Resenha do livro Versões e Ficção: O sequestro da História

Por Eduardo Lima

Comentário ao post “A Secretaria de Direitos Humanos deve um túmulo a Virgilio

Do blog Comunistas

Resenha do Livro: Versões e Ficção: O sequestro da História (parte1)

Este livro surgiu da necessidade que muitos militantes da Esquerda armada sentiram de dar suas opiniões e contrapontos ao livro O que é isso companheiro? de Fernando Gabeira e ao filme, de mesmo nome, produzido por Bruno Barreto e é um bom complemento ao documentário Hércules 56 também criado com esta finalidade. Na apresentação do livro os autores salientam que defendem livre manifestação de opiniões e justamente por aceitarem a manifestação dos mais variados pontos de vista é que eles vêm ao público demonstrar suas discordâncias e denunciar erros, manipulações e deturpações que algumas interpretações trazem consigo. Pretende ter uma interpretação não produzida pelos “caçadores” e muito além daquela que se pretende “isenta” e “desideologizada”.

QUE HISTÓRIA É ESSA?

Por Marcelo Ridenti

Ridenti afirma que seu artigo destina àqueles que como ele não viveram aquela época na idade adulta e estão interessados em “descobrir a complexidade da história recente do país” que vai muito além do que se vê no filme O que é isso companheiro?. O autor afirma que um erro comum é pensar as esquerdas dos anos 60 em separado do contexto histórico. Fora destas circunstâncias específicas parece um despropósito se armar para realizar a revolução brasileira. Em termos internacionais havia muitas revoluções vitoriosas ou em curso como a Revolução Cubana, a Libertação da Argélia e a guerra antiimperialista em desenvolvimento no Vietnã. O êxito destas revoluções é fundamental para entender a luta e o ideário contestador dos anos 60: povos subdesenvolvidos se rebelavam contra as grandes potências para criar um sonhado mundo novo. Ao mesmo tempo se questionava o modelo soviético. Muito burocrático e acomodado a ordem estabelecida da Guerra Fria. Ridenti faz um resumo do golpe militar e do desenvolvimento da ditadura até o AI-5 quando se tornou mais autoritária e sanguinária. Sobre o filme que é uma ficção com base em fatos reais como reconhecem os próprios autores, embora o trailer anuncie como uma obra verdadeira, e que Bruno Barreto tem todo o direito de produzir uma obra sobre o período. O problema é que o filme trata de fatos e personagens reais e de uma época sobre o qual há muita curiosidade e muito desconhecimento. O filme não ajuda a entender a complexidade da História recente do país e tem o mérito apenas de tocar num assunto que parecia esquecido ou ignorado pelo público. Ele possui vários clichês de cinema norte-americano: um velho sábio que conhece as mazelas do mundo mas não deixa de sofrer suas conseqüências (o embaixador seqüestrado); um supermocinho idealista e ingênuo, o jornalista revolucionário inspirado em Gabeira; um supervilão baseado no militante Jonas com todas as características de bandidos russos dos filmes da guerra fria além de cenas complementares de sexo e corridas de automóvel. A intenção anunciada pelos autores de romper com o maniqueísmo foi por terra ao estereotipar como bandido o operário Jonas e tomar partido do mocinho intelectual de classe média, Gabeira. Ridenti afirma não ter nada ao objetar sobre o torturador do filme ter crise de consciência, embora isso crie um contraste com o “sanguinário” Jonas – que na vida real foi um digno e valente militante, morto sob tortura logo após o sequestro. Ridenti salienta que as organizações de esquerda tinham aspectos autoritários e alguns de seus membros chegaram a envolver-se em obscuros casos de execuções de supostos traidores. Mas fatos como este devem ser estudados por cientistas sociais e políticos evitando simplificações com melhor resultado estético e fidelidade histórica que o filme de Barreto.

 

UM PASSADO IMPREVISÍVEL: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DA ESQUERDA NOS ANOS 60

Por Daniel Aarão Reis Filho

Reis Filho começa o seu artigo explicando que em não tão distante tempo os homens acreditavam que história era construída apenas com a observação crítica de documentos escritos em busca da verdade única e definitiva mas que a construção e reconstrução diversa do passado acompanham a trajetória das sociedades humanas desde que o mundo é mundo. E não poderia ser diferente com as esquerdas dos anos 60. No Brasil e em todo planeta foram anos de movimentos subversivos, de promessas de transformação que colocaram a prova os sistemas estabelecidos. “[…] o controle do futuro passa, como se sabe, pelo poder sobre o passado, dado, por sua vez, aos que imprimem na memória coletiva a sua versão dos acontecimentos.” (p.33)

Segundo Reis o objetivo do artigo é selecionar algumas versões emblemáticas e tentar encontrar seu significado no contexto da luta pela apropriação da memória.

