem todo. Não existe apego com o que quer que deva representar isso que está contido nas fronteiras que definem o espaço geográfico reconhecido pelo planeta. Não nos capacitamos a ser ou ter uma Nação. Somos uma série de divisões sem qualquer interesse comum. Os realizados e os frustrados ou fracassados, dentro dessa meritocracia sem mérito e de recompensa meramente pecuniária. Não se é a favor ou contra por razões relacionadas com a continuidade do País, com as condições que se possa desejar ter; motivações ideológicas, monetárias, de amizade ou inimizade, o que se quer fazer desse todo, que poderia ser um país. Necessitaria que houvesse uma civilização brasileira assentada sobre esse solo. A tomada de decisões vão ocorrendo, tenham as consequências que tiverem, sempre haverá uma ponte nos atalhando a um futuro colhido e nunca plantado.

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