Ecos de Pedro Páramo, por Jota A. Botelho


Ilustração de Laurie Lipton – Family Reunion, 2005.

Ecos de Pedro Páramo

por Jota A. Botelho

Sobre este tema, recorremos a interessante conferência do já falecido jornalista, escritor e crítico mexicano Germán Dehesa sobre Juan Rulfo, que nos ilumina a obra deste singular autor da literatura mexicana. Dehesa faz uma leitura tão bem apurada do livro Pedro Páramo que nos leva à reflexão tanto pelo significado da obra quanto pela sua transcendência para o nosso país. Mas, em particular, sobre a realidade do México, principalmente depois que o país abriu o século XX com uma revolução única e inusitada, sobretudo ao se tornar eminentemente popular em sua fase mais aguda, onde seus dois principais líderes neste campo chegaram a ocupar a sede do governo, sem contudo ocupar o poder. 

PEDRO PÁRAMO, de Juan Rulfo


Nas extreminadades ilustrações de Laurie Lipton (2004/2008) e no centro foto de Juan Rulfo, de Manuel Alvarez Brava, ca. 1955.

Depois de reler recentemente a obra de Juan Rulfo, O Planalto em Chamas e Pedro Páramo, nesses dias de apreensões e incertezas, fui rever a entrevista do autor no programa A Fondo, da RTV Espanhola, e depois, ao acaso, encontrei essa conferência deste escritor, desconhecido para mim, editada pelo canal Museo de História Mexicana, realizada em 28 de novembro de 1997, que reproduzimos abaixo. Há uma gama de informações que nos são dadas por Dehesa, que vale a pena dá uma olhada. O palestrante fala da vida e obra de Juan Rulfo, que ele conheceu em vida, e várias passagens que nos enriquece e complementa, e que poderíamos ficar aqui horas e horas divagando sobre o tema. Embora tudo o que foi dito ali me despertou a curiosidade, mas o que mais me chamou a atenção foram as questões da corrupção do tempo e a do tempo mítico. 

SOBRE A CORRUPÇÃO DO TEMPO, Dehesa se refere ao que ele considera o fundador da literatura mexicana, Bernal Díaz del Castillo, autor do livro História Verdadeira da Conquista da Nova Espanha, “que havia nos advertido que ele não sabia latim nem foi à universidade, mas isto não era impedimento porque escrevia” – grifo nosso. Segundo Dehesa, Bernal del Castillo era o menos preparado, o menos apto para ser um escritor, assim como Juan Rulfo, que teve uma vida dedicada a todos os tipos de tarefas, até que alcançou o ofício menos literário que podia existir – o de caixeiro-viajante – visitando distintos povoados da miserável região em que vivia. Desta forma, para Dehesa, Bernal del Castillo e Juan Rulfo, são a plena demonstração de que quando se quer contar algo, finalmente se encontra a maneira de contar, com ou sem ajuda de um Octavio Paz, com ou sem a ajuda da universidade, com ou sem o domínio da língua culta, mas que finalmente se encontra a maneira de dizer as coisas. Além de citar Tucídides, o historiador grego, que escreveu a História da Guerra do Poloponeso. Disse Germán se referindo a Tucídides: que nas primeiras páginas de seu livro, ele nos avisa porque é importante escrever, no qual disse Tucídides: “Vou contar a história da guerra entre espartanos e atenienses. E vou contar porque entendo que esta é única maneira de salvar-lhes da corrupção do tempo”. Isso é o que escreveu Tucídides a 25 séculos, e que continua sendo válido – afirma Dehesa. Se podemos escrever é porque o único que sabemos é que o tempo pode destruir tudo, e o ser humano não gosta da destruição de seu mundo. E entende que só a arte, e neste caso a literatura, nos pode salvar da corrupção do tempo – concluiu Dehesa. Para ele, Dehesa, esta foi sua única maneira de entender Tucídides, del Castilho e Juan Rulfo. E continua sua conferência sobre Juan Rulfo, quando ele cita o livro O Planalto em Chamas, cujo um dos contos já se encontrava a semente de Pedro Páramo – a história de um homem que chega num povoado sem presente e sem futuro, que só tinha passado. Que as vozes que estava escutando eram as vozes do passado. 