Segundo ele a versão mais difundida apresenta os movimentos revolucionários dos anos 60 como uma grande aventura, no limite da irresponsabilidade com boas intenções mas equivocadas. Ele cita dois maiores exemplos deste tipo de interpretação os livros de Zuenir Ventura e Fernando Gabeira. Estes dois relatos tiveram especial acolhida e se tornaram Best Sellers. Reis Filho explica que esta aceitação foi devido ao recuo da ditadura militar em sua abertura “lenta, gradual e segura” era preciso recuperar a memória sem ressentimentos. No contexto da anistia recíproca seria como recordar esquecendo. Em Gabeira o procedimento é marcado pela visão crítica do período amadurecida em seus momentos no exílio. Essa atitude distanciada, crítica, irônica, a maioria dos leitores desejava , e assim foi possível reconstruir o passado sem atormentasse com ele.

Reis Filho afirma que avivar a memória para conciliar todo um programa foi retomado de forma espetacular pela Fundação Roberto Marinho e pelo jornal O Globo. O dono de negócios, depois de se ter associado por longos anos ao mais virulento anticomunismo, assumiu a guarda do acervo/memória dos comunistas brasileiros e incentiva debates e pesquisas a respeito do assunto. “[…] os terroristas converteram-se em guerrilheiros, os justiceiros, em assassinos, e o jornal, de caçador, transmuda-se em defensor dos caçados e cassados, e faz coro em favor dos mortos e desaparecidos vítimas de um regime que ele mesmo sustentou. As cartas se embaralharam de vez numa vertigem” (p.37) Nestas interpretações os anos 60 seriam anos vibrantes e loucos que deveriam ser olhados com boa vontade. Quanto aos mortos um cheque de R$ 150 mil e conversa resolvida. Anistia para esta dor.

Reis Filho cita uma outra interpretação, a feita por Jacob Gorender e Marcelo Ridenti, falando do mesmo assunto: um combate nas trevas, imposto pela ditadura, em busca de uma imagem fugidia, um fantasma, o da revolução. É a luta contra o Estado que estreita as margens da oposição política e silencia e massacra oponentes. Trata-se de recuperar o projeto dos vencidos, de compreendê-lo e resgatar sua memória perdida. Os vencidos guardam o que de melhor o país tinha para oferecer. Vítimas do poder resistiram. Assim os anos 60 aparecem como anos de resistência democrática. Terrorista era a ditadura que invade casas sem mandato judicial, prende e mata sem contemplações, e define a tortura como política de Estado. Os interpretação dos livros de Gorender e Ridenti é uma história não-oficial. Uma denúncia abrangente dos crimes da ditadura. Não há meninos rebeldes mas projetos revolucionários e há resistência de mulheres e homens que não se entregam. O isolamento destes grupos de Esquerda teria sido mais o resultado dos métodos que utilizaram do que a vontade de resistir à ditadura.

A tese defendida por Reis Filho é que as esquerdas não foram apenas vítimas de uma ditadura feroz. As organizações comunistas eram uma contra-elite, alternativa, que parte para o assalto ao poder. Rejeitando as tradições defensivistas dos tradicionais partidos comunistas latino-americanos, principalmente após a guerra do Vietnã e a Revolução Cubana. Toda uma geração de dissidentes passou a colocar a questão do poder político no centro de suas reflexões como um desafio imediato. Nesta interpretação os revolucionários não resistem, mas atacam. Alegando que os verdadeiros revolucionários não pedem licença para fazer a revolução, nem mesmo ao próprio povo. Pois a História evidenciou que não havia condições para qualquer ataque ao sistema capitalista e que o grau de desconforto da sociedade com a ditadura era relativo. Esta versão é a expressão de uma crítica aos projetos socialistas contemporâneos. E se confundem com a utopia, talvez irrealizável, de uma esquerda revolucionária e democrática.

