Justiça

Aos amigos, tudo – inclusive a lei, por Carolina Resende

Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

Aos amigos, tudo – inclusive a lei

por Carolina Resende

Em meio à recente aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023 voltam ao noticiário nacional reportagens que tratam de desvios e de malversação de recursos públicos. As matérias identificam repasses fraudulentos para municípios no interior do Maranhão que “custearam” exames e consultas fantasmas. Outrora tratavam de “escolas fake” e do superfaturamento de maquinários agrícolas. Em comum, essas inúmeras reportagens tem a origem de recursos – o Orçamento Secreto. Mas afinal, o que é o Orçamento Secreto?

O Orçamento Federal é um instrumento fundamental para ações do Poder Público. É por meio da alocação de recursos no Orçamento que se concretizam boa parte das políticas públicas no país. É o Orçamento que detalha, por exemplo, quanto será gasto em saúde, educação e políticas assistenciais a cada ano. As decisões alocativas das verbas federais envolvem, como não poderia deixar de ser, escolhas políticas. A peça orçamentária tem origem em uma proposta do Poder Executivo, ou seja, na Presidência da República, e é aprovada, com ou sem modificações, pelo Poder Legislativo – o Congresso Nacional.

O termo Orçamento Secreto se refere ao conjunto de um tipo de emenda parlamentar criado na LDO de 2020, as chamadas emendas de relator geral. Naquele ano foi instituído em lei que um único congressista controlaria bilhões de reais do Orçamento Federal. O controle ocorre por meio do direcionamento de recursos orçamentários previstos para localidades desejadas. Dito de modo mais simples, se existe um gasto previsto de R$ 1 milhão para determinada política pública, o relator geral decide para qual município ou estado esse recurso será repassado.

Essa parcela do Orçamento Federal é secreta porque a sociedade não sabe a que interesses esses repasses respondem. Não há, apesar do verniz de transparência dado pelo Congresso Nacional, publicidade dos reais autores dessas emendas. Ademais, não se garante equidade entre os parlamentares na distribuição de recursos sob essa modalidade de emenda. Cabe, então, se questionar por quais motivos alguns parlamentares tem esse poder de envio de verbas em detrimento de outros. É constitucional, legal ou, ao menos, razoável que os recursos sejam distribuídos dessa forma?

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O fato de o Poder Legislativo ser parte das decisões sobre o Orçamento Federal por meio de emendas não é um problema em si, já que o Congresso Nacional é um ator legitimado para incidir no processo legislativo orçamentário. Em última instância, o Orçamento Público é uma peça política que reflete – ou deveria refletir minimamente – o desejo popular na distribuição dos recursos. É falacioso o discurso de que as escolhas são técnicas. Existem indicadores, parâmetros e métricas que podem e devem ser utilizadas para balizar o direcionamento dos recursos. Mas escolhas que envolvem priorização de gastos e de políticas públicas envolvem invariavelmente decisões políticas, ainda que amparadas em dados e estatísticas. Essa constatação, conquanto seja uma afirmação óbvia, ainda precisa ser dita, especialmente em tempos de disputas ideológicas disfarçadas de escolhas técnicas.

A questão que se coloca é de que modo essa incidência no Orçamento Público é realizada e a serviço de quem. É preciso analisar se as intervenções estão de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro e quais são os beneficiários. Não se trata de criminalizar a política ou o uso de emendas parlamentares, mas de questionar se essas escolhas estão refletindo as necessidades da população. Se o orçamento está chegando na parcela da população em maior condição de vulnerabilidade. Se as normas legais e constitucionais estão sendo cumpridas.

Na prática, o Orçamento Secreto é uma fatia do Orçamento Federal legalmente destinada a parlamentares que dão sustentação política ao governo sem qualquer critério socioeconômico para a distribuição dos recursos, seja em troca de apoio em votações de interesse do governo, seja em troca de apoio nas bases eleitorais. Desse modo, as emendas de relator geral podem ser executadas sem obedecer a nenhum critério populacional ou indicador social, o que nos leva a casos como o do município de Pedreiras, que informou ter realizado extrações dentárias em valor equivalente a catorze dentes por habitante apenas em 2021 – pagas com verbas do Orçamento Secreto – como revelado em uma das reportagens mencionadas no início.