Fotografia de Juan Rulfo – Arrieros en un camino.

QUANTO AO TEMPO MÍTICO, ele vai de encontro à obra Pedro Páramo propriamente dita. Dehesa nos informa que o nome original do livro seria Os Murmúrios, por causa das vozes que povoavam os ouvidos de Rulfo, mas que um velho amigo seu intercedeu para que ele mudasse o nome para o personagem principal Pedro Páramo, pelo fato de que Pedro alude a pedra e Páramo a um deserto, ou seja, um Pedro pulverizado, que ao morrer se desmorona como um monte de pedras. E que a obra se tornou um livro cheio de rasgos poéticos. Dehesa afirma que é impossível entender o México sem ler este livro. Que o livro faz parte do ciclo de literatura da Revolução Mexicana, onde todos os escritores deste período já haviam se dado conta que a revolução seria uma revolução falida, que a revolução foi uma revanche, e que mais do que uma verdadeira transformação do país implicava num porfiriato eterno e num priísmo sazonal, isto é, referente ao Partido Revolucionário Institucional (PRI). Que a única diferença foi um milhão de mortos durante a Revolução, e que vem mudando o rosto do ditador a cada turno. Embora ocorrera uma série de conquistas menores, mas todas elas estão falidas, ou frustradas, ou trapaceadas. Que a revolução teve uma constituição subtraída, e uma incapacidade de romper com o passado, com o autoritarismo e de buscar sempre que outros decidam por nós. E a odiá-lo e a necessitar-se dele ao mesmo tempo. Enquanto que Rulfo tinha plena consciência de tudo isso, sendo que Pedro Páramo tem a perfeita relação com a função da Revolução Mexicana. Dehesa afirma ainda que o livro não conta uma história, porque uma história implica em falar da vida e do tempo. O livro não tem a linearidade da história, mas a circularidade do mítico. Em Pedro Páramo tudo transcorre ao mesmo tempo, na dimensão desconhecida por nós, que é posterior a morte. Devagar vamos descobrindo que todos os personagens que participam, falam e estão presentes no livro já estão mortos. E que o único que estamos escutando são os murmúrios que chegam deste ‘campo santo’. E nos aconselha a ler com cuidado Pedro Páramo para entender o que tanto trabalho nos custa entender, porque os sistemas pós-revolucionários tão ostensivamente autoritários, transpostos e abusivos sobreviveram e de muitas maneiras continuam sobrevivendo. E que em algum momento Rulfo provoca num dos personagens à definição de Pedro Páramo: ‘Pedro Páramo é um rancor vivo, e deste rancor nós nutrimos todos’. Que o ideal na vida é viver para amar alguém, mas quando isto se corrompe ou se torna impossível, então passamos a viver para odiar alguém. Isso também passa com Pedro Páramo, e passa com a relação dos mexicanos com seus representantes políticos, pois tem sempre a mão a quem enterrar a mãe, a quem deixar a culpa, a quem carregar o morto, a quem atribuir os fracassos, as derrotas, o que não se cumpriu, o que se roubou, o que desapareceu. Tudo o que ocorreu, finalmente não é culpa nossa – afirma Dehesa. É culpa daquele rancor vivo, mesmo que mude de nome, e que será sempre de Pedro Páramo. E que não é muito lógico esperar do livro a condição de uma novela linear, porque isso ocorre na vida cotidiana, onde primeiro passa isso, logo passa aquilo, e depois vem outra coisa. Em Pedro Páramo tudo está ocorrendo ao mesmo tempo, simultaneamente. Por que depois da morte, o passado, o presente e o futuro não são dimensões que tem alguma validade. O tempo de Pedro Páramo não é um tempo histórico, mas um tempo mítico. Dehesa, em seguida, define o que é um mito. Em síntese, diz ele, o mito é uma grande metáfora persistente e que são poderosíssimos. Ao terminar esta parte, ele afirma que Pedro Páramo é a última elaboração mítica da Revolução Mexicana. Que Pedro Páramo é um aviso de que a Revolução Mexicana já está morta, e que segue emitindo palavras. São murmúrios que chegam do cemitério… Que já não dá mais. Que já se acabou. Há que se pensar em outra coisa. E prossegue com sua conferência, nos reafirmando que Pedro Páramo é um rancor vivo… Que o aviso de Juan Rulfo é que os mexicanos podem viver ao redor de um rancor vivo. Que os mexicanos podem viver para ODIAR. E do quanto é triste a vida daqueles que somente encontram raiz e razão para viver no ÓDIO… 