Outra interpretação que aparece nos trabalhos de Herbert Daniel e em projeto de Vera Silva Magalhães que propõe a necessidade do estudo da constituição de um ethos específico, formado no ambiente estudantil da época, saturado pela politização das interpretações, dos debates e das atitudes. Descrença nos valores propagados pela ditadura e partidos alternativos que vinham de ser derrotados. Seria então a forma de compreender a conjuntura político-cultural do movimento estudantil. Esse ambiente teria ajudado a construir um programa revolucionário que emergiu como uma identidade construída para além da dimensão política.

Reis Filho conclui mostrando que estas versões não se equivalem e mesmo que se possa combinar aspectos de uma com outra é impossível combiná-las numa só. Ele afirma que o leitor deve escolher a que lhe convém, mas ter em mente que faz uma escolha de sociedade, porque ao decidir sobre uma versão do passado estará se posicionando no presente e propondo uma opção de futuro.

 

FILME FICA EM DÉBITO COM A VERDADE HISTÓRICA

Por Helena Salem

Salem afirma que para quem não viveu de perto os acontecimentos do fim dos anos 60 talvez não haja maiores restrições ao fazer quanto ao filme O que é isso Companheiro? No entanto, para quem viveu de preto aquela época o filme deve trazer, no mínimo, polêmica. A autora critica a transformação do personagem Fernando (Pedro Cardoso) no herói do filme onde lhe é atribuído o espírito crítico em relação aos demais. No filme ele é o intelectual do grupo, o único que faz uma reflexão mais livre, que teve a idéia do sequestro (que não é verdade pois Gabeira soube poucos dias antes) que escreveu o célebre manifesto pedindo a libertação de 15 prisioneiros políticos, lido em rede nacional de televisão (na realidade quem escreveu foi o guerrilheiro Franklin Martins) e que por estas razões é tratado com desdém pelo comandante da ação o guerrilheiro Jonas interpretado por Mateus Nachtergaele. Nada disso está no livro. A autora afirma que pode-se argumentar que o filme seja uma obra de ficção, mas por outro lado quando se utiliza os verdadeiros nomes de alguns personagens como Jonas, Toledo (Nélson Dantas) e do próprio Gabeira onde se procurou até a semelhança física com ele e quando se localiza de forma clara e data o fato histórico ocorrido o argumento de ficção se esvazia. Essas pessoas e acontecimentos existiram, logo algum compromisso com a verdade histórica de haver.

Salem critica também a forma tendenciosa como o filme transforma o guerrilheiro Jonas em vilão: homem frio e capaz de matar qualquer companheiro que lhe desobedecer. Enquanto o torturador Henrique é humanizado: ele sofre angustias, não consegue dormir direito, tem problemas com a mulher quando ela descobre sua real atividade. É um carrasco em conflito mas nem por isso deixa de continuar torturando e matando. A socióloga afirma que pode ser até muitos torturadores tenham tido remorso, o que é de se duvidar, mas os guerrilheiros não eram tão ingênuos, tolos, caricatos como são apresentados (à exceção de Fernando) no filme. Eram jovens que podem ter escolhido caminhos equivocados mas eram generosos, indignados, sufocados pela ditadura nos seus anseios de liberdade, e alguns deles foram as cabeças mais brilhantes de sua geração. É essa outra verdade que O que é isso companheiro? Não consegui revelar. Segundo ela é importante que se diga que apesar de bem narrado, bem filmado e com ótimos atores. O filme não é “uma história verdadeira” como vêm anunciando nos trailers.

 

O QUE FOI AQUILO COMPANHEIRO?

Por Paulo Moreira Leite

Moreira Leite começa seu artigo relembrando os fatos do sequestro e contando o sequestro do Embaixador americano primeiro de um pacote de quatro diplomatas seqüestrados entre setembro de 1969 e dezembro de 1970, o cativeiro de Elbrick foi um raríssimo sucesso espetacular e instantâneo da Esquerda armada, que entrou para a história como um passivo de derrotas colossais e definitivas. Apenas 24 horas depois da libertação de Elbrick, a polícia fez seu primeiro prisioneiro e um segundo seqüestrador foi apanhado logo depois. O operário Virgílio Gomes da Silva, o Jonas da ALN que comandou a operação foi morto aos 36 anos, menos de um mês depois. Seis militantes forma presos e condenados e outros obrigados a deixar o país para longas temporadas no exílio.

