Mudança de cenário
por Gilberto Lopes
O nascimento de um novo mundo: a Guerra Fria não terminou e nem terminará pacificamente
O chanceler Helmut Kohl e seus aliados no governo de George H. W. Bush tinham conseguido tudo o que queriam: uma unificação rápida e pacífica da Alemanha, a promessa da retirada das forças armadas soviéticas e a incorporação da Alemanha unificada à OTAN. Sua vitória parecia completa. O equilíbrio global do poder inclinava-se pacificamente a favor do Ocidente. Eram os anos 1990 do século passado.
O assessor de segurança nacional de George H. W. Bush, Brent Scowcroft, escreveu ao presidente no início do ano. Avisou que a mudança resultaria em nada se Washington não encontrasse uma forma de perpetuar seu poder no continente.[i] Os Estados Unidos não queriam desperdiçar a situação.
À medida que o processo de unificação alemã se acelerava, também se intensificavam os esforços norte-americanos para assegurar sua posição na Europa e seu papel na OTAN. “A Guerra Fria está terminando”, disse Brent Scowcroft, e, quando acabar, “a OTAN e a posição dos Estados Unidos na Europa devem continuar sendo o instrumento vital para a paz e a estabilidade que herdamos de nossos antecessores”.
Foi então que o secretário de estado James Baker garantiu a Mikhail Gorbachev que a OTAN deixaria de ser uma ameaça militar para a União Soviética, que seria transformada numa organização de caráter político, muito mais que militar. Gorbachev respondeu-lhe que a ampliação da OTAN para o leste continuava sendo inaceitável.
Economicamente dependentes, militarmente ocupados desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os países da Europa de Leste, confrontados nos anos 1980 com as dificuldades da URSS em continuar fornecendo-lhes o petróleo subsidiado com o qual financiavam suas importações, e incapazes de pagar suas contas, foram caindo nas mãos das instituições financeiras internacionais. Depois, libertados da ocupação soviética e dissolvido o Pacto de Varsóvia, foram paulatinamente incorporados nas estruturas do velho inimigo, a OTAN.
Contas a receber
Não aconteceu o mesmo com a Rússia. Helmut Kohl tinha deixado claro que qualquer movimento em direção à unificação alemã poderia ocorrer juntamente com esforços para superar a divisão da Europa, para construir algo como Mikhail Gorbachev sugeriu quando falou de uma “casa comum europeia”.
Helmut Kohl disse a Bush que, dada a situação financeira da URSS, a questão da adesão da Alemanha à OTAN era uma questão de “dinheiro”. Que a Alemanha Federal deveria assumir os compromissos da RDA com Moscou, mas agora pagos em marcos. Isto é, quanto a Alemanha estava disposta a pagar para que as tropas soviéticas se retirassem e Moscou aceitasse sua incorporação à OTAN.
Brent Scowcroft sugeriu que pagar 20 bilhões de dólares para garantir o fim da Guerra Fria nos termos de Washington era um bom negócio.
Mas Washington, acostumado a impor reformas econômicas drásticas aos países endividados (incluindo os da Europa do Leste), não estava totalmente convencido. Exigiam reformas econômicas também na URSS, às quais Mikhail Gorbachev resistia. Um projeto que incluía a privatização das principais empresas estatais russas, com a progressiva expansão dos princípios neoliberais a todo o mundo. Uma conta que (pelo menos até agora) não puderam receber totalmente, apesar dos avanços dos anos corruptos do governo de Boris Yeltsin (1991 e 1999).
País de imensos recursos, poderoso vencedor da Segunda Guerra Mundial, a Rússia soube resistir à ofensiva de um Ocidente que, afinal, também não se sentia atraído pela “casa comum” sugerida por Mikhail Gorbachev.
O certo é que a natureza política do conflito entre o Ocidente capitalista e o socialismo soviético após a Segunda Guerra Mundial obscureceu sua dimensão geopolítica, que emergiu mais claramente depois de resolvido o primeiro.
Após um período de transição caótico, com a dissolução da União Soviética, a Rússia foi recuperando um lugar no mundo. Em vez da “casa comum europeia”, a opção do Ocidente (Estados Unidos e OTAN) foi tentar cercá-la, avançar as fronteiras da OTAN para o leste, sem atender a nenhum dos muitos avisos de que isso era inaceitável para a Rússia. Os resultados são bem visíveis e estão desenvolvendo-se diante de nossos olhos, sem que o Ocidente ouça as advertências de Moscou sobre as consequências dramáticas da tentativa de derrotar militarmente uma potência nuclear.
Outras circunstâncias
Um Mikhail Gorbachev enfraquecido tinha dito, em outras circunstâncias, que o avanço da OTAN para o leste era inaceitável para a URSS. Trinta e cinco anos depois, a situação é diferente e as consequências dos erros de cálculo do Ocidente são evidentes.
A Alemanha vitoriosa há apenas 35 anos contrasta com sua situação atual, como o demonstra a análise econômica do grupo financeiro QNB. Exemplo de alta produtividade, a economia alemã foi o motor da economia europeia após a Segunda Guerra Mundial e a unificação do país. Foi quando Helmut Kohl impôs a Mikhail Gorbachev as condições para a retirada soviética da Alemanha.
