‘Já é Ano Novo do outro lado do mundo’, por Felipe Costa

O termo hemisfério (lat., hemisphaeriu; sendo hemi, metade + sphaera, esfera) literalmente significa metade de uma esfera.

‘Já é Ano Novo do outro lado do mundo’: hemisférios, estações do ano e fusos horários.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

APRESENTAÇÃO. – Todo dia 31 de dezembro, a imprensa brasileira requenta a pauta: ‘Já é Ano Novo do outro lado do mundo (Japão, Austrália, Nova Zelândia etc.)’. É difícil evitar, reconheço. O problema é que essas matérias primam pelo sensacionalismo e pela superficialidade. Uma combinação que só serve para dificultar a compreensão de um fenômeno cuja dinâmica envolve tanto um processo natural como também algumas convenções arbitrárias.

*

Dos 510 milhões km2 da superfície da Terra, 71% (~361 M km2) estão cobertos pelo oceano global e 29% (~149 M km2) por massas de terra firme. Equivaleria a dizer que para cada 3 m2 de terra firme há 7 m2 de água. A proporção de 3:7 é, no entanto, a média global [1].

1. HEMISFÉRIOS NORTE E SUL.

Na comparação entre os hemisférios, logo percebemos que ambos se afastam da média. No Norte, 39% da superfície estão ocupados por terras emersas; no Sul, o percentual é de 19%. A diferença se inverte quando falamos em água: 61% do Norte estão ocupados pelo oceano, enquanto o percentual no Sul chega a 81%.

No Norte, seria como se para cada 4 m2 de terra firme nós tivéssemos 6 m2 de água. No Sul, seriam 2 m2 de terra firme para cada 8 m2 de água. Em termos absolutos, o primeiro tem o dobro de terras emersas do segundo: no cômputo final, seriam ~100 M km2 de terras boreais contra ~50 M km2 de terras austrais. Uma diferença e tanto e que tem implicações profundas em escala planetária, duas das quais nos interessam mais de perto – clima e biogeografia.

1.1. Implicações climáticas.

A marcha das estações (ver Cap. 5) é um fenômeno global, de sorte que todos os pontos da superfície do planeta experimentam algum tipo de sazonalidade climática. Ocorre que a amplitude e a intensidade dessa variação não são as mesmas em todas as latitudes. Por exemplo, um ponto situado a 30° N tende a experimentar extremos de temperatura (e.g., verões mais quentes e invernos mais frios) mais acentuados do que os extremos experimentados em um ponto situado a 30° S. O mesmo ocorre em outras latitudes. É um padrão, não são casos isolados.

O que há por trás disso?

Para começo de conversa, trata-se de um fenômeno essencialmente físico e que envolve transferência de calor. Massas de água ganham e perdem calor mais lentamente do que massas equivalentes de terra firme. Como a proporção de água no hemisfério Sul é maior (81% vs. 61%), os ganhos e as perdas de calor tendem a ser mais rápidos no Norte. O que resulta em dois fenômenos notáveis:

  • as mudanças de temperatura (diárias, mensais ou sazonais) tendem a ser mais bruscas e intensas no Norte; e
  • a amplitude de variação entre as temperaturas extremas (e.g., média máxima de verão – média mínima de inverno) tende a ser maior no Norte.

De fato, é exatamente isso o que nos contam as estatísticas meteorológicas. Como anotaram Barry & Chorley (2013, p. 59):

“O terceiro efeito da continentalidade [2] resulta da distribuição global das massas de terra. A menor área oceânica do Hemisfério Norte faz o verão boreal ser mais quente, mas seus invernos são mais frios em média do que os equivalentes austrais do Hemisfério Sul (verão, 22,4 °C vs. 17,1 °C; inverno 8,1 °C vs. 9,7 °C). O armazenamento de calor nos oceanos os torna mais quentes no inverno e mais frios no verão do que a terra na mesma latitude, embora as correntes oceânicas causem algumas exceções a essa regra.”

