Contra o que diz diretor do INPE e Bolsonaro, monitoramento de biomas brasileiros está em risco

É inaceitável que um cientista não busque conhecer os dados que lhe estão disponíveis dentro da instituição que ele próprio dirige

Sala de montagem de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil em 2020. Hoje, pouco está acontecendo na instalação, pois os fundos secaram. – Foto: © LUCAS LACAZ RUIZ/LATINPHOTO.ORG

Clezio, Bolsonaro, o astronauta e Bretch

Do Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais na Área de Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial (SindCT)

Artigo assinado por Rodrigo Tavares na Folha de São Paulo de 23/junho/2022 anuncia que o monitoramento da Amazônia e do cerrado brasileiro, conduzidos pelo INPE, não está em risco. Uma boa notícia, sem dúvida, se for verdade. Mas será mesmo? De qualquer forma, será que o que está sendo feito pelo governo é suficiente para preservar estes biomas fundamentais para o país?

O atual diretor do instituto, Clezio De Nardin, foi entrevistado pelo colunista e opinou sobre vários temas associados à gestão do INPE. Ele reconheceu o recente declínio orçamentário do órgão, mas tentou amenizar a informação, indicando que a redução teria se iniciado nos idos de 2010. Mas essa tentativa de amenização não corresponde aos fatos, posto que o Presidente daquela época, num período em que o país ainda não experimentava a corrosão da moeda por uma política econômica desastrosa como a de hoje, chegou a direcionar para o INPE em 2010 um generoso orçamento anual de 497,57 Milhões de Reais, em dados corrigidos pelo IGP-M e extraídos do recente Plano Diretor do instituto. Realmente os recursos destinados ao INPE têm caído desde então, mas numa taxa que, até o início do Governo Bolsonaro, não indicava a inviabilização das atividades do órgão.

No afã de proteger suas relações com o governo atual, o diretor esqueceu de citar um fato bem documentado: quando o astronauta assumiu o MCTI, o orçamento destinado ao INPE pelo governo Bolsonaro foi de 199,42 Milhões de Reais, em dados também corrigidos. Utilizando-se de suas redes sociais, porque é mais um caçador de likes deste malfadado governo, e posando com aquele uniforme ridículo de turista espacial, o próprio astronauta declarou sua indignação com aquele valor. Reconheceu a importância do INPE e prometeu que falaria com Guedes e Bolsonaro para recompor os recursos. Parodiando o clássico da MPB, “se falou, ninguém sabe, ninguém viu”, mas hoje já não faz mais diferença porque, embora continue ostentando a indumentária inadequada, já mudou de objetivos e parece que vai se transformar em candidato ao legislativo federal.

Guedes, por sua vez, em rede nacional, declarou que nunca vira ninguém tão burro quanto o astronauta (das palavras do próprio “posto Ipiranga”). É compreensível que tenha se referido ao astronauta dessa forma, porque não obstante o rompante de “indignação” do blogueiro viajante planetário, o fato é que o Ministério da Economia permaneceu reduzindo os orçamentos do INPE, ano a ano, que caiu de MR$ 158,15 no segundo ano de governo (2020) para MR$ 79,14 em 2021, sempre em valores ajustados, chegando, em 2022, ao valor estimado de MR$ 92,30, mostrando, felizmente, uma leve recuperação. E qual foi a reação de Clezio? Teve a dignidade do ex-Diretor do órgão, Prof. Ricardo Galvão, de enfrentar o Presidente para salvar a missão da instituição? Ao contrário, permaneceu atuando como fâmulo de Bolsonaro e seu astronauta, exibindo nas redes sociais os registros de seus encontros com os dois, como se fossem troféus de tietagem. Nenhuma palavra de desconforto foi proferida para desfazer um pouco da imagem de acomodação.

Os diretores pregressos do INPE sempre batalharam pela instituição, e não raro optaram pela demissão para evitar a desonra. Dele constatou-se resignação, descolando-o da tradição de tão importante instituição. Sequer se defendeu ou se revoltou com as palavras desabonadoras que lhe direcionou em público o astronauta, que no diretor do INPE, como em uma criança sapeca, pregou a pecha de “ter moscado”, ou seja, de ter comido moscas, por sua inabilidade em conseguir recursos adicionais.

Voltando à matéria da Folha, Clezio também reiterou que tanto o Programa de Monitoramento da Amazônia, quanto o do cerrado, não estão em risco. Isso seria uma boa notícia para este relevante órgão de pesquisa, mas novamente parece que as coisas não são bem assim, já que qualquer um minimamente inteirado sobre a situação da política ambiental nacional não se deixa levar por esses argumentos.

