Zizek: se Mandela tivesse vencido, não seria tratado como herói

Sugerido por MiriamL

Do The Guardian

Se tivesse realmente vencido, Mandela não seria apresentado como herói universal  

“A papai-noel-ização de Nelson Mandela” [1]

Slavoj Žižek

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu, no redecastorphoto

Nas últimas duas décadas da vida, Nelson Mandela foi festejado como modelo de como libertar um país do jugo colonial sem sucumbir à tentação do poder ditatorial a sem postura anticapitalista. Em resumo, Mandela não foi Robert Mugabe, e a África do Sul permaneceu democracia multipartidária com imprensa livre e vibrante economia bem integrada no mercado global e imune a horríveis experimentos socialistas. Agora, com a morte dele, sua estatura de sábio santificado parece confirmada para toda a eternidade: há filmes sobre ele (com Morgan Freeman no papel de Mandela; o mesmo Freeman, aliás, que, noutro filme, encarnou Deus em pessoa). Rock stars e líderes religiosos, esportistas e políticos, de Bill Clinton a Fidel Castro, todos dedicados a beatificar Mandela.

Mas será essa a história completa? Dois fatos são sistematicamente apagados nessa visão celebratória. Na África do Sul, a maioria pobre continua a viver praticamente como vivia nos tempos do apartheid, e a ‘conquista’ de direitos civis e políticos é contrabalançada por violência, insegurança e crime crescentes. A única mudança é que onde havia só a velha classe governante branca há agora também a nova elite negra. Em segundo lugar, as pessoas já quase nem lembram que o velho Congresso Nacional Africano não prometera só o fim do apartheid; também prometeu mais justiça social e, até, um tipo de socialismo. Esse CNA muito mais radical do passado está sendo gradualmente varrido da lembrança. Não surpreende que a fúria outra vez esteja crescendo entre os sul-africanos pretos e pobres.

A África do Sul, quanto a isso, é só a mesma versão repetida da esquerda contemporânea. Um líder ou partido é eleito com entusiasmo universal prometendo “um novo mundo” – mas então, mais cedo ou mais tarde, tropeçam no dilema chave: quem se atreve a tocar nos mecanismos capitalistas? Ou prevalecerá a decisão de “jogar o jogo”? Se alguém perturba esse mecanismo, é rapidamente “punido” com perturbações de mercado, caos econômico e o resto todo. Por isso parece tão simples criticar Mandela por ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid. Mas ele chegou realmente a ter alguma escolha? Andar na direção do socialismo seria possibilidade real?

(…) Marx disse (…) em sua fórmula bem conhecida que, no universo da mercadoria, “as relações entre pessoas assumem o disfarce de relações entre coisas”.

Na economia de mercado, acontece de relações entre pessoas aparecerem sob disfarces que os dois lados reconhecem como liberdade e igualdade: a dominação já não é diretamente exercida e deixa de ser visível como tal. (…) É preciso ter em mente que a grande lição do socialismo de estado foi, sim, que a abolição direta da propriedade privada e a regulação das trocas pelo mercado, se não vierem acompanhadas de formas concretas de regulação social do processo de produção, acabam sempre, necessariamente, por ressuscitar relações diretas de servidão e dominação.

Se apenas se extingue o mercado (inclusive a exploração do mercado), sem substituí-lo por uma forma própria de organização comunista da produção e das trocas, a dominação volta como uma vingança, e com a exploração direta pelo mercado.

A regra geral é que, quando começa uma revolta contra regime opressor semidemocrático, como aconteceu no Oriente Médio em 2011, é fácil mobilizar grandes multidões com slogansque só se podem descrever como “formadores de massa”: pela democracia, contra a corrupção, por exemplo.

Mas adiante, quando nos vamos aproximando das escolhas mais difíceis, quando nossa revolta é vitoriosa e alcança o objetivo direto, logo nos damos conta de que o que realmente nos atormentava (a falta de liberdade pessoal, a humilhação, a corrupção das autoridades, a falta de perspectiva de, algum dia, chegar a ter uma vida decente) rapidamente troca de roupa e reaparece sob um novo disfarce.

