O RDC e a lei de licitações

Atualizado às 20:32

Todo administrador público honesto detesta a atual lei de licitações porque ela o obriga a fazer um bocado de trabalho, e faz qualquer obra demorar 4-5 anos no mínimo.  Administradores desonestos detestam muito mais, porque suas “complicações” e “burocracias”  foram criadas para evitar a corrupção e desperdício.

Então volta e meia aparece um “gênio” que resolve “melhorar” e “modernizar” o processo, eliminando etapas “desnecessárias”.  Os  tucanos paulistas fizeram isso na Linha Amarela e no Rodoanel, com o resultado que sabemos.  O RDC  é outro exemplo dessa doença, só que pior.

A licitação em duas fases – projeto e execução – é indispensável para evitar desperdício de dinheiro público.   Só depois de feito o projeto detalhado de engenharia é que o governo pode calcular o preço justo para executar a obra.    Parte do projeto é uma imensa planilha que lista todos os materiais e serviços necessários para executar a obra, nos mínimos detalhes, com seus preços de mercado.  O orçamento que vai para o edital da segunda fase é o total dessa planilha.

“Formação de cartel” significa as empreiteiras combinarem entre si quem vai ficar com cada obra, sendo que a escolhida faz uma proposta exorbitante, e as outras não concorrem ou fazem propostas mais altas ainda.  Embora ilegal, essa prática é muito difícil de provar, e portanto continua muito comum  Eu mesmo tive o desprazer dessa experiência aqui na UNICAMP, um par de vezes.  Em um desses casos, a obra era a execução de um prédio de aulas, com custo de mercado (rigorosamente calculado a partir do projeto) de 3,5 milhões. Umas 20 empresas visitaram o local e retiraram o edital, mas só uma apresentou proposta — no valor de 4,7 milhões.  Felizmente, como o preço máximo de 3,5 milhões constava do edital, e não havia urgência, pudemos cancelar a licitação.

Vejam que o valor que consta do edital não é “quanto o governo tem no bolso”, como alegam os apologistas do RDC, mas sim o máximo que as empreiteiras podem cobrarSe a proposta vencedora for exatamente igual a esse valor, ótimo, porque é o preço de mercado — muito próximo do que uma empresa privada  pagaria pela mesma obra.  Se for menor que esse valor, melhor ainda; mas o objetivo da licitação não é conseguir grandes pechinchas, é apenas evitar que o governo seja lesado (bem como escolher a empresa de maneira isenta).  Colocar o orçamento da obra no edital dá essa segurança porque, se as propostas forem todas acima desse valor, o governo tem o direito de cancelar a licitação.  O orçamento no edital, e a possibilidade de cancelar licitações que extrapolarem o mesmo,  é a única proteçao eficaz que existe contra formação de cartéis.

Acontece que o cronograma da Copa está estupidamente atrasado; estamos em 2011 e nem licitamos ainda as obras que precisam estar prontas em 2014.  É absolutamente impossível fazer uma licitação bem feita, em duas fases, no prazo de três anos para obras desse porte.  Para  que o Brasil não dê vexame mundial em 2014, a única saída é então fazer a licitação em única etapa. Essa é a verdadeira razão que levou o governo a criar o  RDC.  Isso também explica porque esse mecanismo foi limitado às obras da Copa: o governo (e os tribunais de contas) sabem muito bem que ele não é um avanço, é um retrocesso — uma medida de desespero para lidar com uma situação de emergência.

Mas a licitação em uma etapa traz um problema imediato: sem ter o projeto de engenharia em mãos, o governo não tem como determinar o preço justo para a obra.  Parte do projeto de engenharia de uma obra civil, por exemplo, é a análise geológica para vai definir o tipo de fundação necessária, que pode ter uma grande influência no custo.   Sem o projeto, o governo só  tem uma idéia vaga do custo, por exemplo “entre 1 e 2 bilhões de reais”.  Que valor ele deve  adotar então?  Se escolher 2 bilhões e o custo mínimo real for 1 bilhão, as empreiteiras em cartel podem apresentar proposta de 2 bilhões e fazer uma obra de 1 bilhão; e aí o governo ficará encrencado com o tribunal de contas.  Por outro lado, se escolher 1 bilhão e o custo real for 2, a licitação  fracassará porque nenhuma empresa vai fazer um lance abaixo do custo; e com isso o cronograma atrasará 3-4 meses no mínimo. 

Vem desse impasse a segunda grande “inovação” do RDC, o “orçamento secreto”: o governo supostamente determina um vlalor para o edital  mas só revela esse valor depois que as empresas fizerem suas propostas.  Mas ningém explica como que ele vai determinar esse valor.  Obviamente, o orçamento não vai ser  discutido no Congresso.  Como dito acima, sem o projeto detalhado não é possível saber o preço justo.  Então, para não correr o risco de ficar sem a obra, o governo vai ter que chutar um preço bem alto, e aceitar a menor proposta que vier. Ou, pior ainda, vai perguntar discretamente para as empreiteiras quanto elas pretendem colocar nas propostas, e definir o orçamento nesse valor.