Atualmente, a economia alemã é considerada a “doente da Europa”. Prevê-se que cresça 0,9% ao ano no período 2022-2026, muito abaixo do já fraco crescimento de 2% de antes da pandemia de Covid. Desde seu pico em 2017, a produção industrial acumulou uma queda de 16%. Resultados decepcionantes para uma economia que, além das tendências negativas do setor industrial, enfrenta obstáculos importantes decorrentes da inadequação das infraestruturas e da perda de competitividade, como destaca o relatório do QNB.
Por sua vez, o triunfo de Washington na Guerra Fria foi construído sobre a política financeira adotada pelo presidente da Reserva Federal, Paul Volcker, durante a administração de Ronald Reagan. Uma política de choque que quebrou milhares de empresas. Mas as taxas de juro elevadas inundaram os Estados Unidos de novos capitais, base de um endividamento que é hoje um câncer em metástase.
O último ato da Guerra Fria, que se pensava ter ocorrido em 1990, na verdade está desenvolvendo-se diante de nossos olhos. Os dois principais vencedores de então – os Estados Unidos e a Alemanha – são hoje dois gigantes com pés de barro, confrontados com um mundo muito diferente daquele que derrotaram há 35 anos.
Embora Moscou não tenha confirmado esta notícia, o diário alemão Die Zeit anunciava, em 1º. de outubro, que o chanceler Olaf Scholz queria falar por telefone com o presidente russo antes da Cúpula do G20, prevista para meados de novembro no Brasil, interessado em apoiar uma iniciativa diplomática para pôr fim à guerra.
Talvez nada ilustre mais claramente a mudança de cenário do que a natureza das conversações entre Helmut Kohl e Mikhail Gorbachev em 1990 – quando os regimes do leste europeu se desmoronavam e a própria União Soviética se desfazia – e a das eventuais conversações entre Olaf Scholz e Vladimir Putin hoje.
A linha vermelha
As duas partes têm objetivos diferentes neste conflito: a Rússia tenta garantir um entorno seguro, que considera ameaçado pela adesão da Ucrânia à OTAN. Não está lutando a milhares de quilômetros de seu território, mas em sua fronteira.
Isto parece ser um elemento essencial na análise da situação. Sobretudo quando os setores mais agressivos do Ocidente afirmam que uma vitória na Ucrânia seria apenas o início de novas conquistas. Uma expectativa impossível de ser sustentada no cenário atual – seja ele político ou militar.
A única “linha vermelha” entre o Ocidente – especificamente entre Washington e Moscou – é algo que obrigue uma das partes a uma escalada drástica do conflito, estimou Sergey Poletaev, analista especializado em política externa russa, num artigo publicado no site russo RT, em 30 de setembro.
Para a subsecretária de Defesa dos Estados Unidos para Assuntos de Segurança Internacional, Celeste Wallander, uma vitória russa na Ucrânia poria em dúvida a posição global dos Estados Unidos.
Para a ex-primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas, que representa as posições antirussas mais extremas e que substituirá o espanhol Josep Borrel como encarregada da política externa da Comissão Europeia, “os ucranianos não lutam apenas por sua liberdade e integridade territorial. Lutam pela liberdade da Europa. Se os russos forem bem sucedidos, voltarão para mais, porque nada os deterá”.
Para o ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson, que foi fundamental na rejeição de qualquer acordo de paz antes do início da guerra, “o Ocidente obtém enormes benefícios da guerra na Ucrânia”. “Kiev está lutando por nossos interesses, a um custo relativamente baixo”, acrescentou. Um custo que já supera os 200 bilhões de dólares, que economias como a britânica, ou a francesa, ou mesmo a norte-americana, profundamente endividadas, só podem suportar à custa do aprofundamento desses desequilíbrios.
Como disse o ex-secretário de Estado da administração de Donald Trump, Mike Pompeo, a expectativa é que, se conseguirem derrotar Moscou, os Estados Unidos deveriam convencer os russos a juntarem-se a eles para juntos enfrentarem a China.
Esta não parece ser uma expectativa realista. Em setembro, o presidente russo anunciou sua nova doutrina sobre a utilização de armas nucleares. “Reservamo-nos o direito de utilizar armas nucleares em caso de agressão contra a Rússia e a Bielorrússia. As armas nucleares podem ser utilizadas se um inimigo representar uma ameaça crítica para a soberania de qualquer um dos Estados, mesmo através da utilização de armas convencionais”.
Enquanto isso o Ocidente sonha em finalmente incorporar a Rússia ao seu mundo e completar assim uma obra que parecia terminada com o fim da Guerra Fria, mas esta é hoje uma aspiração que parece totalmente impossível.
No entanto, considerando as capacidades militares em jogo, não é de se descartar que o resultado acabe sendo – agora sim – uma solução final…
Cabe ao resto do mundo fazer os esforços necessários para evitar essa loucura.
Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Nota
[i] Os detalhes destas histórias estão contados no notável livro de Fritz Bartel, The triumph of broken promises. Harvard University Press, 2022.
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