Até parece a vida real no Brasil


Camélia de Zezuis era evangélica de saia longa, birote feio e buço grosso. Nunca sorria. Ela odiava o aborto e não abortava o ódio ao catolicismo. Um dia, por pura ironia, deus deu a Camélia de Zezuis um dom: ao por a mão na barriga de uma grávida ela saberia o destino do feto.

Foi então que os “pobrema” da evangélica começaram. Se a notícia do futuro do feto fosse muito ruim, Camélia de Zezuis era obrigada a elaborar uma versão alternativa para não aterrorizar a mãe. Mulher grávida é bicho assustado, aborta por qualquer coisa né.

Com o tempo e a prática, a nossa heroína conseguiu aperfeiçoar seu dom, não aquele recebido de deus e sim o que ela mesma inventou para nunca provocar um aborto. As grávidas geralmente adoravam as notícias dadas por Camélia de Zezuis. E assim a fama dela se espalhou.

Em virtude do aumento da clientela, nossa heroína foi obrigada a parar de trabalhar. Como era pobrezinha, Camélia de Zezuis começou a aceitar presentes das grávidas. Depois ela contratou um rapaz franzinho sorridente para cobrar o preço justo e controlar a fila de grávidas.

Sempre irônico, deus deu de ombros e deixou nossa heroína obrar. E lá se foram vários anos de prática, convites para sermões em templos evangélicos por todo país, aparições esporádicas na TV Gospel. A vida seguiu seu curso longo e tortuoso até dentortar Camélia de Zezuis.

Ela estava num Shopps quando foi abordada por uma mulher mal vestida, triste e precocemente envelhecida.

– Você mentiu para mim, sua piranha…

– A senhora está louca? Sabe quem eu sou? Em nome de Zezuis…

– Em nome de Zezuis é a puta que a pariu. Você não lembra de mim?

– Eu nunca a vi, não. A senhora deve estar me confundindo com outra pessoa.

A mulher pegou o braço da evangélica e usou a força que foi necessária para encostar a mão dela no próprio ventre flácido e decadente. Ao tocá-la Camélia de Zezuis foi transportada para o passado.

A heroína estava de novo em frente da jovem bem vestida de família abastada que havia sido estuprada e a procurou querendo saber se devia abortar. Apesar do que realmente viu, Camélia de Zezuis disse à moça que o filho dela teria um futuro brilhante.

– Carece abortar não, menina.

A moça acreditou nas palavras da vigarista evangélica e a tragédia não revelada se cumpriu. Primeiro, a moça foi expulsa de casa, pois a família não aceitava criar aquela criança indesejada. Condenada a pobreza, ela criou o filho com dificuldade numa favela dominada pela milícia.

De tanto ver e viver mergulhado na pobreza e na violência, o menino pegou gosto por coisas brilhantes.

– Sou ladrão de jóias honesto, não quero treta com a milícia. – ele dizia.

O “pobrema” é que os milicianos queriam treta, pois o garoto era fominha e não pagava proteção.

No dia em que fez 18 anos o rapaz foi preso. Quando não consegue roubar o ladrão um miliciano sempre vende a carcaça dele para a PM. A mãe esgotou de tristeza ao ver o moleque apodrecer num presídio esgotífero. Lá ele ganhou mais 20 anos de “cana” por degolar um tal de Jorjão.

Dias antes da mulher reencontrar Camélia de Zezuis o menino dela foi morto pelos manos do cara que ele degolou. Ao ver a evangélica, a moça lembrou a vida que tinha e a que o filho dela nunca pode ter. Os olhos dela brilhavam de raiva enquanto ela começou a espantar Camélia de Zezuis.

– Evanjegue, desgraçada. Você mentiu para mim, mentiu. Falsária.

Ninguém sabe o que a moça teria feito se nossa heroína tivesse dito a verdade. Talvez ela tivesse abortado, talvez não. Isso na verdade é irrelevante. O diabo mora na fraude, não na decisão de abortar ou não.

Camélia de Zezuis apanhou calada. O silêncio dela era verdadeiro e isso foi bom. Dizem que desde aquele dia a pitonisa evangélica passou a ser atormentada pelo fantasma do Jorjão, presidiário cuja vida foi abreviada desnecessariamente por causa da mentira contada à mãe do meio irmão dele.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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