Impressões preliminares sobre a Lei Anticorrupção

A Lei 12.846, de 1º de Agosto de 2013,  alusiva à responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas: impressões Preliminares 
 
A recente Lei 12.846, de 1º de Agosto de 2013,  “dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências”.
 
Entrará em vigor cento e oitenta dias após a data de sua publicação, é dizer, no final de janeiro de 2014.
 
Todos sabemos que a Lei atende ao compromisso internacional assumido pelo Brasil no ano de 2000 perante a OCEDE, ao ratificar a Convenção sobre o combate da corrupção de funcionários públicos estrangeiros em transações comerciais internacionais.*
 
Diversos países vêm regulando por meio de Lei as práticas e condutas consideradas corruptas por funcionários e servidores públicos estrangeiros. Nos EUA temos o conhecido “FCPA- Foreign Corrupt Practices Act”, e no Reino Unido, a  UK Bribery Act, que alcança, como sabemos a Inglaterra, a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do Norte.
 
As organizações internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional criaram listas “negras” das empresas e governos  sob suspeita da prática de suborno para negar ajuda a países que toleram práticas de corrupção.
 
Inicialmente chama a atenção logo o artigo 1º da Lei 12.846/2013 ao afirmar a responsabilidade objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra  a administração pública, nacional ou estrangeira.
 
A Lei reafirma a existência da responsabilidade das pessoas jurídicas, de natureza objetiva em seu artigo 2º, pelos atos lesivos, praticados em seu benefício exclusivo ou supõe-se de terceiros em associação com aquela empresa ou grupo.
 
A Lei novamente marca que pretende regular a responsabilidade da pessoa jurídica, sem prejuízo da responsabilidade individual das pessoas naturais, seus dirigentes ou administradores ou terceiros partícipes do ato que considera ilícito. (artigo 3º, § 1º). 
É constante e clara a mens legis. Atingir a pessoa jurídica em todas as suas formas de organização contemporânea. O § 2º de seu artigo 4º, alude a sociedades controladoras, controladas, coligadas, consorciadas, solidariamente responsáveis.
 
Seu artigo 5º é muito abrangente e compreensivo ao prever ou considerar como atos lesivos aqueles que  (..) atentem contra o patrimônio nacional ou estrangeiro, contra os tradicionais princípios da AP ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos (…) Seguem uma série de incisos.
 
Seus similares estrangeiros são mais focados e contemplam condutas típicas mais e melhor definidas com contornos mais objetivos.
 
Já se vai longe atingida pela poeira dos tempos à velha noção de “atos de comércio”, depois substituída por “atividades negociais”, conceito acentuado pelo saudoso Prof. Sylvio Marcondes, que substituiu a então (ultrapassada) teoria dos atos de comércio pela dizia-se, “moderna” teoria da empresa.
 
Posteriormente graças a todo um esforço doutrinário ingente, foi possível no Brasil trazer toda a teorização do direito empresarial, graças, sobretudo, em larga medida aos trabalhos pioneiros de, dentre outros, Rubens Requião e Waldírio Bulgarelli.
 
Embora não sejamos especializados nesta seara do Direito, é do conhecimento convencional que  o Direito Comercial tradicional passou por três grandes fases: a fase do comerciante (subjetiva), a dos atos de comércio (objetiva) e a do empresário (qualificado pela noção de atividade).**
 
A Lei 12.846/2013, utiliza expressamente as seguintes  expressões: a) pessoas jurídicas;  b) sociedades empresárias; c) sociedades simples; d) fundações; e) associações; f)sociedades estrangeiras; g)sociedade sucessora; h) controladoras; i) controladas;j) coligadas; e l) consorciadas.
 
Tudo, evidentemente, sem prejuízo, diz a lei, da responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, coautora ou partícipe do ato ilícito (artigo 3º) da Lei.
 
Inicialmente acreditamos que o conceito de pessoa jurídica, cunhado e utilizado pela lei tem dupla função. Diz o óbvio. Pretende responsabilizar além de seus dirigentes, a empresa em si mesmo considerada, como diz a lei, a “pessoa  jurídica”.
 
Embora saibamos que há tempos existam formas de atingi-la, não podemos descuidar a noção elementar segunda a qual,  empresas são, além de figuras jurídicas com personalidade jurídica e patrimônio, em sentido lato, formas de organização com intuito lucrativo, muito variadas geridas por seres humanos.
 
É dizer, a empresa em si mesma é uma realidade normativa importantíssima e complexa, mas não é muita coisa se não investigarmos de que maneira ela está estruturada perante o Direito, quer em relação ao aspecto externo-estrutural quer em relação à sua compostura  interna, sua organização, hierarquias, comandos, delegações, competências, etc.
É dizer, parece importante saber, de que maneira, essa ou aquela “pessoa jurídica”- conceito em si muito “pobre”, ou  que diz muito pouco- reconheça-se, apresenta-se de fato e de direito  no mundo real.
 
Será, acreditamos mais proveitoso o intérprete (da lei), perguntar-se: sob o rótulo daquela “pessoa jurídica”, qual o grupo de normas e princípios jurídicos e fatores que a governam em todos os sentidos. Quem e como é administrada? Como funciona? Quais são as atribuições de seus gerentes, diretores, acionistas, etc. Que relações entretêm com os diversos grupos empresariais? É isolada, é uma corporação, é nacional, tem capitais mistos, é estrangeira? E assim por diante.
 
Ainda que a lei aluda à responsabilidade objetiva, parece inevitável procurar responder a todas essas questões para ter-se uma noção exata, ou aproximada do que estamos a lidar quando pretendemos responsabilizar uma empresa, ou como quer a lei, simplesmente uma “pessoa jurídica”.
 