O RDC não diminui em nada o risco de cartel, mas piora muito suas consequências, pois não permite que o governo  descubra qual é o preço justo antes de fechar o contrato.  Não há soluçao mágica: com a necessidade imperiosa de realiizar a obra dentro desse prazo exíguo, o governo vai ter que pagar o que as empeiteiras quiserem cobrar.  

Algumas defesas da RDC postadas na rede tem comparado licitações tradicionais com com um sujeito pedindo um café e dizendo “tenho 50 reais no bolso, quanto você quer pelo café?”.  Essa analogia é furada;  uma mais correta seria “quero um café, mas só se custar menos que R$ 1, porque é isso o que a maioria dos bares está cobrando.”  A RDC , por outro lado, é mais como um sujeito na farmácia pedindo “um soro contra picada de jararaca, rápido, pelamordedeus! E diga-me quanto custa, porque, se for mais do que eu estou pensando  em gastar, bom, não sei, acho que vou ter que comprar assim mesmo.”. 

Mas isso não é tudo.  Numa licitação tradicional,  é o projeto detalhado que especifica o que o governo está comprando.  Um projeto de engenharia  normalmente  desce aos mínimos detalhes como torneiras, tomadas, lampadas e maçanetas. isso é necessário, porque a empreiteira que vai executar a obra não pode ser  obrigada a fornecer itens que não estão explícitos  no edital, que é a base do contrato.  Se o edital não disser que as paredes tem que ser pintadas, a empreiteira não vai pintar. Se não disser que as janelas devem ter vidros, ela só vai colocar os caixilhos.  Se não disser que as portas devem ter maçanetas dos dois lados, ela vai colocar de um lado só. 

No RDC, entretanto, o contrato para construção da obra será assinado sem definir o que exatamente vai ser construído. Isso permite que a empreiteira aumente seu lucro reduzindo a quantidade e qualidade do material.   Mesmo que isso acabe tornando a obra imprestável, será impossível penalizar a empreiteira; o jeito será contratar outra empresa para remediar os lapsos do primeiro edital.  Essa com certeza é a razão dos artigos da MP que falam em contratos complementares…

Suponhamos agora que não haja cartel, e consideremos a situação de uma empreiteira honesta que quer participar da licitação.  Quanto ela deve propor?  Se o edital estiver baseado em um projeto detalhado,  basta ela refazer Sem o projeto de engenharia, ela também vai ter apenas uma vaga idéia do custo da obra, “enrtre 1 e 2 bilhões”.  Então, se propuser 1 bilhão, ela corre o risco de levar um prejuízo de 1 bilhão; se propuser 2 ela provavelmente vai perder para uma concorrente que, igualmente no escuro, chutou algum outro número entre 1 e 2 bilhões.  Ou seja, o RDC é também péssimo para empreiteiras honestas.

Sei que muita gente na oposiçao está lutando para que a Copa seja um fracasso. São como o marinheiro que faz um rombo no porão do navio para mostrar aos donos que eles escolheram a pessoa errada para capitão.  Tive que conviver com muitos vermes dessa espécie; não tenho simpatia nenhuma por eles, e não vou fazer o jogo deles  Não ligo para futebol, mas já que nós brasileiros assumimos o compromisso de fazer a Copa, eu acho que temos que cumprí-lo.  Entendo que o único jeito agora é jogar fora as garantias da lei de licitações, e fazer no estilo RDC. 

Mas, Cara Presidenta, por favor: não nos insulte dizendo  que o RDC vai evitar  corrupção e economizar nosso dinheiro.  Sei que Você sabe que é justamente o contrário.  Por favor assuma que é uma solução de desespero, que não devia ter sido necessária. Mesmo porque já  tem gente acreditando nessas lorotas, e propondo que o RDC seja usado em todas as obras do governo. Deus que nos acuda!

Por Martinho


Caro Jorge Stolfi, vc diz:

“Vejam que o valor que consta do edital não é “quanto o governo tem no bolso”, como alegam os apologistas do RDC, mas sim o máximo que as empreiteiras podem cobrar. “

Discordo completamente dessa afirmação…e consequentemente do restante.

Na minha opinião saber o que está no orçamento é o mesmo que saber quanto o governo tem no bolso PARA UMA DETERMINADA LICITAÇÃO, não tenho dúvidas quanto à isso. Tanto é que, no Teu exemplo, esta determinada licitação teve que ser cancelada.

Assim, com o NOVO orçamento da NOVA licitação temos um NOVO  valor de quanto o governo tem no bolso. 

Se a empresa calcula poder fazer por 80, mas sabe que o governo orçou em 100, LÓGICO a empresa começa a proposta em 99,99.

Só que, agora, fiquei sabendo que sou um “apologista”

ps-trabalho com licitações tbm.

Luis Nassif

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