“Amendoeira é a primeira”, por José Carlos Faria

Ecoava o grito da torcida pelo Aterro do Flamengo, no Campeonato de Peladas do Jornal dos Sports

“AMENDOEIRA É A PRIMEIRA

Ecoava o grito da torcida pelo Aterro do Flamengo, no Campeonato de Peladas do Jornal dos Sports

por José Carlos Faria

Este era o refrão repetido incessantemente numa propaganda divulgada pelo rádio, na década de 1960, de uma revendedora de automóveis e jipes Willys. Foi adotado como grito de guerra da torcida do “Amendoeira Pelada Clube”, composta por mães, pais, avós, primos, namoradas e amigos dos jogadores. O time disputou, na década de 70, o Campeonato de Peladas do Aterro do Flamengo, promovido pelo Jornal dos Sports.

Esses torneios reuniam milhares de jogadores e mais de mil times em cada edição anual. As partidas, disputadíssimas, atraíam um grande número de espectadores ao Parque do Flamengo. Na categoria de “Veteranos”, participavam grandes craques do futebol como os bicampeões mundiais Castilho, Nilton Santos, Zagalo, além de Barbosa, Ademir Menezes, Jair Rosa Pinto e Telê Santana. Zico, o grande craque rubro-negro, então pré-adolescente, chegou a disputar na categoria “Infantil”.

O Aterro do Flamengo foi inaugurado em 1965, pelo Governador Carlos Lacerda, após obras monumentais, aproveitando material do desmonte parcial do Morro de Santo Antônio. Os oito campos de saibro nasceram de uma sugestão do jornalista João Saldanha ao vice-governador Rafael de Almeida Magalhães, com o argumento de que não precisaria plantar grama, um dos itens mais caros do paisagismo do parque.

Campos de Pelada do Aterro do Flamengo: foto do site http://www.parquedoflamengo.com.br/equipamentos/campos-de-pelada/

Os campeonatos eram patrocinados e organizadíssimos, com fichas de inscrição dos atletas, juiz, mesário, súmulas.  O Jornal dos Sports dava ampla cobertura, publicando as tabelas, fotos e as fichas técnicas de todos os jogos. Os times eram divididos em chaves e todas as partidas, eliminatórias. Se houvesse empate no tempo normal, partia-se para decisão por pênaltis.

A denominação do time “Amendoeira” nada tinha a ver com a concessionária de veículos Willys, da qual adotamos o jingle e, sim, com a própria árvore. Ela se localizava, nos fundos de um prédio, no bairro do Leblon, em que moravam meus tios Di e Wanda e meus primos Celso e Luiz Sergio.

O quintal servia como nosso campo de peladas, desde que éramos bem meninos. Além de nos livrar dos adversários, tínhamos que evitar, também, que a amendoeira, postada imponente no centro do quintal, cortasse nossos passes e lançamentos.

Já adultos, resolvemos nos inscrever no Campeonato de Peladas do Aterro, com um time formado por familiares e amigos. Para homenagear a árvore, demos o seu nome à equipe. O escudo era apenas a letra “A” em azul, costurada numa camisa branca com frisos, também, azuis. Naquela época, os números não vinham impressos nas camisas. Eram comprados, de pano, pregados em papéis. Depois de retirados destes, eram costurados nas camisas. Esta missão era desempenhada pela Tia Wanda.

Em pé da esquerda para a direita: Goleiro (?), Zé Carlos, Celso, Sergio e Márcio. Agachados: André, Luiz Sergio, Mestre e Afonso. Clube Pedra Negra. 30/05/1981

Disputamos os Campeonatos do Aterro de 1970 a 1973. No primeiro ano, fomos desclassificados no terceiro jogo. O segundo, contra o “Gomes”, tradicional time do Largo do Machado, foi memorável. Perdíamos por 4×3, já no final, quando, num contra-ataque, após receber um cruzamento da esquerda, nosso centroavante Luiz Sergio recebeu livre e assinalou o gol de empate. Minha contribuição foi ter puxado insistentemente a camisa do zagueiro que tentava alcançá-lo na corrida, o que não foi percebido pelo juiz, com a atenção voltada para a jogada na ponta.

Estávamos comemorando, quando, na lateral do campo, o reserva Edu acenou com a mão para me substituir. Ele era o chato da turma, não jogava nada, mas tinha arrumado as camisas para o time. Mal entrou, sem ter tocado na bola, reclamou alguma coisa com o juiz, que, imediatamente, o expulsou. Ao pedir explicações, o árbitro justificou que, desde o início da partida, ele estava protestando. Confundiu-o com outro jogador nosso. Mesmo com um a menos, no minuto final, assinalamos o gol da vitória.

Nosso melhor desempenho foi em 1971, quando chegamos à semifinal de chave, após quatro vitórias. O adversário da quarta partida, vencida por nós por 3×0, foi o time da Coca-Cola, em que jogava um ex-profissional, João Carlos, campeão carioca pelo América em 1960. Teve passagens, também, por Fluminense e Botafogo, em que jogou com Garrincha, Didi e Nilton Santos.

Jornal dos Sports: 07/04/1971.
Foto de João Carlos: Revista Manchete Esportiva

Quando já ganhávamos por 3×0, fui tentar desarmá-lo, em uma bola à meia-altura, e ele me deu dois “chapéus” sucessivos. A jogada foi em frente à sua torcida, que vibrou intensamente. Corri em direção a ela, mostrando os três dedos da mão e gritando que podia levar quantos “chapéus” quisesse. O que importava era o placar.

