Canção para Soledad Barrett, por Urariano Mota

Neste 8 de janeiro, faz 43 anos do assassinato de Soledad Barrett Viedma, guerreira de quatro povos, como a chamou o poeta Mario Benedetti, nascida no Paraguai, executada no Recife.  Soledad foi traída pelo então marido, Cabo Anselmo, que a entregou ao delegado e torturador Sérgio Fleury.

Canção para Soledad Barrett *

Urariano Mota

 

Quando te vi pela primeira vez, Soledad

Me deu vontade de cantar.

 

Lá no Pátio de São Pedro

Correu um fogo em meu coração

Que me dizia

Haveria incêndio se eu tocasse as tuas mãos.

Mas em 1973, Sol, o amor era uma alienação.

E a canção que não vinha me torturava assim:

“Como posso tocar a sua alma? Como posso tê-la junto a mim?”

Em 73, no calor dos teus olhos, Soledad,

havia um fogo irresistível para todos

Não sei se era uma alucinação

Pois sentia  o perfume dos jasmins ,

Como se as pétalas do teu corpo

batessem num feitiço em cima de mim

 

Os beija-flores, mais educados que os amantes,

sabem que podem tocar a intimidade da flor

 e por isso são felizes.

Diferente de ti, Soledad,  que eras flor vermelha

e não recebeste o carinho de acender a centelha.

 

Por isso minha lembrança evitou a dor da tua morte,

Por isso pude ouvir o canto da criança guarani:

“Filha do paraíso azul / entra para mim”.

 

Ainda ontem, em um ato público, ao gritarem o teu nome, Soledad,

a minha voz ao responder “presente” fraquejou,

como se fraqueja diante de quem se ama

pois o teu nome em  meu coração não cessou

 

As santas do Paraguai carregam o filho nos braços

 e a aos pés delas têm anjos,

até lua em quarto minguante.

Mas um feto nos pés e sangue na fogueira

Somente tu, Soledad, a guerreira  

 

Por isso estás presente hoje nas cordas do violão

E para a tua nova vida eu fiz esta canção. 

 

* No Vermelho http://www.pragmatismopolitico.com.br/wp-content/uploads/2012/05/soledad-cabo-anselmo.jpg

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

View Comments

  • Urariano, quanto amor
    Urariano,

    quanto amor no teu coração por esta brava mulher!

    E um alento para o meu: se há no mundo quem possa recordar um amor com tanta reverência, estamos diante de um mundo que ainda pode ser salvo. Tenho acreditado cada vez menos nisso...

    Fui lendo, e sorvendo, a canção e de imediato me lembrei de uma das muitas homenagens que tens reiteradamente prestado a esta Mulher:

    "Soledad no Recife":

    Eu a lembro em pé, de mãos contra a parede à espera do beijo. Digo em pé, de mãos contra a parede, e essa recordação me dói, por saber dela, meses depois na mesma posição. Por isso minha lembrança evita a dor, e voa para aquele instante da bela paraguaia à distância de meio braço de mim.

    Os índios sabem por quê. Há um cântico de criança guarani que diz: “Têtã ovy rauy’i / Eikere xevy, eikere devy”, ou “Filha do paraíso azul / Diz, entra para mim”. Assim a senti e a vi, embora nada soubesse, naquela noite, que ela fosse paraguaia. Nem muito menos que ela cantasse, como soube depois, muito depois, cantos de acalanto guarani"

    O cântico acima foi retirado deste magnífico CD de crianças guaranis, que me pareceram cantar em louvor e memória de Soledad Barrett:

    [video:https://youtu.be/l469uaunv6A%5D

    Creio que não é muito te agradecer: acabas de tornar respirável o ar deste inóspito mundo, pois que paira no ar a doçura do teu amor.

    Soledad, onde quer que esteja, por certo também sentiu esta vibração de amor e o olor de jasmim que adoça a tua belíssima recordação: um poema insuperável.

    Com a devida licença desta bela guerreira, estou em lágrimas.

    Belíssimo.

  • o mota, cada ve mais


    o mota, cada ve mais comovente com as palavras....

    um hino aos que lutaram para melhorar o mundo,

    acrificando a vida....

    como diria walter  benjamin, das ruínas da história buscamos

    exemplos para dar um sentido ao nosso presente e ao nosso futuro.... 

  • Veia poética

    Amigo Urariano,

    Todos os seus textos que já li sobre Soledad Barrett são possuidores de uma veia poética muito forte... Essa "Canção para Soledad Barrett" não podia ser diferente. É puro lirismo. E como emociona!!

    Grande abraço.

  • Bom dia, amigas e amigo

    Prezada Maria Carvalho, pesquisadoras indispensáveis Laura Macedo e Anna Dutra, caro Webster Franklin:

    a sensibilidade da gente ganha o carinho das manifestações de vocês. Muito obrigado.    

  • "rojaijú"
    Urariano,

    caliente enero.

    Ontem, reli, encantada, alguns trechos de "Soledad no Recife", este livro-poema que da tua pena eclodiu para presentear sensibilidades e, no meu caso, além: reminiscências. Fechei o livro e ainda por um par de horas fiquei com ele em mim.

    Anotei algumas das minhas impressões sobre esta bela Ode; vou ampliá-las e aprofundá-las e gostaria de, então, ofertá-las, respeitosamente, a você e aos leitores do Blog. Estou iniciando a preparação do post, mas não farei a publicação sem que você me autorize. Meu cuidado está no fato de que não sou resenhista, crítica literária ou jornalista e, trarei, tão somente, uma visão pessoal calcada em meus sentimentos, impressões e vislumbres sobre o teu relato.

    Se você quiser posso te enviar o texto antes da publicação para que conhecendo o teor você faça reparos ou ajustes, se julgar necessário. Minha intenção é a de deixar registrada a leitura; nunca de, inadvertidamente, fazer cair qualquer sombra ou mácula sobre este que é, sem dúvida, o mais visceral relato que já tive sob meus olhos.

    Fique à vontade Urariano: se meu pedido te incomoda, manifeste-se sem peias. Saberei compreender teus cuidados.

    Parabéns! Ter conhecido a Obra só me fez admirar ainda mais Soledad, assim como ampliou e cristalizou o respeito que tenho pela tua reverência a esta mulher, verdadeiramente Solar.

    Soledad no viviste en soledad
    por eso tu vida no se borra
    simplemente se colma de señales

    Soledad no moriste en soledad ...

    Mario Benedetti
    "Muerte de Soledad Barrett"

    Naqueles anos o amor era uma alienação.
    Urariano Mota

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