Talvez toda a história da literatura possa ser reduzida a algumas tragédias individuais, por Sebastião Nunes

por Sebastião Nunes

Numa tarde qualquer de outono, dessas que não fedem nem cheiram, conhecido escritor francês decidiu que bastava.

            Paris estava bonita, o ar um pouco abafado, declinava suavemente o sol. O escritor vestiu um pijama, abriu a pequena gaveta lateral da cama e tirou duas caixas de comprimidos. Contou exatamente 38 antidepressivos. Levantou-se, entrou na cozinha, trouxe uma garrafa d’água e um copo, que deixou na mesinha de cabeceira. Colocou no aparelho de som o “Réquiem”, de Mozart, que lhe pareceu adequado para a ocasião. Foi à sala e, no armário de bebidas, escolheu um dos conhaques velhos, de boa safra, que guardava para datas importantes. O dia do Prêmio Nobel, talvez, que nunca ganhou – e desistira de ganhar depois de quatro candidaturas fracassadas.

            Na mesinha do computador, pegou caneta e uma folha em branco. Seria ridículo deixar uma mensagem no computador, foi o que pensou. De volta ao quarto, sentou-se na cama e bebeu lenta, muito lentamente, uma dose de conhaque. Era ótimo. Abriu a primeira caixa de comprimidos, pegou um punhado de seis e engoliu, com meio copo d’água.

            Esperou alguns instantes, olhando pela janela a paisagem brumosa e bonita do fim de tarde. Pegou o papel e pensou que mensagem deixaria. Enquanto pensava, tomou outro conhaque e engoliu mais seis comprimidos com um pouco de água. Continuou pensando, mas nenhuma ideia lhe ocorria, tinha o cérebro absolutamente vazio. De qualquer maneira, constatou, não estava triste, deprimido ou irritado. Não estava nada, como se houvesse alcançado o Nirvana. Nenhuma sensação de dor, alegria, pesar, solidão ou qualquer outra coisa. Nada. Mas percebeu, vagamente, que os olhos ficavam pesados. Tomou mais um conhaque e outros seis compridos com água.

            A música de Mozart havia chegado ao “Dies Irae”, tremenda explosão de beleza e força, um dos pontos altos da música ocidental. Sorriu emocionado, ergueu a caneta – e desistiu de escrever.

 

O QUE TEM DE SER TEM FORÇA

            Quase no mesmo instante, no Rio de Janeiro, uma escritora ainda jovem, considerada importante pelos amigos, estava debruçada na janela de seu apartamento, no sétimo andar de um prédio de classe média alta, no Leblon.

            Poeta e ensaísta, vivia ótimo momento, aos trinta e poucos anos, paparicada pela imprensa e elogiada pela crítica especializada. Tinha tudo, pode-se dizer. De família rica, nunca enfrentara qualquer problema financeiro. Vivendo entre o Rio e o Exterior, pudera construir lentamente, sem pressão de qualquer espécie, uma obra pequena mas sólida, erudita, sofisticada.

            Então, de repente, sem ao menos saber o que fazia, por um simples ato reflexo, saltou pela janela aberta.

 

NÃO É PRECISO TER MEDO

            Vinte anos antes, na mesma cidade e no mesmo bairro, o mais importante prosador brasileiro do século sofria um ataque cardíaco e morria sozinho, apenas três dias depois de ser empossado, com todas as homenagens devidas a seu extraordinário talento, na Academia Brasileira de Letras.

            Era místico e medroso. Em sua obra, e por mais que disfarçasse os próprios instintos à custa de sertanejos valentes e broncos, rudes e líricos, humanos e sanguinários, o medo de viver era uma constante.

            Eleito para a academia, várias vezes adiara a cerimônia de posse, temendo comprometer a saúde de seu “único cliente”, ou seja, ele mesmo, já que era médico e sabia o que o esperava depois da festa.

 

SINTO MUITO, SENTIR É MUITO LENTO

            Enquanto no Leblon a moça pulava pela janela, em Curitiba um cara de quarenta e tantos anos também bebia conhaque, como seu colega francês. Mas bebia puro, sem comprimidos, exercendo com prazer o direito de se deixar roer por dentro. Fazia um pouco de tudo, desde que o assunto fosse arte. Sua própria vida era vivida artisticamente. Cada um de seus atos públicos se transformava em performance – e ele sabia disso, bom ator por instinto.

            Sem motivo aparente, sentia-se infeliz. Perdera um filho pouco mais que adolescente, morto de câncer, e se culpava por ter gerado uma vida destinada ao fracasso. Sim, havia certa ingenuidade nessa culpa, já que todas as vidas são condenadas ao fracasso, mas ele pensava no corte brusco, desnecessário, acontecido antes que as experiências fossem vividas com toda a fúria e toda a ansiedade da juventude. Antes que o tédio decretasse que o fracasso batia à porta.

            E por isso, por essa culpa de que não conseguia se livrar, ele bebia muito mais conhaque do que devia ou podia. Só para ficar entorpecido. Só para não sentir.

 

AOS URUBUS O PULMÃO RASGADO

            Cinquenta anos antes, em Belo Horizonte, um rapaz de vinte e um anos, internado no “sanatório maldito”, tossia, banhado no suor frio que lhe descia pelo corpo. Como seu colega francês, talvez mais feliz do que ele, pois tivera o privilégio de viver até os sessenta e escrevia numa língua culta, o rapaz de Cataguases também olhava pela janela.

            O grande pavilhão, cercado de árvores enormes, ficava escondido em vasta área verde, ocupando todo um quarteirão. Da rua, ninguém ouvia os duetos, tercetos e quartetos de tosse, aquela tosse amarga de quem tosse o que resta, ou tenta cuspir o que sobra. Tossir, tremer de frio – e esperar. De vez em quando, vagava uma cama. Quase sempre, os lençóis estavam pintados de vermelho vivo, uma tinta brilhante e pegajosa que, com o passar das horas, secava e escurecia, num marrom fosco.

            Sentados nas camas de ferro, na comprida enfermaria, os hóspedes se entreolham, imaginando qual deles será o próximo – e desejando que o próximo seja o outro, qualquer outro.

 

ENTÃO A VIDA É SÓ ISSO?

            Enquanto alguns escolhem, outros são escolhidos. Talvez a única regra, o único sinal que separa os que escolhem dos que são escolhidos seja a saciedade, o cansaço, o fim das esperanças.

            De qualquer forma, viver é como escrever: nunca se conta tudo, nunca há tempo para mais exemplos. Exceto para os que escolhem. Estes dizem para si mesmos: “Basta, estou farto”. E fim de papo.

            Enquanto isso, os outros, os que são escolhidos, os que ainda querem escrever, arregalam os olhos e se perguntam: “Mas, já? Acabou-se?” E o tempo passa, os séculos voam, e o Sol continua girando bestamente.

 

Ilustração: Colagem sobre “Medusa”, de Caravaggio, pintura de 1597

Sebastiao Nunes

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