Sobre duas versões de um soneto de Shakespeare, por Ivo Barroso

O desafio de traduzir textos do principal escritor inglês para o português

Enviado por Gilberto Cruvinel

do Estudos Avançados

Sobre duas versões de um soneto de Shakespeare

por Ivo Barroso

Meu  interesse pelos sonetos de Shakespeare remonta a várias décadas. Um caderno escolar, com três escoteiros na capa, o do meio empunhando uma descomunal bandeira do Brasil, trepado sobre um pedestal onde se lê, a tinta azul – Traduções –, me assegura que já em 1947/1948 eu andava às voltas com Amado Nervo, Émile Lante, Siegfried Sassoon, Manuel González Prada, Baudelaire (L’homme et la mer), o Anônimo espanhol (No me mueve, mi Dios) e… Shakespeare: nada menos que o Soneto XXIX traduzido em alexandrinos.

When in disgrace with fortune and men’s eyes

I all alone, beweep my outcast state,

And trouble deaf heaven with my bootless cries,

And look upon myself, and curse my fate,

Wishing me like to one more rich in hope,

Featur’d like him, like him with friends possess’d,

Desiring this man’s art, and that man’s scope,

With what I most enjoy contented least;

Yet in these thoughts myself almost despising,

Haply I think on thee, – and then my state,

Like to the lark at break of day arising

From sullen earth, sings hymns at heaven’s gate;

For thy sweet love remember’d such wealth brings

That then I scorn to change my state with kings.

 

(Tradução primitiva em alexandrinos)

 

Quando, longe da vista humana e da fortuna,

Choro, triste e sozinho, ao ver-me desterrado,

E o surdo céu meu pranto inútil importuna,

Eu olho para mim a maldizer meu fado,

 

Querendo ser alguém mais rico de esperança,

Parecer com esse alguém, ter amigos serenos,

Desejando-lhe a sorte, os intentos que alcança,

E, do que mais aspiro, estar contente, ao menos;

 

Ainda, nesse pensar, quase me desprezando,

Recordo-me de vós, retorna-me a alegria

E ponho-me feliz, como a calhandra, entoando

 

Hinos ao claro céu, cá da terra sombria;

Pois só de em vós pensar, tão rico me fazeis

Que o meu destino, então, não dou pelo de reis.

 

(Versão editada em decassílabos)

 

Se, órfão do olhar humano e da fortuna,

Choro na solidão meu pobre estado

E o céu meu pranto inútil importuna,

Eu entro em mim a maldizer meu fado;

Sonho-me alguém mais rico de esperança,

Quero feições e amigos mais amenos,

Deste o pendor, a meta que outro alcança,

Do que mais amo contentado o menos.

Mas, se nesse pensar, que me magoa,

De ti me lembro acaso – o meu destino,

Qual cotovia na alvorada entoa

Da negra terra aos longes céus um hino.

     E na riqueza desse amor que evoco,

     Já minha sorte com a dos reis não troco.

 

