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Para Lúcia e Castro Alves, por Maíra Vasconcelos

(mulheres contemporâneas jamais pisarão o tempo exato!,
se o passado não for contemplado, se não for assim em nós assolado)

Que pensamento mais enviesado!, penso em versos-poesias e estou agora fechada neste avião a trabalho. Mas mesmo que fosse ainda mais forte tal vento contemporâneo, nem assim me levaria embora esta perseverante lembrança dos brancos lenços da jovem Lúcia: desenho versado escravo do nosso poeta Castro Alves.

Por onde e como andaria aquela pobre e cheia de frio menina?, perguntas de uma manhã chuvosa.
Quantos amores travessos passaram pelos chãos agrestes do nosso poeta?, perguntas de uma manhã chuvosa.

Vou ficar tão revoltosa aqui dentro deste avião!, sei que sempre estive em bravo galopar preparada para este novo tempo afrontar.., e assim vou falar de Lúcia! Lúcia que viveu em restritos versos, versos que foram somente de Lúcia. Ela não pertence às oito sombras amorosas de Castro Alves, Lúcia não foi uma de suas mulheres fantasmas, dos amores catalogados em penumbras – 2ª sombra Bárbora, 1ª sombra Maritea, 3ª Ester.. – por fim, o que existiu entre Lúcia e Castro Alves? Lúcia, aquela menina cativa, ela foi do laço libertada?

O avião continua calmo, como se nenhum vento atravessado o perturbasse, por isso ele é extremamente bruto!: consegue sobreviver pairar em céus e temporais como se não existisse o passado. Não sei se neste avião as pessoas olham pela janela e sabem que antepassados nos rondam a todos. Dar-se-á então aqui tal bela contradição em mim! É justamente neste momento em que tudo se concentriza, este pensamento em Castro Alves, tão persistente comigo há meses. Será mais uma dessas minhas desventuras, mulher dada a simples admirações poéticas – Eu! que tenho comigo esta coleção de amores poetas, desses bem antigos e amarelados. São eles em meu dia-a-dia tão confusos assim: na esgueira da contemporaneidade em tempos digitais, penso obsessivamente nos versos escritos para Lúcia: século XIX, mais precisamente, São Paulo, 30 de abril de 1868.

E às vezes tudo se liquida, até mesmo este apressado espaço contemporâneo, que poderia apagar Castro Alves e Lúcia, mas Lúcia virou verso na eternidade, marco célebre no tempo guardado, lugar de fuga para novas fortunas de mulheres. E se hoje tanto aprecio Lúcia, insisto interrogar buscar por quem ela foi?, como realmente viveu aquela menina?, pergunto porque fugitiva-feminina faço morada debaixo dos seus braços, braços que com a poesia de Castro Alves se tornaram brancas e férteis asas. E Lúcia poderá ser, graças a todas nós, retomada nestes tempos, se em cada mulher prevalecer seu semblante em estrutura de luta realçada.

*

Pois nenhum verso-escrito poderá jamais ser perdido, a continuidade a-temporal da palavra é a razão e vida de toda escrita que se preze – lembremos Castro Alves e saberemos vir e ressurgir com as raízes que nos fundaram, , , neste país esquecido e abrupto, onde o sangue da violência é a medida de muitas calças pernas e sapatos desamparados: o vermelho distorcido paira no que ainda não morreu, nos armamos coagulados presos retidos numa mais fina selvageria – a matança que se vive hoje justifica qualquer arte!

Relembremos olhos de uma mulher que foi amada, a amada prisioneira Lúcia! E quantas mulheres devemos ainda respaldar cuidar exaltar. Elas existem! Vão-se séculos e jovens negros-negras ainda arrastam o barulho dos pés persistentes pelo direito de uma vida digna!

Este segregado povo bate nas brechas da minha janela,
convive-se com o lado animal no tom errado, urgem mares,
no humanamente falho.

*

Mesmo no conforto deste trabalho merecido, não me esqueço dos tantos resquícios! Daquele passado um resto sobrou alojado no seio do nosso modo mais primitivo, primitivo de ainda resvalar e jogar pelas beiras gente que de bem tem conseguido o mínimo. Por que ainda almejar o máximo, se o pouco e diminuído nos faz em pele furo e abrigo?