Não custa lembrar que a própria LDO estabelece que: a) esse tipo de repasse de verbas federais está condicionado à prévia divulgação em sítio eletrônico dos critérios de distribuição dos recursos, considerando os indicadores socioeconômicos da população beneficiada pela política pública; b) a execução do orçamento não pode ser utilizada para influenciar na apreciação de proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional.

Os diversos casos revelados pela imprensa, do tratoraço às escolas fakes, jogam luz em um problema maior: o preço da sustentação política do governo Bolsonaro. A LDO de 2023 garante a reserva de recursos de R$ 19 bilhões apenas para o Orçamento Secreto. Ainda que se tenha comemorado a queda da impositividade (obrigatoriedade de execução) das emendas de relator, o fato é que a mera existência delas é motivo de preocupação para um próximo governo, que terá de negociar com o Congresso possíveis remanejamentos dessas emendas. Isso porque o Executivo não está autorizado a realizar essas trocas sem o aval do Congresso.

Em tempos de Teto de Gastos, que justificou sucessivos cortes de verbas em vários órgãos e programas, esse montante de R$ 19 bilhões concorrerá diretamente com as demais políticas públicas. Diversas instituições já se manifestaram sobre os prejuízos causados pelo esvaziamento de ações em decorrência dos cortes orçamentários promovidos pelo governo federal nos últimos anos.

O Balanço do Orçamento do Conhecimento[1], que traz dados das perdas do Ministério da Ciência e Tecnologia e do Ministério da Educação, mostra que entre 2014 e 2021 houve uma perda acumulada em termos reais de quase R$84 bilhões nas áreas de pesquisa, inovação e ensino superior. No documento “A Conta do Desmonte”[2], o INESC mostra que em 2021 a execução do orçamento na área ambiental foi a menor dos últimos três anos, contabilizando R$ 2,5 bilhões para todos os órgãos ambientais (Ministério do Meio Ambiente, Ibama, ICMBio, Jardim Botânico), incluindo também o Fundo Nacional de Mudanças Climáticas (FNMC). Ou seja, o recurso reservado para o Orçamento Secreto em 2023 é sete vezes maior que toda a execução da área ambiental em 2021. Segundo dados do mesmo documento, é quase 50 vezes maior que todo o orçamento executado em 2021 no conjunto de ações voltadas diretamente para a infância e adolescência.

Esses são alguns exemplos, mas existem inúmeros outros em todas as áreas que compõem a política social no Brasil. Com o crescimento real natural de algumas despesas obrigatórias, a reserva de R$ 19 bilhões para o Orçamento Secreto e o Teto de Gastos é provável que o governo estrangule ainda mais alguns órgãos. Será que a população brasileira está ciente? Não bastasse o cenário de fome, inflação, desemprego ou emprego precário, falta de moradia adequada e fila para o recebimento de benefícios assistenciais, o Brasil assiste passivamente à escalada do preço da “democracia”.

O Orçamento Secreto não se resume à redução da lógica do gasto público a interesses privados locais. É um instrumento que também tem o poder de influenciar as eleições que se avizinham. É mais que escândalos de desvios de verbas. É um meio de sustentação de um projeto político e precisa ser debatido como tal.

Carolina Resende – Pesquisadora do Grupo de Economia do Setor Público e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFRJ

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O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

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[1] https://observatoriodoconhecimento.org.br/wp-content/uploads/2022/05/balanco-anual-orcamento-do-conhecimento-2021_compactado.pdf

[2] https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/04/BalancoOrcamento2021-Inesc-1.pdf

Leia também:

O desmonte do arranjo institucional e financeiro para o financiamento do desenvolvimento brasileiro, por Fernando Amorim Teixeira e Gustavo Teixeira F. da Silva

O orçamento do “toma lá dá cá”: a “velha política” em nova roupagem, por Linnit Pessoa

Um pedido de socorro, por Daniel Consul

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