Operação Camanducaia: Violência de Estado e impunidade no Brasil

Por BHZ 

Com informações do jornal Folha de S.Paulo
 

Em 21 de outubro de 1974, 93 menores foram colocados em um ônibus em São Paulo e abandonados em situação precária e vexamosa por agentes do Estado na cidade de Camanducaia, interior de Minas Gerais. Esse episódio deu origem ao livro “Infância dos Mortos”, publicado por José Louzeiro em 1977 pela Editora Record. O livro, por sua vez, deu origem ao roteiro do filme “Pixote, a lei do mais fraco” dirigido por Hector Babenco e lançado em 1981. O processo de apuração do crime foi arquivado, um ano depois, sem punição a ninguém. Veja abaixo um relato jornalístico do caso e do arquivamento. [Nomes próprios convertido em sigla] ——

 
Da Folha de São Paulo, 21/10/1974, Primeiro Caderno, Página 6.
 
Ônibus para Camanducaia – Viagem do horror
 
“Fechem as cortinas, abaixem as cabeças…”
Começava a viagem do horror para 93 menores guardados até a última sexta-feira nos xadrezes do 3° andar do Deic, de São Paulo. As 20h30, eles foram retirados das celas, em grupos de 10, e levados para um ônibus estacionado na garagem do departamento, na rua Brigadeiro Tobias.
Nove homens levavam a caravana. Dois iam na frente, num Opala verde (com chapa de Mogi das Cruzes), cinco no ônibus; e mais dois numa perua C-14 amarela, fechando o cortejo.
Nenhum dos meninos sabia seu destino. A desculpa: “Quem mora em Cachoeirinha e Mairiporã? Vamos levar vocês para casa”. Só perceberam o que estava acontecendo quando foram largados, às 2h30 de sàbado, a 165 quilômetros de São Paulo, na rodovia Fernão Dias, completamente nus.
 
Tudo o que aconteceu na viagem, eles contaram no delegado de Camanducaia. Paulo Emílio Viana, e ao escrivão Delmar Dantas, que tomou os depoimentos dos menores. Ontem, eles foram trazidos para o Juizado de Menores de São Paulo, com um ofício do Juiz da Comarca de Camanducaia, Ranulfo Giacomelli.
 
Os menores – a maioria deles delinquentes – não sabem quanto tempo durou a viagem. Espremidos nos bancos e no corredor do ônibus, dizem ter contado 93 companheiros, de 10 a 17 anos. Alguns, com cabeças raspadas, à moda dos calouros, estavam detidos há apenas dois dias; outros, há sessenta dias, cabeludos. Durante o trajeto, alguns nomes foram ouvidos pelos garotos:
“Um se chamava Mingo, o chefe, o motorista era Roberto, e teve um que chamaram de tenente”.
   
Um dos garotos descreveu um dos homens com detalhes: “Era cabeludo e barbudo, de cabelos pretos ondulados, com 1,70 m de altura, usava jaqueta Lee e calça US-Top (brim desbotado)”. Outro foi descrito como o “baixinho, moreninho, de cabelo preto curto”. Nos postos rodoviários, os homens do Opala paravam e iam conversar com os guardas, e logo em seguida prosseguiam, liderando a caravana.
   
Os mais velhos riam e falavam alto. As vezes, levavam tapas, aos gritos de “cala a boca”. Os mais novos estavam com medo, alguns choravam. Quando se aproximavam de Camanducaia, uma pequena cidade ao sul de Minas, com 12 mil habitantes, a 160 quilômetros de São Paulo, pela Fernão Dias, começaram a ficar apreensivos. Os homens pediram documentos aos que ainda tinham algum. “Depois devolvemos”, disseram. Foram recolhidas carteiras de melhores e Alistamento Militar. Todas foram rasgadas.
   
Os alistamentos pertenciam a F.B.A., residente à rua Porto Ferreira, 90 (Itaim Paulista), L.C.A., residente à rua Dr. Seng, s/n (Bela Vista), E.M., residente à avenida Celso Garcia, 2.241 (Tatuapé), e G.V., residente à rua 2,n° 27 (Jardim Damasceno – Freguesia do Ó), todos com 17 anos.
 
O fim da viagem
 
A viagem prosseguia. O ônibus, descrito como um Mercedes verde e vermelho, com a inscrição de uma conhecida empresa de turismo de São Paulo, subia a serra da Camanducaia. Cinco quilômetros depois da cidade, avistaram o Posto e Churrascaria Cometa, que fica no quilômetro 433 (MG). Uns 1.200 metros adiante, pararam num largo acostamento, junto a um barranco, onde há uma pequena estrada à direita e uma placa de declive. Chovia e fazia frio.
 