Eu canto,
verso! verso! verso!,
meu jovem e exaltado amigo,
és tu meu aconchego velho.

Olho pela janela deste avião desregulado e vejo esta vida dividida, das alvenarias das palhas do trigo e do ouro de um tempo morto, mas tudo isso está tão vivo! em cada sol que chove e treme a verdade explícita do tempo que é descontínuo. Poetas das veias passadas, eu vos convido a bailar comigo! Não consigo me desfazer do antigo, eis a prova aqui comigo. Hoje, de cima deste avião, piscinas aos meus olhos brilham, são tantas as gentes que disso se iluminam, e justo aqui não esqueço que levo-trago comigo a mala dos poetas antigos.

Mas no paralelo me desvio, quando passo a estar ao lado da correnteza, junto a mais contemporânea atividade produtiva do mundo que ficou virtual. Quando sobre nós nuvens digitais irão pairar e navegar e se amontoar cada vez mais, como se tudo pudesse ser alcançado e beijado – finge-se tanto!, mas um dia perceberão que em nada disso pulsou um só brio de saliva. Algo será mais que mera impressão virtualizada?, nesta época onde há menos pano algodoal artesanal, e tudo se supõe mais mágico do que deveria, a ilusão ótica entrou como pão no cotidiano, o rondar dessas nuvens digitais têm mudado a impressão e a velocidade dos nossos passos olhos e mãos, meras impressões!, se há muito muito tempo continuamos iguais a nos agarrar ou a nos acorrentar pelo mundo.

Há ainda tanto passo de pé arrastado fazendo barulho insuportável!, cada barulho de cada pé diz ao certo quem tu és, quem somos no mundo e como estamos nele parados, cada barulho de cada pé expõe o modo como rastejamos ou nos fazemos rastejar, se estamos parados no descanso ou esturricados baixo a força delatora de cada sol.

Permanecemos estancados no tempo!, quando meninos engraxam sapatos de empresários por R$7,00 nos aeroportos de são Paulo. E um desses espertos engraxates inquietos, mesmo vendo que meu calçado não vale o engraxe, se aproxima..mas eu digo: não meninos!, andem logo daqui, estamos num chatíssimo aeroporto, imundos vamos trabalhar porque mais que vocês temos que ganhar!

*

Então, menina que serviu e morou sempre numa casa que nunca seria sua!, servir e servir!, foi assim a vida-sina da nossa pequena Lúcia. E agora temos tantas meninas soltas libertas e esquecidas da existência eterna da obediente Lúcia. Mas ainda devemos muito correr correr para superar o tempo, fazê-lo movê-lo revê-lo, e seremos enfim donas do nosso tempo, quando nele cultivarmos qualquer coisa que meça a acelerada forma enviesada das asas de uma borboleta antropomorfa. Quando pudermos abrir a porta de trás pra frente, e vice e versa, ter agilidade de verdade, e não esta confusa e híbrida desconjuntada vida transitada na realidade virtual.

Mulheres de terno, homens de terno, ah!, desconfio seriamente que a igualdade seja ainda muito mais que isso. A mulher de terno tem a utilidade que num ponto fica já inútil, mas continuem com seus ternos e não se esqueçam do querer das asas – a conquista da ocupação por igual é um edifício pobre e vazio à espera de ternos e gravatas abandonadas – apodrecer dentro de ternos pode ser a configuração do presente fatalmente irreflexivo, pois qualquer edifício do tempo presente será capaz de sempre se encher encharcar se rechear de novos e mais ternos!

*

Castro Alves, nunca foste tu nenhum escravo!, mas eis que o poeta perdeu o pé e aquele digno barulho no meio do caminho, mesmo tendo sempre andado bem calçado. E hoje faço memória a Lúcia e Castro Alves!, ainda estando em cima deste avião quadrado..mas daqui confirmo o meu voo, e sei que jamais aceitarei perder as minhas asas, estas asas com as quais combato as enfermidades deste atual presente anuviado. E às vezes, posso tontear entre essas asas de que estou a falar, ah, mas que confusão real mais cruel!, e para então saber distinguir todas as asas, penso na alegria de uma criança que bem ao alto diria: sim!, minhas asas são maiores e mais fortes do que as asas de qualquer avião! E sorrindo bem grande, toda criança assim nos confirmaria o poder do alimentar de cada voo asa e fantasia.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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