Democracia americana pode entrar em colapso, por Arnaldo Cardoso

E por que essa decadência deve preocupar além dos próprios norte-americanos e dos vizinhos canadenses, outras nações do planeta?

Democracia americana pode entrar em colapso e ser substituída por ditadura de direita

por Arnaldo Cardoso

As festividades de Natal e virada de ano costumam exigir mesmo dos mais pessimistas – ou seriam, realistas? – um esforço de identificação e potencialização de sinais positivos no horizonte, de perspectivas de mudanças positivas, afinal, como familiares e amigos costumam repetir, ninguém aguenta tanta notícia ruim, incrementadas pela pandemia da Covid-19 que novamente abre o ano com uma nova cepa e recordes de contágios. Rejeitando uma “overdose de realidade” alguns optam por algum escape, seja através da gulodice na ceia ou em algumas taças a mais de vinho – àqueles para quem isso é possível –.

Mas há outros que, atendendo a uma alegada exigência da consciência, não baixa a guarda e segue sua autoconferida missão de alertar para precaver. Não como um flerte com o desastre, mas como um último exercício de otimismo na razão.

Parece ser o caso do cientista político canadense Thomas Homer-Dixon que é professor e diretor executivo do Cascade Institute da Royal Roads University, autor de livros como “Commanding Hope: The Power We Have to Renew a World in Peril” (2020). No último 31 de dezembro ele publicou no jornal canadense The Globe and Mail  o artigo “The American polity is cracked, and might collapse. Canada must prepare” que nos coloca diante de um cenário que não aceita tergiversações, como mostram seus dois parágrafos iniciais, reproduzidos abaixo:

“Em 2025, a democracia americana pode entrar em colapso, causando extrema instabilidade política doméstica, incluindo violência civil generalizada. Em 2030, se não antes, o país poderá ser governado por uma ditadura de direita.

Não devemos descartar essas possibilidades apenas porque parecem absurdas ou horríveis demais para imaginar. Em 2014, a sugestão de que Donald Trump se tornaria presidente também teria parecido a quase todos um absurdo. Mas hoje vivemos em um mundo onde o absurdo regularmente se torna real e o horrível lugar-comum”.

É possível que esse início tenha desestimulado muitos de continuarem a leitura e, sobre aqueles que prosseguiram, fica uma suspeita de algum masoquismo. Isso me traz várias recordações, como a de um estimado professor de Ciência Política que, para defender-se da pecha de pessimista, repetia que “o otimista é geralmente um mal-informado”.

Lembro-me também de quando li o ótimo artigo de Octávio Paz, de abril de 1998, intitulado “EUA toleram vícios da liberdade, mas não da tirania” no qual o grande escritor mexicano reflete sobre o tema da decadência dos Estados Unidos, com seu estilo singularíssimo que misturava conhecimento histórico, refinada análise política e verve literária.

O artigo é iniciado assim “No começo, era apenas um segredo sussurrado aos ouvidos por algumas pessoas bem-informadas. Logo depois os entendidos começaram a publicar sábios ensaios em revistas especializadas e a pronunciar conferências nas universidades. Hoje o assunto é debatido em mesas-redondas de televisão, em artigos e pesquisas publicados em revistas e jornais, em coquetéis e jantares, nos bares da moda. Em menos de um ano os norte-americanos descobriram que ‘estão em decadência’.

Após salientar a dificuldade de se definir decadência, Paz nos convida a refletir “A que tipo de decadência nos referimos quando falamos dos Estados Unidos dos anos 80? A despeito de incertezas e imprecisões, partilhamos quase todos a ideia – melhor, o sentimento – de viver uma época crepuscular. Mas o termo decadência não descreve, a não ser aproximadamente, a nossa situação. Não estamos diante do fim de um império, uma civilização ou um sistema de produção: o mal é universal, corrompe todos os sistemas e envenena os cinco continentes.