Observe que a diferença entre as médias sazonais (verão – inverno) do Norte é praticamente o dobro da diferença entre as médias do Sul: 14,3 °C (= 22,4 – 8,1) vs. 7,4 °C (= 17,1 – 9,7) [3].

1.2. Implicações biogeográficas.

Impacto ainda mais óbvio da concentração de terras ao Norte é a falta de terras austrais ocupadas por biomas que prosperam acima de 45°. Na dúvida, compare o tamanho das massas de terra que estão acima dessa latitude.

No Norte, basta dizer que a Rússia e o Canadá, os dois maiores países em área territorial [4], estão quase que inteiramente acima dessa latitude. Além de diversos países menores, tanto europeus (e.g., Alemanha, Polônia e Reino Unido) como asiáticos (e.g., Cazaquistão e Mongólia). E mais: ainda há muita terra acima de 60° N – e.g., Finlândia, Islândia, a metade norte da Rússia, a maior parte da Noruega e da Suécia; além de Groenlândia, Alasca e a metade norte do Canadá [5].

Acima de 45° S, apenas dois pedaços de terra teriam dimensões dignas de nota, o extremo sul do Chile e da Argentina e o extremo sul da Nova Zelândia. Acima dos 60°, não há nada tão expressivo, apenas ilhotas e algumas ilhas, excetuando, claro, o continente gelado. No caso da Antártida, aliás, cabe registrar como o aquecimento global está mudar a paisagem do continente. Trechos cada vez maiores estão a experimentar degelos sazonais, permitindo assim algum crescimento sazonal da vegetação. E isso, claro, está longe de ser uma boa notícia. Em 1986, por exemplo, <1 km2 da Península Antártica (porção mais ao norte do continente) degelava; em 2021, a área já era superior a 11 km2 [6].

2. ESCLARECENDO A TERMINOLOGIA

O termo hemisfério (lat., hemisphaeriu; sendo hemi, metade + sphaera, esfera) literalmente significa metade de uma esfera. O globo terrestre pode ser dividido em hemisférios de muitos modos diferentes. No nosso contexto, porém, apenas dois são de interesse.

2.1. A divisão Norte vs. Sul e as latitudes.

O plano imaginário que passa pela linha do Equador divide o planeta em hemisférios Norte (= Setentrional ou Boreal) e Sul (= Meridional ou Austral). Ir do Norte ao Sul (ou vice-versa) é um deslocamento essencialmente vertical (Fig. 4). A coordenada que mede a posição vertical de qualquer ponto na superfície terrestre é chamada de latitude. Nas palavras de Rocha (2019, p. 22): “As latitudes são referenciadas a partir do Equador, de 0° a 90° no hemisfério Norte (+) e de 0° a 90° no hemisfério Sul (–), ou simplesmente de 0° a 90° seguido da indicação Norte ou Sul”. Assim, quem está no Equador está na latitude mínima (0°), quem está em um dos polos está na latitude máxima (90° N ou 90° S).

2.2. A divisão Leste vs. Oeste e as longitudes.

O plano imaginário que passa pelo meridiano de Greenwich [7] – o semicírculo que liga os polos Norte e Sul, passando pelo observatório de Greenwich, perto de Londres, e seu antimeridiano (o semicírculo complementar, que liga de volta os polos Sul e Norte) –, divide o planeta em hemisférios Oriental (ou Leste) e Ocidental (ou Oeste). Ir do Oriente ao Ocidente é um deslocamento essencialmente horizontal (Fig. 4). A coordenada que mede a posição horizontal de qualquer ponto na superfície terrestre é chamada de longitude. Nas palavras de Rocha (2019, p. 22): “As longitudes são referenciadas a partir de Greenwich, de 0° a 180°, da direção Leste (+), ou de 0° a 180° na direção Oeste (–), ou pelas siglas E (Leste) e W (Oeste)”. Assim, quem está em Greenwich está na longitude mínima (0°), quem está na Linha Internacional de Mudança de Data está na longitude máxima (180° E ou 180° O) [8].