“Vamos descer para tomar um banho de piscina, tirem toda a roupa”, disse um dos homens. Começava a gritaria dos dois lados. Lá, ficaram hastante tempo, sob vigilância, enquanto o ônibus manobrava e ia embora.
 
“Estou com frio, quero roupa”. “Estou com fome”. Os homens estavam armados de revólveres e metralhadoras, alguns traziam pedaços de pau com pregos e parafusos na ponta. “Aí eles começaram a bater na gente, era muita cofusão”. “Eles quebraram o meu braço”, são alguns dos depoimentos.
   
Os homens começaram a atirar para o ar. “Some pro meio do mato”. Uma rajada de metralhadora, tiros de revólver, uma coronhada. O pânico tomou conta dos garotos, que se espalharam pela estrada e pelos barrancos. “A gente se agarrava nas espinheiras, muitos ficaram machucados”. Os carros cantaram os pneus e saíram a toda velocidade.
A escuridão era total. Vento, chuva, frio. Noventa e três garotos ficaram perdidos na estrada, nus, as cabeças raspadas, molhados e com fome.
   
Os caminhões passavam e eles pediam carona para voltar. Um grupo chegou primeiro ao Posto Cometa, caminhando pela estrada.
 
O gerente da churrascaria, João Batista Ferreira, estava na caixa. Eram 3 horas da madrugada. De repente, olhou pela vidraça e levou um susto.”Pensei que estava no outro mundo”. Eles foram chegando de um lado e de outro. “Mais de cem, sô, todos nuzinhos”. Gritavam: “Estou com frio e com fome”, “Quero roupa”, “Me dá uma calça”, “Me dá uma camisa”. “Não acanha não, Zé, vai em frente”, dizia um dos garotos.
   
Cinco ônibus estavam parados no restaurante. A cena escandalizou duas velhinhas, que comentavam indignadas: “Onde nós estamos?” Um grupo de moças de Osasco e Santo André, estudantes na cidade de Machado, não continha o riso, procurando dissimular. O gerente disse: “Fiquei apavorado, com tanta mulher aqui dentro”.
   
Mandou fechar a porta e, quando os passageiros precisavam entrar ou sair, os empregados faziam guarda com os espetos de churrasco. “Para não deixar que todos invadissem o restaurante. Mas os garotos não molestaram ninguém”. Alguns conseguiram entrar por uma janela dos fundos e levaram duas toalhas para se cobrir.
 
Um grupo tentava arrombar uma perua estacionada no posto, onde o motorista, “um japonês”, dormia. Ele saiu empunhando um revólver, dizendo: “Fiquem calmos que eu vou resolver o problema de vocês. Vou arranjar um ônibus para levá-los de volta a São Paulo.”
   
“Aí eles se acalmaram um pouco”, conta o gerente. “O japonês continuava apontando o revólver para um menino pequeno, de uns 10 anos, que disse: “Me dá logo um tiro que eu estou cansado de sofrer”.
 
O empregado do posto de gasolina, Gonçalo Batista, foi cercado por um grupo, que queria tirar sua roupa. Ele pegou um pau e ameaçou: “Quem chegar perto eu mato”. Outros disputavam pontas de cigarro pedaços de pão atirados pelas janelas. “Eles ficaram rondando o posto bem uma meia hora”.
   
Enquanto isso, alguns menores entraram pela janela de um dos ônibus estacionados no posto e arrancaram as cortinas, disputadas por todos, para improvisar roupas. Um grupo de 8 deles, mais crescidos, apoderou-se do caminhão Mercedes, de chapa KG-23-73, de Camanducaia, pertencente a Sebastião de Góes Maciel, fizeram ligação direta no motor e fugiram em direção a Atibaia, onde foram presos mais tarde.
 
A cidade se mobiliza
 
Muitos menores continuaram o caminho, agarrando-se na traseira de caminhões e escondendo-se debaixo da lona. Um motorista recolheu um deles, de 10 anos e levou-o de volta até Itapeva, onde o entregou aos cuidados do delegado Otávio Lemes da Silva, com a seguinte observação: “Vem vindo uma tropa de garotos pelados por aí”.
Eram 3h30. O delegado e o cabo PM Otávio Alves Silvério, do 8° Batalhão de Lavras, saíram pela estrada, num jipe em direção a Camanducaia à procura dos meninos.
   
