Uma história que continua sendo escrita, por Arnaldo Cardoso

A abolição da escravidão no Ceará, que no último dia 25 completou 137 anos e que, por ter sido declarada quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea já foi objeto de variados estudos

Uma história que continua sendo escrita

por Arnaldo Cardoso

A abolição da escravidão no Ceará, que no último dia 25 completou 137 anos e que, por ter sido declarada quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea já foi objeto de variados estudos, continua merecendo atenção de pesquisadores sobre a escravidão, abolição e pós-abolição no Brasil.

Ocorrida no dia 25 de março de 1884. a abolição no Ceará foi precedida por uma série de quatro greves iniciadas em 1881 nas quais trabalhadores do porto recusaram-se a transportar negros escravizados comercializados com fazendeiros de outras províncias, especialmente do sul. O movimento abolicionista irradiava do Rio de Janeiro – capital do Império – para todo o país, na esteira do declínio da cultura da cana-de-açúcar no Norte e da expansão da cultura cafeeira no Sul. A grande seca dos anos de 1877-1879 no Ceará também contribuiu fortemente para os acontecimentos na província.

Mas se há pontos de convergência nos estudos históricos quanto às causas da antecipação da abolição no Ceará, há também divergências, e isso tem ganhado novas leituras na medida em que novas pesquisas são realizadas sob diferentes perspectivas, abordagens, fontes e métodos, trazendo para o centro da cena personagens até então esquecidas pela História.

Em julho de 2020 ganhou espaço em veículos da mídia nacional e internacional, sendo também compartilhada em redes sociais, a descoberta do túmulo do jangadeiro cearense Francisco José do Nascimento (1839-1914), mais conhecido como Dragão do Mar, que liderou a última das greves de 1881 (30/08/1881) sucedendo José Luís Napoleão, negro liberto que liderou as três greves precedentes e que, posteriormente, fundou o Clube dos Libertos, organização engajada na luta abolicionista.

A localização do túmulo do Dragão do Mar no cemitério São João Batista, em Fortaleza, se insere entre os achados da pesquisa de doutoramento do jovem historiador cearense Licínio Nunes de Miranda cuja pesquisa “Land of Light: Slavery, Freedpeople and Abolitionism in Brazil, 1880–1888” desenvolvida na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, sob a orientação do professor Jeffrey D. Needell, versa sobre a trajetória do abolicionismo no Ceará.

Em recente comunicação estabelecida com Licínio de Miranda, através de e-mails, lancei lhe perguntas quanto a “uma nova escrita da história da escravidão, da abolição e do pós-abolição no Brasil”; sobre a “relevância histórica do anúncio do fim da escravidão no Ceará quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea”; sobre a “persistência das figuras do agregado, morador, empregado doméstico em propriedades de uma elite branca, no campo e na cidade, que se observou no pós-abolição”, sobre “a questão do acesso à terra pelos libertos”, entre outras. Parte das respostas de Licínio Miranda estão transcritas abaixo e, para uma melhor compreensão de suas ideias sobre a temática de suas pesquisas outros materiais podem ser encontrados como a mencionada matéria publicada na grande mídia com o título “A descoberta do túmulo de Dragão do Mar, jangadeiro cearense que ajudou a derrubar a escravidão no Brasil” ou artigos acadêmicos como o recente “O liberto Napoleão e o movimento abolicionista, 1881–1884”.

Diante da observação que fiz de que o primeiro censo nacional, de 1872, já mostrava que 2/3 de toda a população escrava do país estava concentrado nas províncias cafeeiras do sul e, da menção à avaliação do historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, autor de “O Norte Agrário e o Império” de que no Ceará “a grande seca de 1877-1879 deu apenas o golpe de misericórdia num regime de trabalho que estava, de fato, moribundo”, Licínio avaliou que “A terrível seca de 1877-79, segundo estudos modernos, matou mais de 200 mil cearenses de fome e doenças, além de ter arruinado a economia local, levando muitos fazendeiros a falência. Cafeicultores na região sudeste aproveitaram a oportunidade para comprar escravos dos cearenses arruinados. Que a seca contribuiu para facilitar o movimento abolicionista cearense, não há dúvida. Mas não significa que a escravidão iria desaparecer no Ceará se ninguém tivesse agido”. O pesquisador cearense complementou “Havia mais de 25 mil escravos em solo cearense, mais que várias províncias brasileiras, e elas não aboliram a escravidão antes do Ceará. O pioneirismo cearense em libertar todos os seus escravos antes do resto do país serviu como forte influência para os grupos abolicionistas nas demais províncias, que perceberam que um movimento popular e organizado seria capaz de obter sucesso. Se não fosse o Ceará, a Lei Áurea teria demorado ainda mais.”