A ideologia governante mobiliza aqui todo o seu arsenal para nos impedir de chegar àquela conclusão radical. Põem-se logo a dizer que a liberdade democrática implica responsabilidades; que a liberdade democrática tem seu preço; que ainda não estamos plenamente amadurecidos, se esperamos demais da democracia.

Assim, rapidamente, passam a nos culpar, nós mesmos, pelo nosso fracasso: numa sociedade livre – é o que nos dizem – todos somos capitalistas que investimos na nossa própria vida; e temos de alocar mais dinheiro para a educação do que para nossas festas e noitadas e lazer. Que se não fizermos assim, nossa democracia não terá sucesso.

Num plano diretamente mais político, a política externa dos EUA elaborou detalhada estratégia para controle de danos: basta converter o levante popular em restrições capitalistas-parlamentares palatáveis. Isso, precisamente, foi feito com sucesso na África do Sul, depois do fim do regime de apartheid; foi feito nas Filipinas depois da queda de Marcos; foi feito na Indonésia depois da queda de Suharto e foi feito também em outros lugares

Nessa precisa conjuntura, as políticas radicais de emancipação enfrentam o seu maior desafio: como fazer avançar as coisas depois de acabado o primeiro estágio de entusiasmo, como dar o passo seguinte sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária”, em resumo: como avançar além de Mandela, sem se converter num Mugabe.

Se quisermos permanecer fiéis ao legado de Mandela, temos de deixar de lado as lágrimas de crocodilo das celebrações e nos focar em todas as promessas não cumpridas infladas sob sua liderança e por causa dela. Assim se verá facilmente que, apesar de sua indiscutível grandeza política e moral, Mandela, no fim da vida, era também um velho triste, bem consciente de que seu triunfo político e sua consagração como herói universal não passavam de máscara para esconder derrota muito amarga. A glória universal de Mandela é também prova de que ele não perturbou a ordem global do poder.

Nota dos tradutores

No Brasil, o que a CIA, amancebada com as empresas-imprensa locais, fez/fizeram foi converter os pré-levantes populares de 1954… Em restrições-parlamentares IMPALATÁVEIS [:-)], processo que se conhece como “a redemocratização de Sarney” e que a tucanaria da privataria saudou, eufórica, e na qual mamou durante quase 50 anos. Até que, em 2001, começou a perder eleições presidenciais (NTs).

[1] Ver também sobre vários aspectos da crítica à papai-noel-ização de Mandela:

(a) We Are Witnessing the “Santa Claus-ification” of Nelson Mandela [Estamos assistindo à papai-noel-ização de Nelson Mandela], 7/12/2013, Cornel West, Breibart TV.

(b) “Converteram Mandela numa espécie de princesa Diana” (em 7/12/2013, Jonathan Cook, Information Clearing House).

(c) “O sequestro do legado de Mandela” [The hijacking of Mandela’s legacy], 8/12/2013, Pepe Escobar, Russia Today

(d) “Manifesto sobre o Camarada Mandela”, Partido Comunista da África do Sul, 6/12/2013, Workers Worldredecastorphoto (traduzido).

(e) “Libertem Mandela (das grades da mentira)”, 20/7/2005, Tony Karon, em Moon of Alabama, (traduzido em redecastorphoto).

Redação

21 Comentários

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  1. Bingo

    Zizek estraçalha a desfaçatez do mundo.

    Os líderes do mundo lá na África pranteando Mandela quando há pouco tempo atrás o consideravam terrorista e subversivo e nenhum pedido de desculpa à sua família.

     

    1. Desulpe-me Assis mas achei o texto

      uma mera retorica esquerdoide. É muito fácil vir com estes discursos pseudo-extremistas que não apontam nenhum caminho praticável.

      É o que representa a blablarina para o ecologismo.

      Infantilidades.

      É por causa de textos assim que Zizek nunca será lembrado, e Mandela sim. Que blablarina será logo esquecida, e Lula não.

      1. Lionel

        Não li a matéria como uma crítica à Mandela e sim ao sistema que amarra e dificulta qualquer formulação contrária ao que preconiza a Escola de Chicago, FMI e Banco Mundial, a falta de liberdade de um país traçar o seu próprio roteiro tanto que cita os problemas no Brasil e em outros países. “No Brasil, o que a CIA, amancebada com as empresas-imprensa locais, fez/fizeram foi converter os pré-levantes populares de 1954 (…)”

      2. caras e curumins

        “Que blablarina será logo esquecida, e Lula não.”

