Controle social total: como a História é reescrita, por Sebastião Nunes

Controle social total: como a História é reescrita

por Sebastião Nunes

No terceiro texto que Wilson devia corrigir, de 10-05-2066, O Globo informava que o Ministério da Abundância (Minidância) havia prometido, num “compromisso categórico”, que a ração semanal de açúcar não sofreria redução. Mas, como Wilson ficou sabendo ao pesquisar, houve, sim, uma redução, de 30 para 20 gramas no referido fim de semana. Era muito simples o que tinha de fazer. Apenas substituir a promessa original por um aviso de que, provavelmente, seria necessário reduzir a ração, para que não houvesse escassez de açúcar nas próximas semanas.

Cumprida a terceira tarefa, enfiado o exemplar original no buraco da memória, Wilson se preparou para o trabalho que realmente lhe dava prazer: reconstituir vidas, refazer biografias: suprimir, recortar, ampliar e reduzir, até que um indivíduo deixasse de existir e outro, se a substituição fosse necessária, passasse a existir em seu lugar.

Wilson não sabia exatamente o que acontecia no labirinto invisível que ficava atrás dos cubículos de onde vinham os jornais, mas tinha uma ideia aproximada. Depois de corrigir e comparar as versões, e depois de ditadas as correções no falaescreve, o exemplar do Globo voltava para as oficinas, onde era reimpressa uma edição fac-similar rigorosamente idêntica, com o auxílio das mais recentes tecnologias. A cópia original era destruída e a nova, corrigida, ia para os arquivos. Esse processo de alteração contínua se aplicava não só aos periódicos, mas também a livros, revistas, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, gravações musicais, desenhos animados, vídeos, fotos… ou seja: a qualquer tipo de literatura ou documentação que pudesse ter o menor significado político ou ideológico. Para evitar contaminação, foram proibidas todas as plataformas de geração, transmissão e compartilhamento de arquivos privadas, como Facebook, Twitter, Google, YouTube, Netfix, HBO, redes de televisão e rádio privadas, softwares de arquivamento em nuvens etc. etc. etc. Restaram apenas as fontes oficiais impressas.

Dia após dia o passado era atualizado. Desse modo se podia demonstrar, com provas documentais, que todas as predições feitas pelo Partido Interior haviam sido corretas. Enfim, não se permitia que nenhuma notícia, opinião ou relato estivesse em conflito com as informações dos arquivos. A História era um palimpsesto raspado e reescrito tantas vezes quantas fossem necessárias. Em nenhum caso teria sido possível, uma vez efetuada a alteração, demonstrar que houvera uma falsificação.

CONTANDO IMPRESSOS E SANDÁLIAS

A maior seção do Departamento de Arquivos, muito maior do que aquela em que trabalhava Wilson, era composta de camaradas cuja obrigação era buscar e recolher todos os exemplares de livros, periódicos e outros documentos que pudessem ter se tornado antiquados e precisavam ser destruídos. Qualquer exemplar do Globo que, por uma movimentação inesperada dos Coronaviridae ou por alguma profecia equivocada do Grande Irmão, tivesse de ser reescrito uma dúzia de vezes, continuaria existindo nos arquivos com sua data original, e não havia nenhum outro para contradizê-lo. Pois os exemplares arquivados eram únicos, todos os demais destruídos.

Os livros também eram reescritos vezes sem conta e, quando reeditados, não se indicava qualquer alteração. Nem ao menos as instruções que Wilson recebia por escrito, e das quais se desfazia imediatamente após cumpri-las, afirmavam ou sugeriam qualquer mudança. Faziam referência apenas a deslises, erros, erratas ou equívocos que convinha corrigir no interesse da exatidão.

“Na realidade”, pensou Wilson enquanto retificava as contas do Ministério da Abundância, “não se trata sequer de uma falsificação. É apenas a troca de um disparate por outro”.

A maior parte do material com que trabalhava não guardava a menor relação com o mundo real, nem ao menos se constituía numa mentira descarada. As estatísticas eram tão fantasiosas antes como depois de retificadas. Às vezes, na falta de instruções, tinham de ser inventadas na hora.

Por exemplo, o Ministério da Abundância havia previsto a produção de sandálias para o quadrimestre no total de cento e quarenta e cinco milhões de pares. A produção divulgada foi de sessenta e dois milhões. Wilson, no entanto, ao reescrever a predição, a havia rebaixado para cinquenta e sete milhões, de modo a permitir a habitual afirmação de que a cota havia superado as previsões.

No fim das contas, sessenta e dois milhões não estavam mais perto da verdade do que cinquenta e sete milhões ou cento e quarenta e cinco milhões. O mais provável é que não se houvesse fabricado sandália alguma. Ainda mais provável era que ninguém soubesse quantos pares haviam sido fabricados nem fizesse questão de saber. O que se sabia, sem sombra de dúvida, era que todo quadrimestre se registrava no papel uma quantidade fabulosa de sandálias, enquanto a metade da população feminina da Terra andava descalça. E o mesmo ocorria com todos os dados arquivados. Tudo empalidecia nesse mundo de sombras, até o ano em que estavam era incerto.

Sebastiao Nunes

Sebastiao Nunes

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  • "...Controle social total: como a História é reescrita..." Isto é a realidade de 1930 até 2020. Como a História foi escrita e reescrita em 90 anos de Estado Ditatorial Caudilhista Absolutista Assassino Esquerdopata Fascista. STF legislando e reinventando um farsante Constituição Cidadã, onde Governadores tem mais Poderes que o Presidente da República. Onde Prefeitos se submetem a estes Governadores mas não precisam se submeter às diretrizes do Governo Federal. É a Pátria da Surrealidade. Onde a cada Governo se tenta um novo golpe, mostrando que o Voto, o Povo Brasileiro, a Democracia não passa de uma farsa manipulável nas mãos deste Elite do Estado Absolutista. Esta Elite da Necropolítica agora demonstra que tem o "Controle Social Total". Você quer sua Vida determinada por tais párias? Pobre país rico. "Do Povo, pelo Povo, para o Povo". Diretamente. Mas de muito fácil explicação. ZÉ SERGIO

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