O tema da crise geral da civilização não é novo: há mais de cem anos, filósofos e historiadores escrevem livros e ensaios sobre o declínio de nosso mundo”.

Se não é nova a discussão sobre a decadência dos Estados Unidos [ou seria do Ocidente?], da mais influente potência do século 20, que endossada pelo clássico de Tocqueville se reconhece como a mais vigorosa democracia do Ocidente, o que o artigo do professor Homer-Dixon apresenta de novo?

Será a constatação do estado avançado dessa anunciada decadência/ruína?

E por que essa decadência deve preocupar além dos próprios norte-americanos e dos vizinhos canadenses, outras nações do planeta?

Como dito no próprio título do artigo do estudioso canadense, que nos últimos quarenta anos dedicou-se ao estudo de causas da guerra, colapsos sociais, violência étnica e genocídio, a primeira preocupação é com as consequências sobre o Canadá de um colapso da democracia nos Estados Unidos.

No artigo há um alerta aos seus compatriotas sobre os riscos de uma crise agravada no país com o qual fazem fronteira e tem relações de interdependência econômica, política e de segurança.

Homer-Dixon explicita sua inquietação no seguinte trecho: “O país [EUA] está se tornando cada vez mais ingovernável e alguns especialistas acreditam que ele pode entrar em guerra civil. Como o Canadá deve se preparar?”.

Antes de responder a essa pergunta, o autor expõe um exercício bem sucedido de síntese apontando as principais causas do iminente colapso da democracia norte-americana. Ao tratar de causas materiais impulsionadas pela “mudança tecnológica e globalização” salienta o peso da “estagnação da renda da classe média, a insegurança econômica crônica e o aumento da desigualdade” como fatores que, em conjunto com outros de ordem política, social, moral e ética, avançam corroendo as instituições sociais e políticas do gigante do Norte.

Tratando das mudanças na economia, argumenta que o abandono da indústria pesada e da manufatura, seguida da exaltação da tecnologia da informação, da produção simbólica e das finanças como as principais fontes de riqueza dos Estados Unidos, provocaram a depreciação dos salários e do valor social do trabalho em contraste com a exaltação da especulação e da remuneração do capital.

Nesse ambiente, também desempenhou papel significativo “o egoísmo generalizado da elite: os ricos e poderosos na América geralmente não estão dispostos a pagar impostos, investir nos serviços públicos ou criar os caminhos para a mobilidade vertical que diminuiria as diferenças econômicas, educacionais, raciais e geográficas de seu país”. 

Sobre a polarização política nos Estados Unidos que, estimulada por Donald Trump e seus acólitos ao longo dos quatro anos do último governo, Homer-Dixon avalia que “As desigualdades econômicas, raciais e sociais da América ajudaram a criar a polarização ideológica entre a direita e a esquerda políticas, e o agravamento da polarização paralisou o governo ao mesmo tempo que acentuou as desigualdades”.

Completando o quadro, o autor nos lembra que “a população [norte-americana] está armada até os dentes, com algo em torno de 400 milhões de armas de fogo nas mãos de civis”.

Embora esse processo de radicalização política não tenha sido iniciado por Trump, podendo ser rastreado pelo menos desde os anos 2000 com a chegada de George W. Bush à Casa Branca acompanhado de seus neoconservadores e, posteriormente, com as rebeliões de uma elite racista e nacionalista diante do governo de Barack Obama, Homer-Dixon ressalta que “os demagogos da direita [trumpista] levaram o processo de radicalização mais longe do que nunca. Ao transformar o medo e a raiva das pessoas em uma arma, o Sr. Trump e uma série de acólitos e aspirantes, como Tucker Carlson da Fox e a Representante da Geórgia Marjorie Taylor Greene, capturaram o famoso GOP (Grand Old Party) e o transformaram em um culto à personalidade, quase fascista, que é um instrumento perfeito para destruir a democracia”.