        Já dizia Barack: “That’s my man right here… I love this guy”

        John Brennan, em conversa reservada com os assessores para assuntos tupiniquins: “Lionel Ripaud is our man in Blog do Nassif… I LOUVO THIS CURUMIM” (Brennan ainda enrosca a língua de Camões com a de Shakespeare.)

    1. Daniel, Zezek está criticando o sistema e não Mandela

      Do artigo: “Por isso parece tão simples criticar Mandela por ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid. Mas ele chegou realmente a ter alguma escolha? Andar na direção do socialismo seria possibilidade real?”

  2. Uma passagem me lembrou a nossa grande mídia, Lula e Dilma

    “quem se atreve a tocar nos mecanismos capitalistas? Ou prevalecerá a decisão de “jogar o jogo”? Se alguém perturba esse mecanismo, é rapidamente “punido” com perturbações de mercado, caos econômico e o resto todo.”

  3. Até Zizek sabe

    “No Brasil, o que a CIA, amancebada com as empresas-imprensa locais, fez/fizeram foi converter os pré-levantes populares de 1954… Em restrições-parlamentares IMPALATÁVEIS [:-)], processo que se conhece como “a redemocratização de Sarney” e que a tucanaria da privataria saudou, eufórica, e na qual mamou durante quase 50 anos. Até que, em 2001, começou a perder eleições presidenciais (NTs).”

  4. enxerto na tradução!

    O trecho sobre o Brasil não faz parte do texto de Zizek no Guardian.  Não sei de quem é a culpa pela inclusão indevida, mas fica muito ruim esse tipo de manipulação. Gera desconfiança…. 

  5. EQUIVOCADO

    Dizer que Mandela não venceu é, inescapavelmente, dizer que foi derrotado. O que é um erro.

    Pode-se, certamente, concordar com a tese de que o mercado e os demais sistemas que compõe a atuação capitalista logo agem para lançar garras sobre as sociedades recém-libertadas e com os exemplos fornecidos, inclusive da própria África do Sul.

    Mas, por outro lado, não se pode esperar que 100 anos de dominação, a maior parte deles totalmente excludentes, possam ser corrigidos em 4 anos.

    Podemos imaginar que, se mandela tivesse permanecido no governo por mais tempo, poderia ter avançado mais. Sua opção por entregar o poder após 4 anos, porém, se de um lado hipoteticamente impediu um avanço econômico e social maior, por outro foi um legado de desapego impressionante para alguém que poderia ter morrido presidente se quisesse.

    Ok, os avanços sociais tornaram-se muito lentos após Mandela e a corrupção cresceu nos governos posteriores. Isso é derrota de Mandela?

    De forma nenhuma. As sociedades avançam aos seus próprios ritmos quando em liberdade. Alguns podem achar que avançam mais sob uma mão mais forte, capaz de peitar o mercado. Mandela poderia ter feito isso sem tornar-se um Mugabe. Mas onde teria ficado a Liberdade pela qual ele tanto lutou?

    Mandela venceu em todos os sentidos de sua atuação política livre. Ponto.

  6. Uma sábia professora que tive

    Uma sábia professora que tive no ensino médio sempre disse: Em história “se” não existe. E tenho que concordar com ela. Não adianda fazer congecturas sobre o que não aconteceu. A história de Mandela é essa e ponto final. Um grande lider  soube entender o que era necessário ser feito e se arriscou muito nesse processo.

  7. Artigo cortante de Zizek. A

    Artigo cortante de Zizek. A critica ao legado de Mandela não é por conta do homem, este tem “grandeza moral e política”, mas das engrenagens do sistema capitalista, que impedem avanços sociais mais profundos.

    Esta análise, guardadas as devidas proporções e as especificidades de cada país, pode nos remeter ao papel de Lula na conduçao do seu governo. São frequentes as críticas pela esquerda do seu papel conciliador e da falta de disposição para contrariar interesses poderosos, por exemplo, da grande mídia, do mercado financeiro, etc.