Nas palavras de Boorstin (1989, p. 57; grafia original):

“Em virtude de a Terra girar sobre o seu eixo, todos os lugares do Mundo têm um dia de 24 horas por cada volta completa de 360°. Os meridianos de longitude assinalam esses graus. À medida que a Terra gira, leva o meio-dia a diferentes lugares, sucessivamente. Quando é meio-dia em Istambul, ainda são apenas 10 horas da manhã a ocidente, em Londres. Numa hora, a Terra gira 15°. Por consequência, podemos dizer que Londres está a 30° de longitude, ou 2 horas, a ocidente de Istambul, o que torna esses graus de longitude simultaneamente medidas de espaço e de tempo. Se uma pessoa tiver um relógio certo regulado para a hora de Londres e o levar para Istambul, comparando as horas do relógio que levou com as horas locais de Istambul, saberá também precisamente que distância viajou para oriente, a que distância Istambul se encontra a oriente de Londres.”

2.3. Mãos na massa.

Sejam dois pontos quaisquer, A e B, situados na superfície do globo. Levando em conta as coordenadas que acabamos de conhecer (latitude e longitude) [9], quatro diferentes combinações seriam possíveis (Fig. 4). São elas:

  • A e B podem estar na mesma estação do ano (se ambos estiverem no Norte ou no Sul) e no mesmo fuso horário (a distância horizontal entre os pontos não deve ultrapassar os 15°) [10]. Exemplo: Brasília, Montevidéu e Buenos Aires;
  • A e B podem estar na mesma estação, mas em fusos diferentes (a distância longitudinal entre os pontos deve ser >15°). Exemplo: Brasília, Joanesburgo (+5 h) e Melbourne (+13 h);
  • A e B podem estar em estações diferentes (um ponto está no Norte e o outro, no Sul), mas no mesmo fuso horário. Exemplo: Manaus [11], que está no Sul, Caracas e Nova York, que estão no Norte; e
  • A e B podem estar em estações e fusos horários diferentes. Exemplo: Brasília, que está no Sul; Paris (+4 h) e Tóquio (+12 h), que estão no Norte.

*

NOTAS.

[*] Artigo extraído e adaptado do livro O tamanho do mundo & outras conjecturas (no prelo). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, pacotes com os quatro livros do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] A superfície da Terra é coberta por dois tipos de crosta: 57,5% por crosta oceânica (~7 km de espessura) e 42,5% por c. continental (~40 km) – v. Hasterok et al. (2022); sobre a variação na espessura, Mai & Korenaga (2022).

[2] Diz-se que a continentalidade é maior no Norte, o que implica dizer que ali as variações de temperatura (diárias e sazonais) são mais bruscas. Isso decorre do fato de as terras emersas terem uma capacidade calorífica inferior à das terras emersas. Quanto maior a capacidade calorífica, mais tempo um sistema leva para ganhar ou perder calor. Segundo Penman (1972, p. 81; trad. livre): “Entre suas propriedades térmicas, a água tem o maior calor específico (capacidade de armazenar energia calorífica para um dado aumento de temperatura) conhecido entre os líquidos. O mesmo se pode dizer do calor de vaporização da água: a 20 °C (68 graus Fahrenheit) são necessárias 585 calorias para evaporar um grama de água. Por fim, com exceção do mercúrio, a água tem a maior condutividade térmica de todos os líquidos”.

[3] Números extraídos de Ackerman & Knox (2007).