Este foi o meu primeiro malsucedido duelo pessoal contra um ex-jogador. Mais tarde, enfrentaria Samarone e Antunes, ex-atletas do meu tricolor, com o mesmo insucesso, em outros campeonatos.

No quinto jogo, vencíamos por 1×0, a equipe do “Bate Fácil”, quando tivemos um companheiro expulso. Ele foi encerrado, naquele momento, pois na partida anterior, contra a “Coca-Cola Distribuidora”, um outro atleta nosso já tinha recebido cartão vermelho (guardem este nome – João Paulo). Para coibir a indisciplina, um time com dois jogadores expulsos ao longo do campeonato, mesmo que em jogos diferentes, estava automaticamente eliminado.

Nos campeonatos de 1974 e 1975, com a inclusão de muitos jogadores do Maranhão (principalmente da família “Lindoso”), trazidos para a equipe por um amigo de faculdade, disputamos o campeonato como “Araçagi”. Este nome, de uma praia de São Luís, foi escolhido para aproveitar o escudo das camisas, a própria letra “A”.

Nesta época, invertemos a cor do uniforme, que passou a ser azul, com frisos, escudo e números brancos.

Em pé da esquerda para a direita: Paulo Lindoso (técnico), Celso, Waldo, Zé Carlos, Carlos Lindoso (Menino), Álvaro Lindoso (Ave). Agachados: Chico Mineiro, João Paulo, Edson, Felicíssimo Lindoso (Mestre), Luiz Sergio e Wilson. Antigo campo da Escola de Educação Física da UFRJ (atrás do Canecão)

Foi o nosso pior desempenho, eliminados que fomos, naqueles dois anos, logo no primeiro jogo.  As condições atléticas não eram das melhores e as partidas, realizadas no domingo de manhã, com o sol a pino, não favoreciam aqueles que se dedicavam aos “embalos de sábado à noite”.

Em 1975, fomos desclassificados nos pênaltis, após empate em 1×1 no tempo normal, pelo “Azul e Branco”, por ironia, as cores do nosso time. Alguns lances do jogo foram registrados em Super 8, por um dos componentes do time, o Galvão. Vou realizar um média-metragem sobre o Amendoeira e, depois de anos, fui examinar na casa dele, o material filmado, para aproveitar na produção.

Para minha surpresa, após poucos lances, as imagens gravadas são de amigas nossas, tomando sol na Praia do Flamengo e participando de uma roda de violão. Ao final, aparece imagem do jogo, do pênalti desperdiçado, que nos eliminou. Por qual jogador? O mesmo João Paulo, expulso em 1971, no jogo com a “Coca-Cola”. Brinco com ele que todo filme tem que ter um vilão, e ele já foi o eleito, por mim, para ser o do filme sobre o Amendoeira. Se isto se consumar, realmente, será uma injustiça com um dos maiores craques que já vestiu a nossa camisa.

No início dos anos 80, eu e meus primos Celso e Luiz Sergio, da formação original do Amendoeira, retomamos o time com o seu primeiro nome, apenas para realizarmos amistosos. Conseguimos mantê-lo por apenas mais dois anos, já estávamos na faixa dos 30 anos, com filhos e outras obrigações familiares.

O Luiz Sergio era muito habilidoso, desde os tempos das peladas no quintal, um artilheiro nato. Chutava com as duas pernas e cabeceava muito bem. O Celso era um eficiente lateral/ponta-esquerda. Formamos, depois, uma boa dupla de zaga, que se entendia por música. Minhas qualidades técnicas, como já afirmei em outras crônicas eram limitadas, compensadas pelo vigor físico e pela raça. A minha participação se fazia “obrigatória”, pois providenciava as camisas, a bola, as fichas de inscrição nos campeonatos e outros detalhes de organização.

O jogo mais curioso desta fase foi contra o time do Jornal do Brasil. O seu goleiro tinha pouco mais de metro e meio, mas “muita elasticidade e agilidade”, segundo meu primo Ronaldo, repórter do JB. Por brincadeira, quis combinar conosco que nossos gols só seriam válidos se fossem de bolas rasteiras. Acabamos vencendo por 5×3.

Time do Jornal do Brasil. Primo Ronaldo, último à direita, em pé. Agachado, primeiro à esquerda, o saudoso J. Paulo

Descobri que, em hebraico, amendoeira é shoked, que significa vigilante. É a primeira a árvore a florescer na primavera, como se ficasse vigiando o seu início e o fim do inverno. Estaria aí origem da expressão “Amendoeira é a primeira”, que de jingle de concessionária de veículos Wilys virou grito da aguerrida torcida do Amendoeira Pelada Clube.

Redação

6 Comentários

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  1. Saudade das peladas no quintal com a amendoeira participando das partidas. Setenta anos depois ela continua resistindo a terrível especulação imobiliária.

  2. História do Rio, muito boa. Até hoje o Aterro tem espaço nessa história, democratizando o acesso ao nosso futebol. E o autor já ensaiando os primeiros passos como cartola.

  3. Eu confesso que não fazia a menor ideia de que o Aterro já tinha sido ponto de contribuição tão importante para a cultura do futebol! Uma pena que o Jornal dos Sports já não exista mais, o Jornal do Brasil, o campeonato de peladas do Aterro … uma pena que nossa seleção brasileira já não encha mais os nossos olhos com um futebol bonito e empolgante! Pelo menos a Amendoeira resiste! Bela crônica do nosso querido Zé Carlos!

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