Na delegacia de Camanducaia, o sargento Pedro Bernardino da Silva recebeu um telefonema do gerente do posto Cometa, pouco antes das 4 horas.
   
“Saí acompanhado do soldado Acir Monteiro de Andrade e fomos até o posto”, ele conta. “Lá conseguimos prender 16 garotos. Não ofereceram resistência. Estavam mesmo querendo a proteção da Polícia. Todos eles deitados na entrada do posto, alguns cobertos de sacos plásticos de adubo; outros, com cortinas e toalhas. Deixamos esses na Delegacia e fomos no rumo de Itapeva à procura de mais alguns. Requisitamos um ônibus da Transul, que estava no posto. E voltamos outra vez em direção a Itapeva. Conseguimos prender mais 12 pelo caminho”.
   
Uma turma chegou a invadir, por volta das 4h30, o restaurante e hotel 130, no quilômetro 445 (MG), onde ganharam roupas e depois foram embora.
   
Ontem, de manhã, a notícia havia se espalhado pela cidade e todo a região comentava. Camanducaia foi invadida por um bando de garotos nus e famintos, quarenta e um deles estão presos na delegacia, os outros estão soltos por aí. Todos tinham um comentário a fazer, mas foram as mulheres do bairro boêmio de Camanducaia quem organizaram a coleta de roupas e foram levar comida para eles.
A situação dos meninos foi constatada pelas autoridades locais. O comentário geral: “É lastimável”.
   
O médico da Santa Casa de Camanducaia, Francisco de Sousa, levou alguns meninos para exame. Ele constatou dois casos de sífilis. Alguns tiveram mãos e pernas enfaixadas, J. J. de O., de 14 anos, teve o braço torcido em São Paulo, quando o prenderam, há poucos dias, e, depois, segundo afirmou, quebrado no barranco da estrada, com uma paulada dada por um dos homens. O médico engessou-o. Ele está com medo, pois trabalha num super mercado da avenida Angélica, e quando foi preso tinha ido receber um cheque na praça da República.
   
No xadrez da delegacia de Camanducaia, os 41 garotos esperaram um dia e uma noite até serem recambiados. O delegado Paulo Emílio Viana complementava a assistência dada pelas mulheres indo comprar pão pessoalmente nas padarias da cidade. O chão da cela estava literalmente cobertas de corpos, encolhidos uns contra os outros.”Tio, me dá um páo aí”. “Aqui em baixo, tio”. As mãos se esticavam fora das grades, enquanto os soldados iam fazendo a distribuição.
   
Alguns dos garotos estão ainda espantados. Suas histórias, registradas na ocorrência, são incompreensíveis. Não sabem porque foram presos e misturados aos outros. W.M.V., de 16 anos, residente à rua Dr. Luís dos Santos Medeiros, 50 (Vila Brasilândia), foi preso no dia 17, às 11h45, na porta de casa e levado ao 28° DP e depois enviado ao Deic. Trabalha na fábrica de retentores Sabó, na seção de embalagens. S.A.G.,de 14 anos, residente à rua Passagem C, n° 3 (Alto do Mandaqui), foi preso dia 12, na rua Voluntários da Pátria, quando ia para o serviço. S.S., de 15 anos, residente à Estrada Tibúrcio, 321 (Itaim),foi preso no Parque D. Pedro, quando esperava a namorada. J.A.S.G., de 15 anos, residente à rua 2, n° 18-A (Jardim Primavera), foi preso numa padaria, nas proximidades da sua casa, quando comprava pão.
 
14h30, o ônibus encosta no juizado
 
Quando o ônibus da Auto Viação Cambuí parou ontem, às 14h30, na rua Asdrúbal Nascimento, em frente ao Juizado de Menores, os 41 menores vendo-se cercados por câmaras fotográficas e de filmagem, colocaram suas cabeças para fora das janelas e começaram a se queixar. Mas isso durou apenas alguns segundos, pois logo um cabo da Polícia Militar passou mandando que fechassem as janelas e descessem calados.
   
Em fila, os menores trazidos da cidade de Camanducaia, Minas Gerais, onde foram abandonados nus e sem alimentação, por policiais do DEIC de São Paulo conforme diz a Polícia Mineira, entraram nas salas (prisão) do prédio do Juizado, antes que começassem a ser entrevistados pelos repórteres.
   