         O que mais me chama a atenção hoje naquela primeira tentativa é a disposição dos versos, à maneira do soneto petrarquiano, isso talvez porque eu desconhecesse, à época, a notação inglesa, que contrariava minha noção estrutural de soneto. Devo ter encontrado o original inglês em algum livro escolar e o copiasse dessa forma, ainda que discordasse dela ou a achasse equivocada. Daí, na tradução, ter “restaurado” a forma habitual das duas quadras e dois tercetos, sem o que, para o tradutor de então, não estaria produzindo um soneto. Contudo, há nesses versos algumas soluções que sempre me agradaram, especialmente a primeira linha, “Quando, longe da vista humana e da fortuna”, em que o in disgrace do original (equivalente a “sem as graças, sem o favor, sem a consideração dos homens”), foi sintetizado no advérbio “longe” da vista, que me evocava o velho ditado “longe dos olhos, longe do coração”. Mais tarde, ao remanejar os versos em decassílabos para publicação em livro, acabei optando por “órfão”, que dava a ideia de abandono, de ausência, distanciamento, e se encaixava no número de sílabas de que eu necessitava. No segundo verso encontrei em “desterrado” o mesmo conceito de outcast (banido, proscrito), e o I all alone beweep está bem transposto por “choro triste e sozinho”, e o “triste” aí pode equivaler ao reforço (cavilha) representado em inglês pelo advérbio all. A versão decassilábica foi menos feliz: “meu pobre estado” está longe de evocar o outcast do original, e o adjetivo “pobre” é realmente muito pobre nesse verso. O terceiro reproduz exatamente o sentido do texto inglês tanto em alexandrinos quanto em decassílabos, mas a primeira versão é mais abrangente por ter conservado o adjetivo em “surdo céu” (“deaf heaven”), que tive de sacrificar na versão decassilábica. O “pranto inútil importuna” traduz bem o “trouble… bootless cries”, além de fornecer uma rima bastante rica para o “fortuna” do primeiro verso. “Eu olho para mim a maldizer meu fado” corresponde linearmente ao “I look upon myself and curse my fate”, e foi melhorado, graças a já algumas leituras clássicas por ocasião da transposição decassilábica, em “Eu entro em mim a maldizer meu fado”, de sabor pseudocamoniano. Se o quinto verso consegue permanecer próximo do original em ambas as versões, já o sexto, por força da rima, sofre um bom desvio: o original fala em “possuir amigos” (“with friends possess ́d”), mas as versões acrescentam” que eles são serenos ou amenos. O sétimo verso diz, literalmente no original, “desejando (ter) a arte de um (dos amigos) ou o objetivo (de outro deles)”. Na primitiva versão, o pronome lhe equivale a esses desejados amigos, mas a arte de um deles se transforma em sorte”, embora “os intentos que alcança” corresponda, grosso modo, a “that man ́s scope”. A versão decassilábica foi mais feliz com “deste o pendor, a meta que outro alcança”, restaurando a alternância das qualidades de um amigo e de outro. O oitavo verso é mais difícil até mesmo em sua interpretação; em termos prosaicos seria algo como “minimamente contentado daquilo que mais aprecio”, acreditando A. L. Rowse que seja isso uma referência à profissão de ator de Shakespeare: “É possível que em seus momentos de depressão, se achasse insatisfeito com o que lhe dava mais prazer: a representação”. Essa ideia não ocorre na versão inicial mas se aproxima bastante na decassilábica: “Do que mais amo contentado o menos”, inclusive guardando a oposição mais/menos do original (most/least). O nono verso da tradução alexandrina conserva o verbo desprezar (despising), enquanto a decassilábica, por força da rima, transforma o desprezar em magoar, Seguem-se então os belíssimos versos, que em versão literal significam: “Ainda em meio a esses pensamentos, a ponto de me desprezar, por sorte penso em ti, e então o meu estado (de ânimo) como a cotovia, ao raiar do dia, da soturna terra, ergue (cantando) hinos às portas do céu”. Ambas as versões procuram seguir as linhas do original, mas é curioso observar que na inicial a palavra correspondente a lark foi calhandra (calandra), e no outro, cotovia. Por que eu teria usado calhandra? Provavelmente por então achá-la mais “clássica”. O dístico final é uma pedra de toque: “Pois teu doce amor lembrado (pois a recordação de teu doce amor) me traz tamanha riqueza que eu então não me digno de trocar meu estado (minha situação) com (os) reis”. Na versão inicial usei “vós” para traduzir thy, mas na decassilábica (e em todo o livro, aliás), optei por “tu”, tratamento que, hoje, em razão da predominância do você, consegue ter até mesmo uns fumos arcaizantes. O “tão rico me fazeis” da versão primeira é um bom equivalente para o “such wealth brings” e é mais direto do que o decassilábico “na riqueza desse amor que evoco”; a rima final (kings/reis) é bem mais expressiva do que evoco/troco, embora esses versos finais decassilábicos sejam bastante fluentes em português. Na primeira, o state original virou destino, enquanto na segunda, para economia de sílabas, transformou-se em sorte. Um probleminha: na primeira versão evitou-se usar pelo dos reis, que ficou de reis para evitar uma possível conotação antropônima, preocupação afastada na versão decassílaba. Em ambos os casos ignorou-se o “scorn to change” (desdenho de trocar), mais expressivo do que os diretos “não dou/ não troco”.

         Sem nostalgia, concluo que a primeira versão pode ser equiparada à definitiva, feita duas ou três décadas depois.

         No final dos anos 1950, já devia ter uns quatro ou cinco prontos, com os quais obtive uma espécie de passe livre nas páginas do “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil , sob a égide de Mário Faustino e Reynaldo Jardim. Entre aqueles, recordo-me que estava o LXXI (“Não lamentes por mim quando eu morrer”), que me granjeou a simpatia de Manuel Bandeira.

           A fase de trabalhos sitemáticos, no sentido de traduzir um considerável número deles, só ocorreu na Holanda, nos anos 1968/1970, onde deparei, pela primeira vez, com uma coleção completa dos 154 sonetos, numa edição bilingue (inglês/neerlandês), traduzidos por W. van Elden, que minha timidez não me impediu no entanto de conhecer. Foi com a tradução de seu prefácio que passei a ter consciência das dificuldades a que se expunha, em qualquer língua, quem intentasse traduzir os sonetos shakespearianos querendo manter-lhes o ritmo, os jogos de palavras, as polissemias e duplos sentidos, o vocabulário ora erudito, ora popular, a riqueza de ambientes, cores, tons, sem falar nas metáforas peculiares e nos recursos formais que funcionam como elementos gestálticos.

Diz van Elden:

Shakespeare conseguiu extrair da forma soneto tudo o que ela poderia dar. Por meio de infinitas variações métricas e do uso de todos os recursos poéticos, como aliteração, rimas internas, antíteses, repetições e trocadilhos, logrou um resultado quase inatingível. E tudo isso com tal facilidade e naturalidade que os recursos técnicos podem até passar despercebidos a quem não procurá-los expressamente.