    A questao que Zizek nos coloca é: estaria Mandela sendo reverenciado se tivesse alterado as estruturas de poder na África do Sul? Teria o governo Lula sobrevivido e alcançado alguns avanços sociais se confrontasse estas mesmas esturturas?

  8. Ter reconhecido que era uma

    Ter reconhecido que era uma espécie de bibelô, um ícone mundial, foi a principal virtude de Mandela, que poderia, e felizmente não o fez, ter jogado a África do Sul na aventura e no desastre socialista.

    O continente africano nunca foi capitalista, e esse é o problema.Lá não existe um mercado.

    1. Como é?

      Você tem que conhecer a África! Minha mãe morou no Senegal por 4 anos e o que não falta são consumidores. Ou você acha que os chineses, indianos e libaneses estão invandindo lá porquê?

  9. A grande utopia!

    Concordo com o comentário do Assis, e acrescento: se considerarmos como autônomos os presidentes dos países, seremos ou tolos ou massas de manobras!

    Em verdade, o que conta, não são os que elegemos, ou em quem acreditamos poder mudar as regras do jogo!

    Estas regras, muito bem elaboradas para manterem o “status quo”  dos poderosos que as fizeram, terão  que serem cumpridas, custe o que custar, independente do que ocorra, e de quaisquer ideologias!

    Os que não a observarem estarão fora do jogo, e  possivelmente  depostos e/ou assassinados!

    Assim, tudo não passa de um grande jogo, e  as Corporações são na realidade as que dão as cartas!

    DEmocracias e Ditaduras ? – Até que funcionam – para aqueles que acreditam!!!!!

  10. repetindo a recomendação

    Repito abaixo parte de um comentário que já fizera em postagem anterior.

    “Recomendação de leitura: capítulo 10 de A DOUTRINA DO CHOQUE – ASCENSÃO DO CAPITALISMO DE DESASTRE, da Naomi Klein. Título do referido capítulo: “A democracia nasce acorrentada: a liberdade restringida da áfrica do Sul”.

    Segue abaixo um trechinho.

    “O que aconteceu foi que o CNA se viu apanhado num novo tipo de rede, feita de regras e regulações ocultas, todas elaboradas para confinar e restringir o poder dos líderes eleitos. Enquanto a rede se estendia por todo país, poucas pessoas perceberam que ela estava lá. Contudo, quando o novo governo chegou ao poder e tentou se mover livremente, a fim de dar a seus eleitores os benefícios palpáveis da libertação que eles esperavam e pelos quis tinham votado, as malhas da rede se enrijeceram e a administração descobriu que seus poderes estavam severamente limitados. Patrick Bond, que trabalhou como conselheiro econômico no gabinete de Mandela durante os primeiros anos do governo do CNA, recorda que o gracejo dentro da equipe era: “Ei, nós temos o Estado, onde está o poder?”Quando o novo governo tentou tornar tangíveis os sonhos da Carta da Liberdade [agenda genérica do CNA], descobriu que o poder estava em outro lugar.”

    Lula foi mais esperto: na CARTA AO POVO BRASILEIRO, tratou de antecipadamente tranquilizar os detentores do poder efetivo e, ao mesmo tempo, enganar a galera.”

    Alguma forma de socialismo – seja lá que bicho é esse?

    Não se pede tanto…

    Bastava uma verdadeira reforma agrária.

    Um projeto de educação. (Mercadante como tapa-buraco e aplicador de provinha é piada.)

    Saúde decente. (Nem precisa ser padrão Sírio e Libanês.)

    E, é claro, não aderir à corrupção. (Na novilíngua nassifiana: “excesso de pragmatismo”.)

    Digamos que isso aí já quebrava o galho.

    Para não ficarmos em considerações genéricas, recomendo a leitura integral de A DOUTRINA DO CHOQUE – ASCENSÃO DO CAPITALISMO DE DESASTRE.

  11. Mesma m… é o baralho!

    Mudar séculos de barbaridades em poucos anos sem guerra civíl é impossível. Aliás, nem com a dita.

     

    Isso é papo brabo de quem quer minimizar os ganhos dos governos de “esquerda” mundo afora.

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