Essa identificação de um caráter fascista encontra respaldo até mesmo na fala de um comentarista conservador, David Frunn, citado por Homer-Dixon “o trumpismo cada vez mais se assemelha ao fascismo europeu em seu desprezo pelo império da lei e glorificação da violência”.

Aproximando-se da conclusão do artigo, o cientista político canadense faz a seguinte ponderação sobre a democracia “é uma instituição, mas a base dessa instituição é um conjunto vital de crenças e valores. Se uma fração substancial o suficiente da população não mantém mais essas crenças e valores, a democracia não pode sobreviver”. 

Além de bastante acertada a ponderação é também pertinente a um expressivo número de países que, em graus variados, se veem engolfados pela crise de representatividade que deprime democracias liberais em diferentes cantos do mundo, tirando-lhes legitimidade.

Citando o sociólogo Jack Goldstone, da George Mason University, de Washington, Homer-Dixon relatou diálogo em que ouviu do referido pesquisador que desde 2016 aprendemos que o otimismo inicial sobre a resiliência da democracia dos EUA se baseava em duas falsas suposições: “Primeiro, que as instituições americanas seriam fortes o suficiente para resistir facilmente aos esforços para subvertê-las; e segundo, que a vasta maioria das pessoas agirá racionalmente e será atraída para o centro político, de modo que seja impossível para grupos extremistas assumirem o controle. ”

Quanto a essas duas suposições, elas já se revelaram igualmente falsas em outras democracias ocidentais nos últimos anos.

Homer-Dixon expõe no artigo o temor, sustentado por indícios não desprezíveis, de uma volta de Donald Trump à Casa Branca na eleição de 2024, precedida de uma vitória do Partido Republicano na eleição legislativa de meio de mandato, em 2022. Completa seu raciocínio com a avaliação de que “[Trump de volta à Casa Branca] será a bola de demolição que derrubará a democracia, mas o processo produzirá um desastre político e social [que se estenderá para além de Trump]”.

Evidenciando o respeito a uma tradição do realismo político o cientista político canadense dirige-se aos seus compatriotas e sentencia que “Precisamos começar reconhecendo totalmente a magnitude do perigo. Se Trump for reeleito, mesmo nos cenários mais otimistas, os riscos econômicos e políticos para nosso país serão inúmeros”.

Em seguida sugere ao Primeiro-Ministro do Canadá a instalação de um comitê parlamentar permanente, pluripartidário, para acompanhamento da situação política e social dos Estados Unidos, para que o governo canadense esteja respaldado por informações qualificadas e de inteligência para a adoção de medidas de prevenção.

Quase no final do inquietante artigo de Homer-Dixon o Brasil surge com a seguinte caracterização “O Brasil de Jair Bolsonaro, com sua enfermidade social crônica e disfunção administrativa” seguido de menções a Viktor Orban da Hungria e Vladimir Putin da Rússia, como governantes simpáticos ao iliberalismo e autoritarismo de Trump.

A leitura da análise desenvolvida pelo cientista político canadense, reproduzida nos últimos dias por diversos jornais norte-americanos, europeus e até em alguns canais da mídia independente brasileira, certamente produz inquietação no leitor brasileiro pelo quanto sugere de reflexões sobre a grave situação política e social que o Brasil se encontra, especialmente desde a chegada ao poder do tiranete de inspiração fascista e condutor de uma necropolítica cujos danos já produzidos à sociedade brasileira se estenderão por muitos anos.

Para aqueles que ainda se encontram animados pela corrente de final de ano ecoando votos e confiança em mudanças para 2022, animados pelas pesquisas de opinião que apontam a derrota de Bolsonaro e turbinados pela bela vitória de Boric no Chile, não é excesso de prudência considerar o que o professor Homer-Dixon pontua sobre esperança.

“Se a esperança é um motivador e não uma muleta, precisa ser honesta e não falsa. Precisa ser ancorada numa compreensão realista baseada em evidências dos perigos que enfrentamos e numa visão clara de que é preciso superá-los para se realizar um futuro melhor”.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), escritor e professor universitário.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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