Quanto ao filme Moreira Leite diz que é natural quando se leva ao cinema uma obra baseada na vida real que se faça simplificações: dois ou três podem se fundir num só e assim por diante. No sequestro do embaixador Charles Elbrick apenas uma mulher tomou parte. Vera Silva Araujo de Magalhães. Em função das torturas recebidas na prisão ela ficou temporariamente paralítica. No filme as mulheres são duas. Claudia Abreu seduz a platéia inteira quando joga charme sobre o segurança da embaixada, para obter informações a respeito da rotina de Elbrick. Fernanda Torres faz uma instrutora de tiros que dá lições na praia. Pedro Cardoso encarna um Gabeira que convence, mas no elenco é Alan Arkin que dá show no papel de Charles Elbrick. Moreira Leite afirma que há um defeito comum aos autores do filme, não se sabe se por falha deles mesmo ou de personagens originais ou até mesmo algum cisma do cinema nacional com a esquerda brasileira mas todos os personagens parecem mais nervosos do que necessário gritam muito como se aquilo que fazem fosse artificial ou neurótico.

Segundo Moreira Leite o filme radicalizou um traço da versão do livro no qual Gabeira já vitaminava seus feitos, dava um verniz a seu papel e ironizava com os demais. Gabeira é apresentado como um sujeito que teve a idéia do sequestro, escreveu o manifesto divulgado pela TV e, por fim, o primeiro a fazer o balanço de que a luta armada era um sonho derrotado e sem remédio. Isto está longe de ser verdadeiro. Gabeira entrou e saiu da operação como um militante raso do MR-8, ou pouco mais que isso. Na hora dos trabalhos finais de limpeza, Gabeira ficou encarregado de recolher um paletó que pertencia a um graduado participante do sequestro. Descuidou da tarefa, os militares descobriram a peça de roupa, localizaram o alfaiate e acabaram fazendo uma prisão importante. O Gabeira do cinema é o único seqüestrador com feição humana, que tem não apenas boas maneiras mas também vida própria. Já seus companheiros vivem em outra situação. Em permanente crise de identidade, em determinado momento, Maria (Fernanda Torres) precisa ser lembrada de seu nome verdadeiro. Numa cena melodramática, Renée (Cláudia Abreu) deixa claro que só resolveu seqüestrar o embaixador porque papai não lhe dava atenção em casa. Outra novidade é a presença de Henrique (Marco Richa), oficial do Cenimar que comanda as investigações e tortura prisioneiros. Após uma discussão com a mulher que se mostra indignada com os maus-tratos ele passa a sofrer crises de consciência. O torturador tem suas crises de angustia apenas depois do expediente, e o filme lhe dá espaço para se justificar e até dá um certo crédito a suas razões. Já o comandante Jonas (Mateus Nachergaele) é descrito como um assassino frio, que distribui ameaças de morte aos próprios companheiros sem dar sinal de arrependimento. Não há dúvida de que o filme fez sua opção. O torturador tem direito a um conflito interior, a honra de uma angustia. O comandante do sequestro é um robô sob a pele de esquerdista.

Veja ouviu dois militantes que participaram do sequestro e assistiram ao filme em pré-estréias. Um deles é Manuel Cyrillo, sua opinião sobre o filme é que “Tudo é a favor do governo e do Exército. Até o torturador é inteligente, pode se explicar. Nós, não”. Ao ser perguntado de quem é a culpa do filme ser tão ruim assim ele faz uma autocrítica: “É nossa culpa, minha culpa. Nunca escrevi o que vi, o que passei. Então, os outros contam. Outro militante é Paulo de Tarso Venceslau. Ele participou da captura do embaixador e também da equipe que soltou Elbrick, ficou cinco anos na prisão, segundo ele o filme: “é uma boa aventura, mas como história é leviano”. Ao ser perguntado qual a pior cena ele responde: “Existem cenas ridículas. No meio do sequestro, Gabeira resolve seguir os policiais que procuravam a casa onde o embaixador era guardado. É absurdo. Em outra cena duas pessoas que levam uma mala cheia de metralhadoras e granadas, chegam de táxi a casa do sequestro. Só rindo.”

Moreira Leite afirma que por ter sido co-produzido pela Columbia o filme tem no personagem do embaixador (Alan Arkin como estrela de primeira grandeza) um discurso que tenta colocar ordem no filme, seu olhar examina e julga o que se passa. O estudioso do cinema brasileiro professor Ismael Xavier, da Universidade de São Paulo, observa que no final “só o personagem do embaixador parece ter história, não se esfumaça, merece referência”. O professor ficou incomodado com esse tratamento diferenciado. “E as outras figuras desse episódio? Como lhes dar cidadania para além do ocorrido?”

