
Destino francês
por Daniel Afonso da Silva
Após 50 dias de escuridão, a fumaça branca saiu do Elysée: habemus primeiro-ministro na França. O presidente Macron vem de escolher e nomear Michel Barnier. Um gaullista raiz. Conservador e pragmático. Homem de confiança de Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy. Político habilidoso e cheio de si. Um praticante do métier desde os anos de 1970. Tendo passado por diversos governos. Sendo ministro de estado em várias ocasiões. Chanceler francês sob o governo de Jean-Pierre Raffarin, entre 2002 e 2005. Comissário europeu mais de uma vez. E, especialmente, negociador do Brexit.
Um personagem de percurso excepcional para cumprir um desafio excepcional: desidratar os extremistas Le Pen e Mélenchon a ponto de atrapalhar a sua ascensão à presidência em 2027.
É disso que se trata. Nada mais. Tudo em contrário não passa ilusão.
A dissolução do legislativo francês, em inícios de junho de 2024, foi uma operação desesperada para contenção da ascensão de Marine Le Pen. O resultado das eleições europeias para o Parlamento em Bruxelas havia sinalizado uma ampliação extraordinária das margens de ação da herdeira de Jean-Marie Le Pen. Seguindo aquela toada, o presidente Macron anteviu que a sua presidência seria atropelada. Quem sabe, antes de 2027.
Bem antes do resultado das eleições europeias, Jordan Bardella, presidente do Rassemblement National, havia exigido a destituição governo – leia-se: primeiro-ministro – do presidente Macron.
Quando o resultado veio, restou ao presidente, por questão de sobrevivência, dar um golpe de misericórdia. Que, nesse expediente, foi voltar a consultar os franceses.
Seu propósito era a clarificação.
Ele queria saber se os herdeiros de Voltaire, Hugo e De Gaulle realmente gostariam de ser governados por um expoente extraído de um partido de raízes desavergonhadamente protonazistas, protofascistas e protonazifascista.
Após mês e pouco de tormenta – entre o primeiro e o segundo turnos das eleições parlamentares internas na França –, as urnas indicaram hesitação. Dando a entender que ninguém havia ganhado a parada. Nem Macron nem Le Pen muito menos Mélenchon.
Ninguém, assim, conquistou maioria absoluta. E, vendo bem, nem maioria relativa.
O partido que mais avançou foi o de Marine Le Pen. Que mais que dobrou em sua quantidade de cadeiras. Mas não foi o suficiente para se sagrar vencedor do pleito.
Como resultado, veio a confusão. Consequentemente, o presidente Macron voltou a lançar a França ao desconhecido. Recusando-se, de pronto, a receber a demissão de seu primeiro-ministro Gabriel Attal e mantendo o seu governo demissionário por mais de 50 dias.
As Olimpíadas foram um momento de trégua. Mas, logo após, a difícil realidade voltou a rondar as casas.
Como recurso, o presidente recorreu ao jogo de cena. Ouvindo todas as colorações dando a entender que, de fato, as levava em conta. Mas, ao final, ele agiu, sem surpresa, como todos imaginavam que ele iria agir: escolheu alguém capaz de, no tempo, neutralizar Mélenchon e Le Pen.
Michel Barnier vai servir, essencialmente, somente para isso: conter a ascensão irresistível dos extremos na França.
Quem deu a ideia foi Nicolas Sarkozy.
Em sua avaliação, a França continua um país de direita. Para ele, o seu único presidente mais à esquerda foi François Hollande (2012-2017). Pois, de resto, nem François Mitterrand fora, de fato, um esquerdista. Ele foi, antes de tudo, um homem prático, pragmático, cínico e encantador. Capaz de enganar qualquer serpente. Inclusive as mais ideologicamente consistentes. Dos comunistas a Jean-Marie Le Pen.