Acreditamos que é de fundamental importância responder as questões acima, até para que possamos saber, dentre outras coisas, quem são os verdadeiros controladores (diretos ou indiretos) da empresa ou da atividade empresarial, para, aí sim, sermos justos e equânimes na distribuição das responsabilidades, ainda que a lei aluda à figura da “responsabilidade objetiva da (pessoa jurídica)”, como se pudesse, o fenômeno normativo ser tão poderoso e mágico que pudesse alterar a criatividade empresarial internacional simplificando de tal maneira a realidade; que se pudesse atingir a empresa simplesmente pelo fato dela ser constituída como uma “pessoa jurídica”.
 
O legislador ignora que a realidade da vida é muito mais rica que seu pobre conceito. “Pessoa Jurídica” pode ser um simples empresário, uma empresa multinacional, um poderoso conglomerado ou uma pequena empresa familiar.
 
Tais diferenças não podem ser desconsideradas em diversos aspectos na exegese e aplicação da lei como o futuro certamente demonstrará e a jurisprudência, por certo compreenderá.
 
Da mesma maneira, não parece indiferente saber, se estamos diante de uma sociedade anônima (aberta ou fechada). Em face da responsabilidade jurídica não é irrelevante saber- seja para ações regressivas, seja para um quadro real do ocorrido, quem são os seus dirigentes, responsáveis e também quem são os seus acionistas majoritários e minoritários.***
 
É dizer, a forma na dicção literal e simplista  da lei, “seria” mais importante a noção elementar de “pessoa jurídica”,  que seu  conteúdo,  seus desdobramentos corporativos e de controle, seus aspectos  econômicos, sociais, culturais, financeiros, transnacionais, etc.
 
De todo modo, essa parece mesmo ter sido a intenção da lei. Identificada à empresa – a pessoa jurídica- e sua responsabilidade, ela(s) será atingida, solidariamente, segundo o § 2º do artigo 4º, obrigando-as, ao pagamento de multa e reparação integral do dano causado.
 
Ademais, na esfera administrativa prevê-se: a) multa e b) publicação extraordinária da decisão condenatória, sanções que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente.
 
Inúmeras outras questões polêmicas afloram da interpretação da citada Lei que mereceriam sem dúvida um comentário muito mais alentado (que refoge a esta nota).
 
Dentre elas, destacamos: a) as gravíssimas sanções previstas no artigo 19 da Lei, como o perdimento de bens, a suspensão ou interdição de suas atividades, a dissolução compulsória, a proibição de receber incentivos, b) a decisão do processo administrativo por autoridade do órgão que instaurou o processo; c) a ausência de critérios técnicos e jurídicos para tal decisão; d) a previsão de um acordo de leniência, ausente uma doutrina mais desenvolvida no Brasil sobre sua extensão e consequências, inclusive em relação às demais normas jurídicas brasileiras (de âmbito penal), extinção de punibilidade, falta de uma definição clara do nível de vinculação do Ministério Público ao que lá ficou estabelecido, dentre outros problemas.
 
Vê-se que a doutrina e a jurisprudência brasileira tem um enorme trabalho pela frente. Voltaremos ao assunto oportunamente.
 
 
*Trata-se do Decreto número 5.687 de 31 de janeiro de 2006, que promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. Há outras normas anteriores a ela, mas não temos tempo ou condição de desenvolver o comentário nesta oportunidade.
 
**Aliás, as observações que desenvolvemos nesse despretensioso artigo levam em conta nossa experiência como consultor jurídico na área do direito público e empresarial, já que como ressaltamos, não temos expertise na área do direito empresarial “privado”, embora seja forçoso reconhecer que hoje essas tradicionais diferenças vão se esvaindo rapidamente devido a forte interpenetração entre o capital público e o capital privado o que obriga o interprete e o estudioso do direito a não ficar preso a “disciplinas” ou dogmáticas  e esquemáticas divisões ortodoxas, tendo que enfrentar e resolver os problemas que lhe são apresentados, estudando o fenômeno jurídico em sua integralidade, quer no âmbito nacional, quer no âmbito regional, quer no âmbito supranacional, quer no âmbito internacional, todos hoje integrados.
 
***Segundo dados coletados no site do Bovespa, entre os anos de 2006 e 2007, mais de 26 companhias abriram seu capital, das quais 20 no âmbito do novo mercado, em 2007, o número foi de 64 companhias, das quais 44 no segmento do novo mercado. Vide também a importante Lei 10.303/2001 que, ao reformar a Lei das S/As protegeu ou tentou proteger as minorias acionárias  e, assim, estimular o mercado de capitais no Brasil. De 2004 a 2008, 110 companhias abriram capital ou realizaram operações de emissão de valores mobiliários.
 
Marcelo Figueiredo é advogado, consultor jurídico. professor associado de Direito Constitucional da PUC-SP e visitante de diversas faculdades de direito na América Latina e na Europa. Presidente da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas – ABCD, Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-SP, Membro da idêntica Comissão no Conselho Federal da OAB e Membro (reeleito) do Comitê Executivo da Associação Internacional de Direito Constitucional – IACL-AIDC. Autor de diversas obras jurídicas publicadas no Brasil e no exterior. Membro de diversas entidades associativas, institutos e Conselhos Editorais de publicações no Brasil e no Exterior. Líder de Grupos de Pesquisas em Direitos Fundamentais e Sociais. Presidente do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Infraestrutura, uma publicação da Editora Fórum ([email protected]).
Redação

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