A última reunião da família Kennedy antes das eleições presidenciais de 1960, por Sebastião Nunes

– Política é a arte de escrever torto por linhas certas – disse o retrato de P. J. Kennedy, o patriarca, encarando com frios olhos azuis a vasta descendência em volta da enorme mesa de jantar. “Sua maneira de olhar fazia todos duvidarem de que realmente visse alguma coisa. Mas certamente seus olhos continuariam a ver depois que todos os olhos do mundo tivessem cessado de olhar”, escreveu certa vez Hemingway. Portanto, ali estava ele, presidindo a reunião, retratado a óleo em grandes dimensões e cores sombrias, metido numa moldura dourada sobre a lareira. “Canalhas”, alegrou-se em pensamento, pois gostava da palavra, que derretia gostosa em sua boca como sorvete de creme em boca de criança. “Oportunistas e canalhas. Eis no que deu nossa feroz, incontida, belicosa e delirante fúria sexual. Quatro filhos meus, nove de Joe – e os filhos dos filhos. Todos arrogantes, todos pretendendo dominar o mundo.”

            Do outro lado, na cabeceira da mesa, pontificava seu filho mais velho, Joseph P. Kennedy. “Eis o mais bem sucedido canalha do meu sangue”, murmurou o retrato com uma risadinha cínica, acrescentando em voz alta:

            – Mas pouco importa a arte da política. Estamos reunidos hoje para eleger um descendente de P. J. Kennedy, autêntico self-made man, presidente dos Estados Unidos.

            – Antes de começar a reunião, gostaria de dizer uma palavrinha – disse John Fitzgerald Kennedy, o John-neto, olhando com ansiedade para o retrato do avô.

            – Você não tem nada a dizer – respondeu com firmeza o retrato. – Todos sabem que você só pensa em trepar e se entupir de remédio. Prefiro você calado. Por falar nisso, não se esqueça de pegar com o fantasma de minha defunta secretária uma cópia de seu primeiro pronunciamento ao país depois de eleito.

            – Mas, como! – estranhou Joseph P. Kennedy, o Joe-filho. – Não aconteceu ainda a convenção nacional dos democratas, não sabemos se John-neto será candidato, e o discurso já está pronto?

            – Está – confirmou o retrato. – Primeiro, porque é impossível perder para o idiota do Nixon, que será o candidato republicano. Segundo, porque não confio em John-neto quanto a ideias. Terceiro, porque enxergo através das brumas infernais do futuro e do passado, e sei que essas eleições serão tão confusas que, durante décadas, se discutirá quem realmente venceu. Não que eu enxergue com a clareza dos humanos, já que tudo são brumas, mas vejo o suficiente para ter algumas certezas.

            John Fitzgerald Kennedy enfiou a viola no saco e esperou, olhando em volta. Não adiantava brigar com o velho. Mesmo reduzido a retrato, o velho P. J. tinha poder, muito poder. Se dissesse besteira poderia ser substituído num estalar de dedos. Talvez pelo Bob. Ou até, mais à frente, pelo vagabundo do Ted. Todos comiam na mão do velho patriarca, todos sabiam o que ele podia e o que ele valia.

            Frank Sinatra olhou para o retrato e levantou o indicador.

            – Posso fazer uma pergunta?

 

PRESENÇAS ILUSTRES

            Já que Sinatra meteu o bico sem pedir licença, melhor apresentar os personagens dessa reunião ultrassecreta, realizada no salão de jantar da mansão senhorial dos ambiciosos e aventureiros Kennedy, algumas semanas antes do início das tremendas batalhas (e das inúmeras fraudes) do longo processo eleitoral.

            Além da família, presente ao vivo e in memoriam, havia convidados. Os parentes mortos flutuavam entre as paredes, transfigurados em ectoplasma, embora quase todos estivessem retratados (a óleo) e pendurados à esquerda e à direita da mesa. De fora, havia amigos íntimos: Frank Sinatra, Marilyn Monroe, Peter Lawford, marido de Patricia Kennedy, Fred Astaire e Bob Hope, os dois últimos escalados para alegrar o jantar que se seguiria à reunião. Mudos como peixes, esperavam sua vez.