          O clima neerlandês terá certamente contribuído para a obsessão de “trabalhar” a tradução dos sonetos até conseguir preservar a maior parte possível de seus elementos, a manutenção da ordem das proposições, os recursos estilísticos, sem abrir mão de seu trânsito poético pelo território da língua portuguesa. Outro caderno, já dessa época, na verdade um bloco de notas (100 vel prima houtvrij schrijfpapier met lynen), atesta a quantidade absurda de tentativas de transposição de um único verso, como o inicial do Soneto I (From fairest creatures we desire increase), com sua aliteração em ff, seguida de uma assonância em crea – até chegar ao equivalente “Dos seres ímpares ansiamos prole” (se/si e pa/pro), pois ora se obtinha a aliteração mas havia a discrepância da rima, ora aquela não se encaixava na métrica, sem falar em nossa recusa permanente aos circunlóquios ou transposições.

          Da Holanda trouxe 24 sonetos que, revistos, foram editados pela Nova Fronteira em livro de luxo destinado a bibliófilos, em 1973. Numa segunda estada na Europa, dessa vez com passagem pela Inglaterra, a obsessão continuou, acrescida então de bom número de instrumentos críticos, com o intento de elevar o número de peças traduzidas para trinta, com vistas a uma edição comercial que veio à luz em 1991. A essa altura, já havia o convívio com edições integrais de renome, como a da Oxford (ed. W. J. Craig) e a da Pelican (ed. Douglas Bush), e a frequentação de autores fundamentais como Stephan Booth, W. G. Ingram e Theodore Redpath, John Dover Wilson, Kenneth Muir, Robert Giroux e A.L. Rowse, com suas notas e comentários elucidativos, além de estabelecimentos de texto. O precioso livrinho Shakespeare’s Wordplay, de M. M. Mahood, mostrava as intenções ocultas e as sutilezas verbais que certamente escapariam sem a sua ajuda. E da joia rara, aquela cujas notas representavam uma espécie de bíblia-guia dos Sonetos – procurada em todos os grandes alfarrabistas de livros raros por onde andei – A New Variorum Edition – que só fui conseguir em cópia xerográfica na Biblioteca Real de Estocolmo nos fins dos anos 1980. Houve também a obsessão de examinar o maior número possível de traduções, especialmente as francesas, a partir da de François-Victor Hugo, que eu já conhecia desde o Brasil. Mas a França me reservou uma grande decepção na pessoa de Henri Meschonnic, incensado professor da Sorbonne, com seu livro Poétique du traduire (Verdier, 1999), em que arrola impiedosamente oito traduções francesas do soneto XXVII (“Weary with toil, I haste me to my bed”), num período que vai de 1887 a 1992. Depois de detonar todos os seus antecessores, Meschonnic apresenta a sua versão que, longe de ser perfeita, nada tem de poética, além de passar voando por sobre o magnífico jogo de palavras do 4º verso, em que Shakespeare brinca com as nuanças de work como verbo e como substantivo (“To work my mind, when body ́s work ́s expir ́d”) e que ele canhestramente traduz por “Que le corps epuisé, l ́esprit ravage”.  Nem sempre o conhecimento teórico assegura a realização poética… Ao longo de todos esses anos que vimos nos dedicando à transposição desses versos imortais, se houve quase sempre a sensação de incompletude, a frustração de não conseguir a desejada semelhança, a mesma riqueza e elevação de tom que prevalece no original, em contrapartida alguma vez nos visitou a alegria de ter produzido um ou outro verso que espelhava um momento satisfatório de nossa própria realização poética.

 

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Publicado em Estudos Avançados. vol.26 no.76 São Paulo set./dez. 2012

 

Redação

3 Comentários

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  1. Ilustrado (ou eh videado?)

    Ilustrado (ou eh videado?) fica melhor.  Aqui tem uma calma, bizarra producao musical aleman -meio videadinha, se voce entende -do Soneto 29, a musica no original em ingles e a fala em alemao -suponho que eh uma traducao mas se for…  o metro deixa a desejar que o pescoco do tradutor se quebre:

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=uRglplWwZ2Q%5D

    Pra representar um autor de 500 anos atraz eu ate entendo uma musica de 4 barras, ha mais contexto do que a unica musica do dia (um samba frances igualmente de 4 barras) e a instrumentacao computadorizada eh muito autentica.

    Note se no video (sonoramente, pois a maioria das pessoas que vai assistir nao fala ingles mas o metro ta todinho em cima) que a metrica de Shakespeare eh tao impecavel que ele RE AL MEN TE parece ser pre incarnacao de Chico Buarque.  Ah, provavelmente em cima da musica cabem todas duas versoes em portugues, ainda nao chequei.

    Incidentalmente…

    Fomos assistir um “Hamlet” sem afetacoes ontem, minha filha era a tecnica de som da producao.  Como eu ja dizia antes das pessoas terem tempo de descobrir que eu tava fazendo gozacao:  Shakespeare eh otimo exceto pelos clichees.  Hamlet, Polonius, e Horatio eram atrizes da escola, todas foram excelentes, e a menina fazendo papel de Ophelia era massivamente excelente, o talento dela atraiu atencao de todo mundo.  Nao dou 3 anos pra essa menina comecar a aparecer em filmes (nao tenho o nome imediatamente).

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