“Não sei ainda o que vamos fazer com eles”, dizia. desesperado, o escrevente de plantão Zilnede Catão Borges. “Tenho de esperar uma ordem do juiz, porque ainda nem sabemos se esses menores são de São Paulo mesmo”.
 
Atrás dos menores, entrou o delegado de Polícia de Camanducaia, Paulo Emilio Viana, acompanhado de oito soldados da Polícia Militar de Minas Gerais. Eles vieram escoltando o ônibus especial que transportou os menores de volta e Paulo Viana trazia um oficio protestando contra a atitude da polícia de São Paulo. Trazia também os termos de qualificação e identificação dos 41 garotos apreendidos naquela cidade.
   
“Só quero um recibo dizendo que vocês receberam os menores e a partir daí dou por encerrado o caso” – dizia calmamente o delegado mineiro ao escrevente Zilnede Borges, que parecia impassível com a situação. Minutos depois o escrevente anunciava que às 18 horas os menores seriam transferidos para o Departamento de Assistência e Triagem de Menores – DATI – e de lá alguns seriam liberados e outros enviados ao Recolhimento Provisório de Menores – RPM.
 
No Juizado de Menores, ontem, pouco antes da chegada dos menores de Camanducaia. o escrevente, funcionários, e policiais de plantão, afirmavam que até aquele momento não tinham recebido informação alguma de que policiais de São Paulo tinham levado “delinquentes” para outro Estado.
   
“Eu fiquei sabendo agora, mas não vou permitir que a imprensa faça nada, pois temos ordens de impedir qualquer noticiário referente a menores abandonados” dizia Antonio Carlos Gonçalves, escrevente encarrega da equipe do Juizado de menores.
Enquanto isso a vigilante (quem cuida dos menores detidos pelo Juizado) Bernadete M. Ruiz dizia:
   
“Eu estava estranhando mesmo o fato de não ter sido apreendido nenhum menor na noite passada”.
   
No Juizado de Menores existem duas salas onde ficam delidos os delinquentes e menores abandonados: uma para meninas e outra para meninos – mas até os 13 anos apenas. Os mais velhos são encaminhados diretamente ao DATI ou ao RPM. Segundo o escrevente Antônio Carlos Gonçalves, são recolhidos em média, dois mil menores por semana, sendo que aos sábados e domingos as salas do Juizado ficam repletas de crianças, chegando algumas vezes a ter até cinquenta menores detidos.
 
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Folha de São Paulo, 08/10/1975, Primeiro Caderno, Página 15.
 
O fim da Operação Camanducaia
 
Por unanimidade, as Câmaras Conjuntas Criminais do Tribunal de Justiça concederam “habeas corpus” impetrado em fovordo delegado R. L., determinando o trancamento de ação penal em curso na 24ª Vara Criminal e que apuraria as responsabilidades pela chamada “Operação Camanducaia”.
   
Com essa decisão, o rumoroso processo está definitivamente encerrndo, e os acusados – o escrivão J. A. P., investigadores V. M., J. S. G. e R. S. G., motorista O. A. e carcereiro C.F. da S. C., além do delegado L. – estão a salvo de qualquer sanção penal.
 
O procurador Francisco Bueno Torres foi favorável à concessão do “habeas corpus”, alegando que o caso já estava definitivamente arquivado, tendo sido reaberto por iniciativa do juiz da 24ª Vara Criminal, que nomeou uma curadora para os menores, a qual ofereceu queixa-crime contra os policiais, dando início a uma ação privada subsidiária.
 
No entender do procurador, a reabertura do caso contrariou as normas processuais vigentes, uma vez que o próprio procurador geral da Justiça optara pelo arquivamento. O voto do relator Dalmo Nogueira Vale também foi pela concessão do “habeas corpus”.
Redação

3 Comentários

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  1. É a ditabranda

    Tenso mesmo foi em outros países. Aqui foi sussa.

     

    ——

    Só não entendi uma coisa: por que os nomes foram preservados? Há alguma desculpa jurídica para isso?

  2. Papagaio faz, piriquito leva a fama

    É triste isto é Brasil, desde sempre.

    Fatos escaborosos como este não aconteceram somente na Ditadura MIlitar, os arquivos das redações jornalistas estão repletos de fatos emblematicos como este, denunciando a impunidade, a truculencia o deboche e a crueldade de como a elite dominante, sempre tratoru o povo desta Nação. E é bom lembrar que este assunto é atualissimo, basta dar uma voltinha em qualquer cracolandia das cidades brasileiras.

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