[4] Há alguma correlação entre área territorial e efetivo populacional. Veja: a lista dos 20 países mais populosos do mundo abriga também nove dos maiores países em área territorial – para detalhes, v. ONU (2019). Mas há exceções importantes, entre as quais estão os gigantes escassamente povoados e os anões densamente povoados. Exemplos de gigantes vazios: (i) Canadá, o segundo país do mundo em área territorial (9.984.670 km2), com um efetivo de 37.074.558; e (ii) Austrália (7.692.024 km2), o sexto em área territorial, com um efetivo de 24.898.153. Veja ainda o caso da Argentina, o oitavo em área territorial (2.780.400 km2) e um efetivo de 44.361.150. Exemplos de anões lotados: (i) Bangladesh, o 92° em área territorial e o oitavo em população; e (ii) as Filipinas, o 72° em área territorial e o 13° em população.

[5] Com tanta terra acima de 45° N, não surpreende descobrir que o complexo florestal que se estende pelo norte da Ásia e por parte da Europa representa o maior maciço florestal contínuo do planeta – a floresta boreal.

[6] Para um balanço recente, ver Roland et al. (2024). A Antártida abriga uma vegetação miúda e sazonal (e.g., algas, musgos, líquens e gramíneas) – a tundra antártica. Esse tipo de vegetação também é encontrado nos Andes.

[7] Convenção adotada em uma conferência internacional realizada em Washigton (EUA), em 13/10/1884 – ver http://www.thegreenwichmeridian.org/.

[8] A Linha Internacional de Mudança de Data vai de um polo ao outro passando pelo estreito de Bering (entre o NE da Rússia e o Alasca), pelo arquipélago de Kiribati (Micronésia) e por algumas ilhas a leste da Nova Zelândia.

[9] Definições de interesse (Bezerra 1976): “Se cortarmos uma superfície por dois planos secantes distintos e paralelos, a porção da superfície esférica limitada por esses dois planos chama-se zona esférica” (p. 443); e “Se traçarmos dois semiplanos meridianos de uma superfície esférica cuja origem é o suporte do mesmo diâmetro dessa superfície, a porção de superfície esférica limitada por esses dois semiplanos chama-se fuso esférico” (p. 444).

[10] Dividir a circunferência terrestre (360°) em 24 fusos horários implica em fusos de 15° de largura (= 360° / 24). Por definição, portanto, dois pontos que estejam separados por mais de 15° estarão em fusos diferentes. Na prática, porém, isso nem sempre ocorre. Um exemplo é a China, cujas longitudes (75°-135° E) implicariam em quatro fusos, mas que adota um único fuso para o país inteiro.

[11] Manaus e Brasília estão em fusos vizinhos: em Manaus, o horário local está 1 h atrasado em relação ao horário de Brasília.

*

REFERÊNCIAS CITADAS

++ Ackerman, AS & Knox, JA. 2007. Meteorology, 3rd ed. NY, Thomson.

++ Barry, RG & Chorley, RJ. 2013 [2010]. Atmosfera, tempo e clima, 9ª ed. P Alegre, Artmed.

++ Bezerra, MJ. 1976. Curso de matemática, 33ª ed. SP, Nacional.

++ Boorstin, DJ. 1989 [1983]. Os descobridores. RJ, Civilização.

++ Hasterok, D & mais 6. 2022. New maps of global geological provinces and tectonic plates. Earth-Science Reviews 231: 104069.

++ Mai, VV & Korenaga, J. 2022. What controlled the thickness of continental crust in the Archean? Geology 50: 1091-5.

++ ONU. 2019. World Urbanization Prospects: The 2018 Revision (ST/ESA/ SER.A/420). NY, United Nations.

++ Penman, HL. 1972 [1970]. El ciclo del agua. In: Scientific American, org. La biosfera. Madri, Alianza.

++ Rocha, CHB. 2019. Geomática na prática. Curitiba, CRV.

++ Roland, TD & mais 8. 2024. Sustained greening of the Antarctic Peninsula observed from satellites. Nature Geoscience: doi.10.1038.

* * *

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador