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Fragmento de uma história, por Maira Vasconcelos

Por Maíra Vasconcelos

Muito cedo perdi meu pai de vista. Meu pai foi um ser extremamente fantástico e sarcástico, possuía uma medida única em seus olhos para ver o mundo todo ao redor. Entregava-me essa sua mirada, a de como o mundo deveria pertencer também aos meus olhos, ao de sua amada filha. Meu pai cometia excessos, talvez excessos de muito amar e que vinham com brutalidade porque às vezes não sabemos entender o carinho da crítica, aquela crítica que constrói e amassa um pouco também, até você virar um outro melhor, renovado pelo xingamento a si mesmo. E ao seu lado eu era sempre avisada, com as devidas críticas, para que me esforçasse a ser melhor do que fui ontem, ser melhor do que fui ontem, e assim todos os dias.

Meu pai ficava muito bravo até que todos entendessem que amar requer luta e falatório, todos os dias. Educar-me preenchia todas as horas e segundos de cada um dos seus altivos e intensos dias. Sua agenda era organizadíssima, via-se de longe a geometria dos seus passos programados. E sobre a constante educação que me imprimia, durante o almoço, entre uma garfada e outra, numa respiração que não se sabia estar ali, ele apanhava aquele ar e corrigia-me alguma postura ou ensinava-me quantas lições coubessem no prato daquele dia, sempre dizendo que a vida era coisa feita para se trabalhar. Eu ficava imaginando o suor das pessoas que viviam a vida, enquanto eu vivia aquela vida de uma casa com comida no prato, sem ter que correr pela comida. E essa comida nunca nunca poderia sobrar no canto do prato, isso seria o fim do meu mundo e o princípio da crítica eterna. Eu já era grande o suficiente para entender minimamente o mundo ao meu redor, e o mundo passa fome, o mundo passa fome, minha filha; assim meu pai exigia que eu entendesse a fome do mundo inteiro contida todinha em meu prato de comida.

Meu pai sentia raiva das injustiças e queria sempre tudo no seu lugar correto, assim mesmo: tudo tem o seu lugar correto, minha filha, ordene-se. Também os talheres e a mesa pronta e a comida quente, tudo em seu lugar. E às vezes as coisas saíam do seu eixo matemático, escorregavam, degringolavam, ficavam muito ruins, assim como somos nós seres humanos que tropeçamos e tropeçamos em quantas e tantas malvadezas puras de nós mesmos. Então aquela era a hora de vê-lo estalar. Meu pai brigava com as pessoas na rua, na fila para pagar o INSS, no ônibus e no sacolão, e, se necessário, tudo isso junto no mesmo dia. Ele achava um absurdo ser mal tratado ou enganado, ou que as coisas não estivessem como deveriam na prateleira do supermercado e nas contas de água, luz e telefone. Essas empresas são extremamente salafrarias e seus funcionários recebem tão mal que não conseguem resolver o mínimo que lhes compete, era assim sempre, ele contava e recontava e reclamava ao chegar em casa. Somos adultos iguaizinhos a marionetes, minha filha, e ninguém sabe realmente sorrir, disse certa vez.

Assim, meu pai foi incrível, sempre à altura perfeita de uma ironia. Ele repetia e repetia que a vida era muito difícil, e eu tentava entender o que era uma vida difícil, porque aos doze anos não conseguia medir e nem projetar essa dificuldade. E ao ver sempre aquele pranto de suor nas pessoas que correm de um lado a outro, trabalhando, entendia que aquela poderia ser uma vida difícil. E eu entendia, talvez, que sem levar uma vida difícil tudo poderia ser um pouco chato, se esforço nenhum eu fazia, nem mesmo para limpar o quarto ou a cozinha ou os pratos depois do almoço. Sempre tivemos a famosa empregada doméstica. Mas meu pai dizia que ela custava um certo valor do seu suado dinheiro trabalhador, que ela era uma profissional, e que de nenhum modo isso impediria que eu arrumasse a minha cama ao despertar, todos os dias.

