O Mito da Educação Financeira, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Teoriza-se sobre o formigueiro sem conversar com as formigas, atribuindo-lhes comportamento digno de um videogame.

Agência Brasil

O Mito da Educação Financeira 

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva 

O prédio ao lado do em que vivo resolveu cortar, clandestinamente, três árvores. A alegação era de estarem quebrando a calçada e deveriam ser substituídas por outras menores. Quando eu disse que árvores crescem e que o problema era o manejo, o zelador disse: “Tudo está ficando mais moderno”, como se árvores pudessem ser modernas. A ciência econômica passa por situações assim. Quando se está conversando entre economistas, citam-se artigos que, quando os lemos, ficamos estarrecidos, seja pela irrelevância do texto, seja pelo preciosismo, até pedante, com que se usam ferramentas sofisticadas para comprovar o que todos já sabem. Não que faltem evoluções de suma importância, porém, compreender que o conhecimento reside na discussão entre escolas do pensamento. Todas têm algo com que contribuir e quem fica no mainstream corre seríssimo risco de se afogar. Um pouco desse mesmismo travestido de pesquisa deve-se à obrigação de publicar para seguir a carreira universitária. Aí, quando surge algo realmente novo fora do caudal das teorias em voga, como se diz hoje, tende ao cancelamento ou à lacração. Teoriza-se sobre o formigueiro sem conversar com as formigas, atribuindo-lhes comportamento digno de um videogame. 

Imaginemos uma escola do pensamento econômico em que não exista a ideia de maximização, em que o medo de perder seja sempre maior que a vontade de ganhar. Imaginemos agora um conjunto de teorias em que o dinheiro, como bem tenha sua oferta determinada por uma função inversa do medo de perder e de uma função direta do seu preço, que são os juros. A demanda função direta da necessidade de pagar e por uma função inversa do medo de dever. Todas as escolas do pensamento econômico têm um pouco disso e nenhuma tem tudo disso. É que grande parte do que sabemos saiu da academia para o mundo lá fora, em vez de sair do mundo para entrar na academia. 

Some-se a isso que o cidadão comum não entende os juros. Não está em seu entendimento que, junto com o que adquire a prazo, compra o dinheiro que paga a mercadoria. Os agentes financeiros têm plena noção de que, se o consumidor tivesse que pedir dinheiro sempre que comprasse algo, não o tomaria, pois o medo de dever falaria mais alto. É então que, automatizando-se o crédito, anestesia-se o consumidor e ele passa a dever inconscientemente, da mesma forma com que o primeiro cachimbo de craque não avisa que vai viciar. 

Outro conceito que passa longe do consumidor normal é que existem duas taxas, a de tomada de empréstimos, que é quando se faz um financiamento, e a de concessão de empréstimos, que a de quando se põe o dinheiro – suponhamos – na XP para render. A diferença entre uma e outra é o spread, de que tanto se fala nos jornais econômicos. Disso decorre mais um conhecimento igualmente fora do domínio popular, o de que a forma como se paga não e a mesma que a se recebe. Para entender melhor isso, suponhamos que Fulano pegue R$100.000,00 para pagar juros de 1% ao mês pelo prazo de sessenta meses. Suponhamos agora que o Fulano ponha esse dinheiro a render o mesmo 1% de juros numa corretora de sua confiança. Se for pela tabela Price, ele chegará ao fim do período com um prejuízo de -R$ 3.576,29. 

Como assim? Mas os juros que eu recebo não são os mesmos que os que eu pago, Fulano perguntaria. A taxa é a mesma, mas o capital diminui mês a mês porque além de pagar os juros, Fulano precisa amortizar o empréstimo. A planilha anexa mostra que, para empatar, os juros de concessão teriam de ser de aproximadamente 1,2% ao mês, Só que não existe loja alguma que venda mais barato do que comprou. Tanto isso é verdade que, pela mesma planilha, nas mesmas condições, sendo amortização constante, a conta fecha zero a zero. É que, no primeiro caso, sendo as prestações constantes, no início, Fulano paga muito de juros e amortiza muito pouco e o valor amortizado aumenta prestação a prestação. No segundo caso, como o nome diz, amortiza-se 1/60 ao mês e os juros do período seguinte caem proporcionalmente. 

Mesmo sendo as prestações menores no início, como a mesma planilha mostra, para o banco, é mais interessante emprestar pela tabela Price, pois, a cada parcela paga, um novo empréstimo que ele faz, o que se repete exponencialmente até o fim do período. 

Será que, se todos os consumidores soubessem disso, continuariam tomando empréstimos? É o mesmo que perguntar a um alcoólatra que, se soubesse o mal que a bebida causa, continuaria bebendo. É que, assim que o consumidor vê sua capacidade de pagar comprometida, recorre a mais crédito para continuar pagando e isso lhe é empurrado goela a baixo até que não possa mais honrar seus compromissos, tal e qual fazem os traficantes de drogas. Mas o medo de perder não é maior que a vontade de ganhar? Sim, é, mas o sistema financeiro também é passível de ser anestesiado. Nesse caso, pelos recursos computacionais que, teoricamente, deveriam protege-lo dos riscos excessivos. A crença de que, quanto maior o número de devedores, menor o risco de a inadimplência comprometer o sistema. Assim como acontece com os devedores que se encalacram em bola de neve, o mesmo acontece com o sistema financeiro em forma de dominós. E para não deixar de pagar o banco, o primeiro não paga seus débitos com o segundo, que não paga o terceiro, até que o primeiro deixe de pagar o banco e os dominós vão caindo um a um. Então, é o banco que não honra seus débitos com seus correntistas e aplicadores e o caos está feito. 

É no caos que, em vez de salvar as pessoas, o Estado salva os bancos para que, alguns anos depois, aconteça tudo outra vez. Interessante é que Karl Marx, em 1868, disse que as crises econômicas são sempre precedidas por crises financeiras. Keynes discutiu isso e os neoliberais defendem que o caos se  resolva sozinho, desde que o dinheiro perdido não seja o deles, é claro. A Economia tem trezentos anos de estudo sistemático e, até hoje, não apresentou algo de consistente e os vários consensos pelos quais passamos em âmbito dogmático, ou provocam prejuízos por incentivar o caos, ou provocam recessões por regular os agentes financeiros a ponto de eles não se arriscarem. Jogar as culpas nas costas da falta de educação financeira da população é o mesmo que atribuir, ao pobre, a responsabilidade pela pobreza.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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