            O motivo da intervenção de Sinatra foi que, ao receber o convite formal, tentara introduzir Ava Gardner, mas fora duramente repelido por Rose Fitzgerald Kennedy, a matriarca da família:

            – Não recebo prostitutas em minha casa – dissera ela, secamente.

            O ator-cantor tentara argumentar com Rose, dizendo que sua nora, Jacqueline Bouvier Kennedy, não era flor que se cheirasse, mas desistira de abrir a boca. Com aquela bruxa velha não adiantava. Era estrangular e jogar no lixo ou deixar para lá. Então resolveu fechar a matraca. Só por maldade, olhou disfarçadamente debaixo da mesa: John-neto e Robert-neto esfregavam as pernas cabeludas nas pernas nuas de Marilyn. Foi aí que Sinatra resolveu fazer sua pergunta ao todo-poderoso retrato.

 

FOFOCAS À PARTE

            – Política é a arte de vender gato por lebre – disse o retrato de P. J. Kennedy, o patriarca, que adorava construir frases de efeito usando ditos populares, aprendidos nos tempos de estivador nas docas de Boston. – Apesar de intruso, pode fazer sua pergunta.

            Frank deixou passar a ofensa e questionou:

            – Por que não pude trazer Ava Gardner, que foi minha mulher, e Marilyn, que não é nada de ninguém da família, foi convidada?

            – Porque minha nora Rose é uma ingênua e você também é. Se ela visse o que estamos vendo debaixo da mesa, mudaria de ideia.

            Deu uma risadinha aguda, movendo lábios e olhos, o máximo que conseguia mexer dentro da moldura dourada. Imediatamente ficaram vermelhos de vergonha Rose, Joseph, John, Robert, Patricia, Marilyn e Peter Lawford, que não tinha nada com a história, mas era marido de Patricia e considerou adequado apoiar o rubor da mulher.

 

COMEÇA A REUNIÃO

            – Todos sabem que nunca bebi – disse o retrato. – Apesar disso, ou por isso mesmo, comprei meu primeiro bar aos 22 anos. Cinco anos depois tinha três bares e fundei uma importadora de bebidas, a P. J. Kennedy & Company. Aos 27 anos fui eleito para a câmara dos representantes e não parei mais, chegando a senador. Não importa como cheguei lá, essas coisas nunca importam quando não se tornam públicas.

            Fez uma pausa, lambeu o suor que escorria da testa oleosa, e continuou.

            – John Francis Fitzgerald era meu amigo e meu rival. Durante anos alternamos aliança e oposição. Eu me dei bem, pois nunca fui inconsequente, talvez por lidar com essa mercadoria altamente explosiva chamada álcool. Mas Fitzgerald não se comportou da mesma maneira. Por infidelidade – considerada crime naqueles velhos tempos – e fraudes, perdeu várias eleições. De qualquer forma, isso não impediu que meu filho e herdeiro Joe se casasse com Rose, sua filha, muito antes de se tornar a megera atual.

            Todos fixavam o retrato, que pigarreou antes de continuar.

            – Reduzido ao que sou, possuo memória brumosa, como expliquei antes, mas recordo que John, meu tinhoso filho, pai do futuro presidente, forjou habilíssima tática de falta de escrúpulos, esperteza e prudência em seus negócios escusos. Parece que num único dia ganhou 15 milhões de dólares na bolsa, usando informações privilegiadas, segundo boatos da época. Enquanto vários conhecidos seus se atiravam pelas janelas em Wall Street, ele enriquecia, com a maior rapidez que já se viu desde Júlio César, o grande canalha romano, como revelou minuciosamente Bertold Brecht no romance “Os negócios do senhor Júlio César”. Depois disso, meu filho não parou mais. Em poucos anos, multiplicou por 10 sua fortuna. Gostariam de saber como? Através de conexões em Washington obteve permissão, durante a Lei Seca, para importar enormes quantidades de bebida como medicamentos. Existem indícios de que vendeu parte dela a nossos alcoólatras e armazenou o restante, aguardando o fim da proibição para revender o maior estoque de bebidas então existente no país.