O artigo prossegue de forma superficial e incompleta, ao dar a entender que o Prodes (Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite) é o único meio de divulgação de dados oficiais de desmatamento aferidos pelo INPE. Sim, sabemos que ele representa a consolidação anual oficial deste indicador. No entanto, há todo um conjunto de dados e alertas ambientais, como os do DETER e de Queimadas, que são absolutamente fundamentais para a gestão ambiental nacional. Será que o próprio diretor do INPE se esqueceu de informar ao articulista sobre a existência desses importantes instrumentos de monitoramento, ou será que ele ignora sua existência?

Mas a desinformação continua e soma-se a estes esquecimentos a citação imprecisa de que as imagens utilizadas são as dos satélites americanos da série Landsat. No entanto, é público que as fontes de dados do INPE vão bem além do Landsat, incluindo os satélites da série CBERS (4 e 4A), o Amazonia-1 lançado em 2021, entre outras fontes de dados. É inexplicável que os sistemas nacionais, que exigiram tantos recursos e tanto esforço dos servidores do INPE para serem concretizados, não tenham sido citados pelo chefe de todos eles. Será que existe um problema político em fazer menção à exitosa parceria com a China, que nos legou os satélites da série CBERS? Das palavras do articulista, parece que o atual diretor do INPE “é avesso a especiarias políticas”, mas não parece avesso às ideologias cuja origem pode ser a paranoia do “perigo amarelo”, uma mal-acabada teoria de conspiração forjada nos mais inconfessáveis interesses geopolíticos de potências ocidentais.

Certamente esta posição “apolítica” do diretor não foi simplesmente adivinhada por Rodrigo Tavares, mas apostaríamos minguados vinténs de uma moeda cada vez mais desvalorizada, que Clezio segredou ao jornalista esta aversão à política. Se de fato ocorreu, teria sido cômico, se não fosse trágico para a instituição que dirige, haja vista que Clezio não tem feito outra coisa a não ser política desde quando se lançou como candidato a diretor.

Sim. Clezio fez política para ser escolhido quando entrou na lista tríplice como candidato a diretor do INPE; faz política ao se alinhar incondicionalmente ao atual governo, sem críticas e sem ao menos tomar posição no momento, por exemplo, em que o INPE foi atacado por Mourões (procure a definição que Ciro Gomes deu a ele com a associação a “… de carga”), Salles e Helenos. E, claro, calou-se vergonhosamente quando o próprio presidente não perdeu uma oportunidade para atacar ao INPE.

Galvão, altivo cientista, tomou um rumo diverso, indo ao sacrifício para não ter sua biografia manchada. Mas Clezio vai além, ao fazer política. Afaga a fina flor do bolsonarismo e dos militares quando os recebe em magotes em seu gabinete, sempre sem perder de vista a exibição dos troféus de tietagem nas mídias sociais. Tivesse Clezio, que reconhecemos ser competente pesquisador, balanceado melhor seu tempo de capacitação, focalizando um pouco menos os MBAs e a literatura de “coaching”, poderia se debruçar mais sobre Brecht. O dramaturgo alemão ensina que “O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”. Ou, em termos mais leves, diz que “é avesso a especiarias políticas”.

Por último, mas fundamental, Clezio deveria saber que quando não defende os servidores públicos do INPE comprometidos com a verdade, frente às tentativas de desqualificar e substituir seus projetos, está sim fazendo política. A pior de todas as políticas, pois está colocando a sobrevivência num cargo de um governo negacionista e avesso à Ciência como mais importante do que o trabalho produzido por colegas de uma instituição que tem 61 anos de idade, comprometida com o conhecimento, e que persegue uma verdade que seja revelada por dados, e não por gurus de ideologias baseadas em teorias da conspiração. É com Ricardo Galvão que os atuais e futuros diretores do INPE devem aprender, mesmo que isso custe ao indivíduo a perda de seus anéis e até de seus dedos, porque é preciso resistir à destruição da biodiversidade e do meio ambiente com todas as forças.

Mais adiante, no mesmo artigo, após reconhecer os méritos do INPE no aprimoramento de seus dados e resultados, refere-se a uma aparente deficiência do Prodes, que seria a inexistência de dados em escala mensal, o que seria “fundamental para um monitoramento mais apertado dos biomas brasileiros”. É evidente que desenvolver tal capacidade seria um aprimoramento relevante. No entanto, fica evidente também que este é um discurso que tenta amenizar o descalabro nacional no tocante à política ambiental, pois corrobora com argumentos do governo federal de que não há informação suficiente para uma ação mais eficaz. Sabemos que a falta de dados mensais não é pretexto para renunciar à análise do conjunto existente, porque o trabalho é suficientemente robusto em termos estatísticos para prover respostas dentro de intervalos de confiança.