Sustentando sua avaliação de que a abolição da escravidão no Ceará foi muito importante Licínio cita trecho de carta escrita pelo abolicionista Joaquim Nabuco e endereçada ao editor do jornal britânico The Times, de 08/04/1884, onde lê-se “a importância de tal evento para o movimento antiescravista no Brasil não pode ser mensurada”.

Sobre a persistência no pós-abolição de estruturas legadas do período escravagista como as formas de exploração do trabalho do liberto, Licínio avaliou que “o que faltou na abolição foi o acesso à educação, que era um problema comum à maior parte dos brasileiros, livres ou não. Muitos abolicionistas cearenses criaram escolas onde ensinavam ex-escravos a ler e escrever, uma empreitada admirável que foi solenemente ignorada pelos republicanos ao tomarem o poder em 1889. Poucos sabem que líderes abolicionistas nacionais, como Joaquim Nabuco e André Rebouças, defendiam a educação dos ex-escravos como a melhor forma de os tirarem da miséria. Mas outros preferiram entregar o poder nas mãos dos coronéis, que achavam mais producente manter a maior parte da população ignorante e submissa. A destruição e matança da população em Canudos, no começo da república, foi consequência direta desse desprezo pelo povo”. Licínio também fez questão de frisar que os escravos no Ceará não eram apenas negros, mas também indígenas e diversos mestiços.

Ainda salientando a importância da educação, o pesquisador cearense expôs seu entendimento de que “somente com educação de qualidade haverá mudanças significativas na sociedade”. Teceu também enfáticas críticas ao presente, ao descuido com a cultura e o acervo histórico do país “a Biblioteca Pública do Ceará está fechada há oito anos para reformas infindáveis, e o museu do Ceará em igual situação há mais de dois anos, pelos mesmos motivos. […] “não podemos afirmar que se trata de um problema único do Ceará. O Museu Nacional no Rio de Janeiro, antigo palácio dos imperadores brasileiros, foi completamente destruído após incêndio causado por negligência e incompetência. Isto ocorreu há quase três anos e quase ninguém se importou. O prédio continua arruinado e o museu fechado. Que fim levou o museu do Ipiranga, em São Paulo, igualmente fechado há anos? O desprezo pela educação e cultura (que não é somente carnaval ou futebol) é uma marca da sociedade brasileira, e que espero que venha a mudar um dia”.

Nos últimos anos importantes estudos históricos, antropológicos, arqueológicos, sociológicos entre outros, tem contribuído significativamente para uma compreensão mais abrangente e democrática da História do Brasil e da formação da nacionalidade brasileira.

Assim como nas décadas de 1920-30, depois 1950-60, vivemos hoje uma nova fase de esforços para contar nossa história, adensada inclusive com a produção acadêmica de uma nova geração de intelectuais negros das diferentes regiões do país. Isso também está ocorrendo em outros países.

Em Portugal, historiadores dedicados a uma história pós-colonial defendem uma “descolonização do ex-colonizado e do ex-colonizador” e para isso destacam a importância da caracterização e classificação do evento histórico e de como se constitui os termos do debate nacional. Nessa perspectiva, é preciso atentar para “o nome que se dá à coisa”.

Colocando em foco a história do colonialismo português é um exemplo do exposto no parágrafo anterior as quatro formas de se falar da “guerra colonial”, “guerra do ultramar”, “guerra de libertação” e, simplesmente, “guerra”. É elucidativo o fato de que os dois primeiros termos – utilizados por alguns até hoje – se vinculam ao período ditatorial do Estado Novo (1933-1974), a uma visão regressista e colonialista.

Consideramos que exemplos como esse reforçam a importância de se ter sempre posto que na produção de conhecimento histórico são operados processos de apropriação e reapropriação, de ressignificação de elementos extraídos das várias fontes constituintes da pesquisa histórica.

É certo que isso suscita debates sobre a objetividade na pesquisa histórica e, nesse sentido é oportuno resgatar a reflexão do filósofo da História Paul Ricoeur, de sua epistemologia da História apresentada na obra “História e Verdade” (1968) em que trata da narrativa histórica, da objetividade e da subjetividade, da teoria do texto e da ação e da importância da memória na pesquisa histórica, sem esquecer da ética do historiador.

A pesquisa histórica ao lançar luzes sobre o passado tem o poder de melhorar a compreensão do presente e auxiliar na construção do futuro. Para países onde a questão racial persiste como um problema, o pós-abolição continua a demandar o esforço investigativo de historiadores e de todos que almejam uma sociedade mais justa.

Arnaldo Cardoso, cientista político

Redação

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