Ao passo que, De Gaulle (1958-1969) foi De Gaulle. Pompidou (1969-1974), Pompidou. Giscard (1974-1981), Giscard. Chirac (1995-2007), Chirac. Sarkozy (2007-2012), Sarkozy. E, agora, Macron (2017 ao presente), Macron.
Todos conservadores e ásperos à esquerda. O que indica que, historicamente, o eleitor francês vestiu-se mais de azul que de vermelho. E foi isso que Nicolas Sarkozy lembrou a Macron. Que, por sua vez, escolheu, não ao acaso, um membro do partido e da confiança de Sarkozy, Michel Barnier, para primeiro-ministro da França.
Tudo porque, até 2007, o problema era apenas a família Le Pen. Depois de 2012, o conglomerado Mélenchon passou povoar as preocupações do establishment francês. Adiante, Marine Le Pen – cada vez mais investida de peles de cordeiro – chegou ao segundo turno das presidenciais de 2017 e 2022. Ao passo que Jean-Luc Mélenchon, por sua vez, nas duas ocasiões, chegou em terceiro.
Em 2022, tão logo as urnas indicaram a reeleição de Macron, Mélenchon se autodeclarou primeiro-ministro. Em sua avaliação, a abstenção havia – como, também, ocorrera em 2017 – vencido o pleito.
Sua demanda era, portanto, ser nomeado pelos indiferentes. Uma demanda, por claro, ignorada. Mas a sua capilaridade entre os franceses seguiu aumentando. Não tanto quando a de Marine Le Pen. Mas bastante. Fazendo com que agora, no contexto imediato, Macron, Mélenchon e Le Pen sejam os grandes reis da selva. Com a projeção de em 2027, a França ser legada à disputa em Mélenchon e Le Pen.
Ao dissolver o legislativo francês, em inícios de junho, o presidente Macron sinalizou os perigos desse complexo destino francês. Onde os franceses podem ficar expostos a escolher entre Mélenchon e Le Pen.
Agora, ao nomear Michel Barnier, Macron e sua entourage descontinuam a tendência e ganham tempo para preparar novos cenários.
Um deles vai envolver o adestramento integral de Marine Le Pen. A irresistível ascensão do Rassemblement National impõe a necessidade de 1. naturalizar essa os Le Pen como frequentáveis ou 2. encontrar uma maneira de interditá-los. A primeira hipótese tem mais sentido. E parece ser bem isso que a escolha de Barnier sinaliza: incorporar o ideário Le Pen na condução, efetiva, do país.
Outro cenário vai no sentido de fazer sangrar Mélenchon, por que Macron não esconde o seu asco. Mélencon rompeu com os socialistas e criou um novo partido, La France Insoumise, justamente para escalpelar os socialistas. As origens socialistas de Macron o levam considerar essa manobra de Mélenchon como crime de lesa-majestade. Uma percepção que, agora, de par com a integração de Sarkozy no coração do sistema Macron, projeta o extermínio de Mélenchon como missão quase pessoal do novo primeiro-ministro francês.
E um terceiro cenário envolve, no interior das relações de Sarkozy e Macron, a constituição de candidatos eleitoralmente capazes de drenar votos de Marine Le Pen e de Mélenchon com o objetivo de canibaliza-los.
A sorte está lançada.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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Duvido que os franceses , tantos os gaullista quanto a esquerda entregue a rapadura para os sucessores dos colaboracionistas , herdeiros de Petain.Sim, pois o grupo da famiglia Le Pen é isso. De Gaulle fez concessões sob o aconselhamento de Foccart e deu um recado claro para La Cagoule: vencemos os nazistas , não vamos abrir mão de coisa alguma para vocês.
Macron , ao meu ver não tem esta estatura.
Creio que a estadia de Barnier no Hôtel Matignon será curta.
https://www.lemonde.fr/politique/live/2024/09/07/en-direct-nomination-de-michel-barnier-des-manifestations-a-nantes-nice-bordeaux-ou-laval-contre-le-contre-le-coup-de-force-de-macron_6304530_823448.html