            – Acho que o senhor não tem o direito de botar nossos podres pra fora – disse Ted-neto, o futuro senador Ted Kennedy, apenas um rapaz folgado naquela época.

            – Isso é porque você não sabe o que o aguarda no futuro, meu querido. Mas você não perde por esperar. Aliás, como simples retrato, fui longe demais, contando velhos segredos de família, se é que são segredos. Sinto que um pouco do óleo de minha cara está escorrendo, de tanto que falei. Por isso me calo, presidindo em silêncio esta reunião. Gostaria apenas de acrescentar que política, se entendi bem, em minhas peregrinações pelo mundo dos vivos e dos mortos, é a arte da multiplicação ilusória dos pães. Ou ainda, caso prefiram, a arte de dar nó em pingo d’água. Queiram continuar.

            Joe, o filho, abriu a boca, mas foi interrompido pelo retrato do pai.

            – Desculpem-me, mas isto é relevante: o vírus do poder, que circula vigorosa, ansiosa e brutalmente no sangue de muitos de meus descendentes, foi inoculado em vocês por Joseph P. Eu não tenho nada com isso.

            Embutido em sua moldura dourada, P. J. Kennedy calou-se para sempre.

Sebastiao Nunes

3 Comentários

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  1. Estimularam ditaduras em toda
    Estimularam ditaduras em toda América latina. Mais de 50 tentativas de assassinar Fidel Castro. Responsáveis diretos pela morte de milhares de latinos. JFK então, no auge de sua arrogância e o golpismo acabou atingido por eles, em um (ou mais) certeiro head shot visto pelo mundo inteiro. E Fidel, bom, esse respira o ar caribenho com seu saboroso café e um charuto na mão e a essa altura da vida apenas esperando o vento lhe levar. Aceitando ou não, venceu belamente seus adversários.

  2. Fera!

    Eh, a familia Kennedy e agregados, como Peter Lawford (e os colegas do Rat Pack) eram bem isso ai. Ja MM numa reunião qualquer na casa de Rose F. Kennedy e com Jackie? Jamais, mon ami ! Aquilo ali era tão terrivel, que até hoje espcula-se, anos mais tarde depois dessa geração mafiosa, se a morte de John John ao invés de acidente como declarado, foi de fato um suicidio… 

  3. E…………………..

    Historia recontada como paródia pelo Nunes, que a alguns podem fazer rir, mas ……………..

    Sobre a atuação da familia, muitos dos fatos citados, ainda que seguindo a linha do deboche, merecem credibilidade, mesmo porque se trata de uma familia que traçou um projeto que era exatamente fazer de um Kennedy, presidente dos Estados Unidos.

    De inicio era o primogenito que morreu na guerra, e assim, JFK, o substituiu!

    Quanto ao julgamento que fazem de sua atuação como presidente, sempre haverá contras e a favor,  mas a realidade é que o presidente daquele país, como de todos os outros, sejam de que partidos forem, cumprem o que determinam as Corporações e Llobys que os ELEGERAM, e com JFK, não foi diferente!

    Seu assassinato veio provar que, ao contrariar àqueles interesses, foi simplesmente trocado por outro, que faria exatamente o que ele estava recusando a cumprir.

    E finalmente, podem ou não gostarem dos presidentes “eleitos”, que na minha modesta opinião, não passam de gerentes dos verdadeiros Donos do Mundo!

    Eu disse DONOS DO MUNDO !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

    Acreditem se quiserem !!!!!!!!!!!!!!!!!! 

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