E no dia em que meu pai desapareceu da minha vista, assim tão cedo como foi, eu perdi a ideia do que seria uma vida difícil. Porque o que passei a achar mais difícil foi viver sem vê-lo encontrá-lo reconhecê-lo no andar dentro de casa. Ainda na adolescência, comecei a buscá-lo, como quem busca um corpo melhor para se vestir. Nessa época tudo ainda estava se ajeitando entre todas as partes mutantes de mim e, como se não bastasse a desarrumação corporal, tive que lidar com o desaparecimento do meu grande enorme e fascinante pai. Não tive tempo de odiá-lo ou matá-lo ou ter uma discussão fatídica na qual eu terminasse no quarto chorando muito, e ele, dono da situação, esperando na sala a ferinha ficar mais mansa. Não tive tempo para mais que amá-lo e admirá-lo. E muito. Como uma menina que idolatra ao pai comparando-o a um potente animal dono de si e de toda a selva. Meu pai foi um rei, certamente. Tive o tempo certo para achar que ele era o homem mais cheio de virtudes que eu poderia conhecer em toda a minha vida. Essa que foi a minha curta vida com um pai ao lado, que duraria até os doze anos. Meu pai junto aos meus olhos durou apenas essa miséria, e assim ele ficou petrificado envolto a esse maravilhamento da falta de entendimento da vida que permeia a extrema juventude.

É por isso que sempre volto a buscar meu pai durante e depois de um escorregão, porque ele sempre esteve a estender a mão para me ajudar a levantar do chão infestado de poeira e brincadeira. Agora, tento resgatá-lo nessa vida miserável de álcool e amores arruinados, para que ele diga alguma coisa nova e brilhante sobre meus estados de excitação frente ao mundo. O mundo que ele dizia, nas entrelinhas de um almoço, ser um mundo plenamente ordinário. Hoje sei o que ele queria: que eu compreendesse o mundo como ordinariamente pobre de espírito. Mas, onde está meu pai? Essa pergunta eu faço sempre, desde que comecei a escrever este diário, sendo uma adulta alcoolizada constantemente e uma falsa e ousada jornalista por pressão social.

Ainda não perdi o costume de buscar meu pai pelo ar, naquele ar entre as garfadas do almoço. Hoje, almoço geralmente sozinha e cozinho sozinha. Tento ter meu pai através de um sopro de memória. Mas não posso saber o que ele me diria hoje sobre tudo isso que sou e ele não vê. Meu pai não me vê mais. Esse espelho não há. E o que é isso que ainda vejo dele em meus dias? A memória não serve como companhia do presente. A memória perde o sentido quando queremos que ela viva. A memória é morta e restrita. Restrita. Ela não poderá rejuvenescer, jamais. Sou muito velha quando penso e pergunto por meu pai. A memória do meu pai serve para que eu saiba como me constitui menina até os doze anos: sob seu enorme guarda-chuvas ao meu lado, amando-me e ensinando-me que a vida é difícil e dura, tendo a ele como minha base exclusiva, quem beijou e moldou e limpou meus pés. Meu pai limpou esses pés com os quais hoje piso chãos sujos, sei. Mas sei também, que depois do meu pai ter cuidado tanto de mim, vivo cotidianamente a sua ausência. Mais um dia sem, outro dia sem. E fiquei assim muito presa ao seu desaparecimento, sendo essa mulher, tal como pude ser, fazendo-me um pouco pelo álcool, outro pouco pelos amores, também pela leitura e pela escritura, olhando de longe a menina que teve um pai que a colocou no colo e a esperou na porta da escola.

E meu pai nunca bebeu comigo, ele foi retirado do direito de ver e conhecer a sua filha, em todas as suas etapas. Meu pai não me conheceu mulher porque a vida ficou muito difícil, ele sabia disso muito bem. Mas se ele estivesse aqui, e esse exercício de pensar o impossível é quase involuntário porque escrevo neste diário, e escrever tem dessas delícias imaginativas e de querer profundo, então se ele estivesse aqui talvez eu não fosse essa mulher que bebe e bebe, porque ele estaria comigo, assim, zelar e doer na dor da sua falta eu não precisaria. Mas acabei sendo esta mulher rígida pela memória infalível do meu pai. A sua falta de presença e insistente permanência em meus pés de mulher, que são os mesmos pés que ele cuidou na minha infância, fazem com que tudo fique ainda encrustado no viver dos dias, e meu pai parece vivo, às vezes. Por isso pergunto sempre: onde está meu pai?, porque muitas vezes ele parece ainda estar aqui ainda, e apenas por um erro da vida, essa vida que é muito difícil, apenas por isso é que eu não o vejo mais, mas pergunto pela sua presença. 

*fragmento de O Diário de Barbará, história que comecei a escrever em novembro de 2012, já passou por três revisões, e continua a ser escrita e revista.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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