Segundo Moreira Leite perdeu a chance de fazer um acerto de contas honesto com algumas mitologias da Esquerda. Pois há quem cultive a lenda de que a luta armada só foi iniciada depois que o regime bloqueou os espaços para a atuação política e a mobilização popular. É uma tese falsa pois não havia carência de democracia apenas no governo. Havia grupos de esquerda treinando guerrilha antes da queda de João Goulart, e os assaltos a Banco destinados a financiar estruturas clandestinas são antes do AI-5. Desprezavam-se valores democráticos. Não se apostava na ação política. O modelo visto como ideal para o país era uma ditadura, o regime de Fidel Castro. Esse mundo clandestino desabou com militantes mortos, presos, foragidos, desaparecidos. Mas os derrotados não são necessariamente menos generosos, mais perversos e nem mais mesquinhos que os vitoriosos, e é uma pena que esse seja o retrato deixado pelo filme.

EX-MILITANTE INSPIRA PERSONAGENS FEMININAS

Por Helena Salem

Salem conta que Vera Silva Magalhães era da direção da Frente de Trabalho Armado da Dissidência Comunista (que se transformou em MR-8, a partir do sequestro do embaixador Charles Elbrick). Foi ela que, então com 21 anos, fez o levantamento para a ação, tendo também participado diretamente do sequestro, na cobertura logística. Salem lembra que Vera não ficou na casa onde estava escondido o embaixador, mas acompanhou os acontecimentos por intermédio de alguns companheiros que entravam e saíam. No filme ela serviu de inspiração, das personagens de Cláudia Abreu (que faz o levantamento da ação) e de Fernanda Torres, que, como Vera, deixa o país com as pernas paralisadas em conseqüência das violentas torturas que sofreu na cadeia. Após tanto sofrimento, Vera que é economista, mantém-se uma pessoa de bem com a vida, profundamente vital, inteligência brilhante, bom humor, generosa, intelectualmente aberta e um espírito profundamente crítico. Vera conta em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo como era a geração que aderiu à luta armada em 1968/1969 e participou do sequestro do embaixador americano:

ESTADO – Como eram os jovens militantes da Dissidência?

VERA SÍLVIA MAGALHÃES – Éramos uns 40 militantes e uns 30 simpatizantes da Dissidência. Considerávamos que não tínhamos estrutura suficiente para fazer a ação sozinhos, então chamamos a Aliança Libertadora Nacional (ALN), uma organização mais militarizada que a nossa. Era uma questão mais logística. Eu, por exemplo, que era do Comitê Central da organização, assim como o Daniel Aarão Reis, ainda tinha condições de circular pela zona sul do Rio antes do seqüestro.[…] Pensávamos num processo insurrecional, de ação vanguardista, e então decidimos que iríamos pegar o homem, isto é, o embaixador norte-americano. E esperávamos que dessa ação resultasse um rebuliço social. […] É uma geração que vai lançar depois a guerrilha rural e faz antes as ações urbanas de propaganda da luta. Mas nós pensávamos também em romper com os preconceitos da família, com os casamentos formais — a gente se casava, mas não era uma coisa formal —, queríamos romper com a virgindade. Era um momento de muita ebulição, era uma geração libertária. […] A gente queria construir sim, era o nosso sonho. E uma possibilidade. Muitos países tinham se tornado socialistas. Podíamos ter um projeto autoritário, de uma guerrilha isolada, não ligada às massas. Mas, na verdade, fizemos mais ações armadas do que guerrilha. Eu me digo ex-militante de uma causa, não guerrilheira. Peguei em armas, não que eu gostasse, mas era preciso fazer. Essa geração de 68 é indescritível. Como disse, não é um tempo cronológico. Em 1969, houve o seqüestro, num contexto que abrange desde a luta armada até a luta cultural. Nós não éramos uns babacas. Claro que a ação do embaixador norte-americano foi jacobina, não tínhamos forças para o que viria depois.

ESTADO – Eram todos do movimento estudantil?

VERA – Não, não éramos todos estudantes: o João Lopes Salgado era um ex-militar que estudava medicina, e o Jonas, o comandante da ação, um operário de origem camponesa. O Salgado atendia as pessoas feridas nas ações. Nós tínhamos mais uma estrutura de partido, enquanto a ALN atuava em grupos.

ESTADO – No filme, o Jonas aparece como uma pessoa extremamente dura, disposta a matar qualquer companheiro que o desobedecesse. Era isso mesmo?