A CORRUPÇÃO DO TEMPO NUM TEMPO MÍTICO


Ilustração de Laurie Lipton – Los Paragueros, 2004.

Aqui fazemos uma pausa e deixamos o término da conferência de Germán Dehesa para os ouvidos dos leitores que porventura queiram fazer também sua associação metafórica entre a Corrupção do Tempo, isto é, do tempo histórico que estamos vivemos atualmente no Brasil, que finalmente levantou o véu de todas as nossas mazelas que sempre nos encobriu em todos os tempos e em todos os setores da sociedade brasileira, com o Tempo Mítico, ou seja, a passagem do ex-presidente Lula pelos salões da Casa Grande, considerado por muitos o menos preparado para ser presidente e que aflorou todo o tipo de paixões e sentimentos, de esperanças e medos, amor e ódio, num rancor vivo, cindindo definitivamente o Brasil até o presente momento. Por isso, no nosso entendimento, ele deveria ser julgado tão somente pelo povo brasileiro, para que este não venha a viver numa nação petrificada e desertificada, pulverizada em seus esqueletos, emitindo vozes e murmúrios, cheios de fúrias e ódios. 

O México de Juan Rulfo também pode ser aqui.

https://www.youtube.com/watch?v=Y88B7gnC_zo align:center
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Juan Rulfo, por Naranjo

Sobre Juan Rulfo:
Templo Cultural Delfos – Elfi K. Fenske
Juan Rulfo – Site Oficial     

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Jota Botelho

2 Comentários

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  1. Verdade,tenho alguma em comum
    Verdade,tenho alguma em comum com o companheiro Jota A.Botelho.Em tempos idos e vividos ele trouxe até aqui alguma coisa sobre a obra de Joel Silveira,ocasionando um certo mal entendido,de pronto resolvido.Seria o gosto pela literatura.Pedro Paramo,o mais importante romance do escritor mexicano Juan Rulfo,recebi com marcante dedicatória de Papai,e o li antes de completar 20 anos de idade.Octavio Paz,conterrâneo dele,e outro monstro sagrado da literatura mundial,considerava Rulfo um dos mais brilhantes escritores da geração dele,senão o maior.Receba meu abraço e os merecidos parabéns.

  2. Pedro Páramo

    Caro Jota Botelho

    Muito obrigado pelo excelente artigo. Pedro Páramo é dos 10 livros que levaria para ilha deserta. Como você muito bem descreve, é uma história do México. Há as histórias dos manuais, dos fatos, das datas, das personalidades; há uma outra e mais vívida história, que está no Rougon Macquart, de Zola, na obra de Camilo Castelo Branco, e no Pedro Páramo. A história da alma de um povo. Recentemente escrevi um artigo sobre a Coreia do Norte – um verdadeiro enigma, desfigurado pela mídia – e, contrariando as farsas que lhe cobre, mostrei, assim espero, um povo que juntou o confucionismo milenar, ao marxismo nacionalista (por contraditório que lhe pareça) e que age, permanentemente, na defesa de sua existência. Por acidente geográfico teve suas fronteiras com dois impérios (Russo e Chinês), foi ocupado por meio século por outro Império (japonês) e vive ameaçado pelo império norte-americano. Precisava de seu mítico, que ocorre com o Zuche. Parabéns

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