VERA – Não, o Jonas era um quadro de origem camponesa, ele estava ali porque era um comandante militar mesmo. […] O Jonas sabia manter a ordem, a disciplina, coisas fundamentais para uma ação. Eu não ia conversar com ele sobre cinema, mas sobre revolução. Ele dizia que quem corresse, durante uma ação, ele atirava primeiro no militante e depois no policial. Evidentemente, isso era mais uma figura de efeito, de comandante de ação. Mas ele não falava que, quem desobedecesse, ele ia matar. […] Jonas foi um cara heróico, que morreu estraçalhado na tortura, esquartejado, tinha tudo na mão, até mesmo onde ia ser a guerrilha rural, e não abriu nada. Também não houve isso do Gabeira ser designado para matar o embaixador. A tendência era não matar ninguém, era uma ação típica para ninguém morrer. O Jonas era uma pessoa dura, muito eficiente como comandante, mas nunca o ouvi falar em torturar o embaixador (como aparece no filme), nunca houve isso.

ESTADO – O filme sugere que a personagem de Cláudia Abreu, que faz o levantamento da ação, dorme com o chefe da segurança do embaixador. Isso aconteceu mesmo?

VERA – Não houve nada disso. Todo mundo sabe, é uma coisa cultural, que a mulher oferece mais segurança para uma atividade dessas. Você pode jogar com a sedução, mas sem ir às vias de fato. Nunca tive relação com nenhum segurança. Era muito fácil se aproximar, fazer perguntas, ele mesmo gostava de contar para se mostrar. […] nunca ocorreu de uma mulher de esquerda ter relação com um homem com o qual ela não tinha nada a ver para fazer um levantamento. A gente não era agente secreto. Eu ia lá, acho que ele me achou bonitinha, foi falando, era troca de olhares e conversa. […] Conseguíamos sempre o que queríamos só com uma pequena aproximação. Eles tinham uma visão da mulher bastante limitada. Depois, quando marcavam o encontro, a gente não ia.

ESTADO – Quando e em que circunstâncias você foi presa? O que lhe aconteceu na prisão, que fez com que você saísse de cadeira de rodas?

VERA – Fui presa em março de 1970, numa ação de panfletagem junto com o Zílio, o Daniel Aarão Reis e a Regina Toscano. […] Fomos todos muito torturados. Eu levei um tiro na cabeça, tive uma convulsão cerebral, muita tortura psicológica também — estou pagando até hoje por isso. A tortura foi enlouquecedora. Não sabia que dia, que hora era; quando eles me mostraram diante de um espelho, não me reconheci. Também não disse o que eles queriam e acho que foi melhor para a minha cabeça. Não acho que exista isso de heroísmo, depende de cada um, de como você se sente. Nossa organização era muito ética, acho que a geração 1969 lutava por uma ética, uma estética, que continua até agora. […] Acho que deixamos legados éticos, estéticos, que você tem de lutar contra o lancelote de espada na mão. A tortura é uma punição que te culpabiliza para o resto da vida e, para quem cedeu, é mais dura ainda. Foi muito barra-pesada. Fiquei sem andar por causa do pau-de-arara, muitas horas com os pés e as mãos amarrados, pendurada, levando choque. Mas quando cheguei em Argel me recuperei logo. […]

ESTADO – Você se deparou com torturadores que, aparentemente, tinham angústias, como no filme?

VERA – Na minha tortura, não havia nada de angústia dos torturadores. Diziam-me que eu seria torturada como Jesus Cristo, era uma Sexta-Feira Santa. Eu tive uma atitude como homem, de me fazer mais forte do que eu era. […] o torturador é um ser humano, com a função específica de destruir-nos, e eles conseguiram destruir muita gente. Era uma pseudoguerra. Nós de um lado, armados, e eles de outro, superarmados. Eles nos colocaram numa situação de humilhação total. […] Eles não eram débeis mentais, montaram um esquema. Os chefes da tortura não foram pegos. Tinha o Zambinsky, que conversava comigo, o Fontenele, esses conversavam. Era um teatro. Todas as hipóteses são viáveis, mas acho que a mais viável é que eles estavam numa missão, a de nos destruir. Não me interessa uma classificação para essas pessoas. Eu estava numa posição oposta a elas na sociedade.

REIS FILHO, Daniel Aarão et alli. Versões e ficções: o seqüestro da história. São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo, 1997.

Fonte: Blog Comunistas

Luis Nassif

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