Sabemos também, no entanto, que apenas uma fração insignificante dos alertas de desmatamento suscita algum tipo de providência, e mesmo as que chegam a resultados concretos, como a paralisação de maquinário clandestino, ou a imposição de multas, acabam dando em rigorosamente nada, pois os órgãos que cuidam da repressão aos crimes ambientais são hoje francamente hostilizados por nossas autoridades superiores. O que está acontecendo com o INPE também ocorre nesses órgãos, porque o desmonte é estruturado pelos que têm interesses em aumentar a destruição amazônica.

Na sôfrega busca por contribuir com desculpas para o governo atual, o artigo avança imputando ao período utilizado para o cálculo do desmatamento, que não é o do calendário anual de janeiro a dezembro, mas de agosto a julho, e que não coincide com os mandatos presidenciais, como a razão para atribuirmos injustamente ao governo atual responsabilidade pelo que está acontecendo nestes biomas, particularmente na Amazônia. É absolutamente impensável, em termos científicos, aceitar este argumento. Talvez seja o caso de sugerir que o governo proponha uma PEC, ou Media Provisória, que altere as estações do ano, para colocar então o ciclo de desmatamento em sincronia com as vontades políticas. Que tal?

Não satisfeito, o artigo também busca arrumar uma desculpa para a (alta) inflação ou a (baixa) qualidade de ensino atuais, tentando atribuir a culpa às “supostas” poucas dezenas de meses (ou centenas de semanas) que Bolsonaro está no cargo, um governo em final de mandado que alega ser sempre culpa “dos outros” a sua falta de resultados. Surreal! “Vamos dar mais quatro anos ao capitão, que, dessa vez, ele conserta o Brasil”, devem pensar com seus próprios botões aqueles que defendem “tudo isso que está aí”. Os botões, mudos, enrubescem. Ficamos surpresos que não tenha tentado culpar a pandemia, que hoje é a desculpa da vez para justificar porque os mais pobres estão cada vez mais famintos. Essa mesma desculpa não consegue explicar porque o lucro dos bancos bate recordes e porque o pagamento de dividendos da Petrobrás, inclusive no exterior, é um dos maiores da história, dentre tantas outras evidências de que ocorre um aprofundamento da concentração de renda para uma elite que se locupleta da miséria dos mais necessitados.

A vontade de servir sem questionamentos ou críticas, ou seja, sem qualquer inteligência, aos atuais mandatários (não por razões de “especiarias políticas”, é claro…) atinge seu clímax de insensatez ao tentar imputar aos governos FHC, Sarney e Lula os picos de desmatamento, tentando esconder o que o próprio Bolsonaro declarou que ia fazer no campo ambiental. O governo atual herdou um sistema público que levou décadas para se consolidar, e é capaz de reduzir os índices de desmatamento. Mas não há dúvidas, seja por evidências ou por declarações explícitas do governo, que há ações claras para destruí-lo pela passagem de “boiadas legais” da parte dos que acreditam que a Terra deve ser plana, ou nivelada pelos cascos de um gado acéfalo.

É inaceitável que um cientista não busque conhecer os dados que lhe estão disponíveis dentro da instituição que ele próprio dirige. Será que lhe faltaram dados mensais para saber o que, de fato, acontecia na região? A pergunta é pertinente porque é inacreditável ouvir dele tamanha impropriedade! Um lapso freudiano? Lula iniciou o seu governo em 2003 com uma taxa de desmatamento de 27.772 km2, mas através de políticas públicas sucessivas (fazendo a política adequada, senhor De Nardin), orientadas pelos números fornecidos pelo Prodes, o desmatamento foi sendo reduzido ano a ano, até se chegar ao menor índice desde que as séries históricas têm sido registradas por aquele sistema. O número alcançado no Governo Lula foi de 4.571 km2 em 2012, um marco histórico reconhecido por cientistas de todos os cantos do mundo.

Essa conquista foi mantida nos anos seguintes, mesmo que um pouco acima desse “record” de 2012. O golpe contra Dilma foi uma divisa temporal. A partir de 2016 uma tendência de crescimento voltou a ser observada, mas nada comparada com o que se observa agora no governo Bolsonaro. Talvez, como Clezio tem medo de comunistas, pois nem ousa pronunciar a palavra China, seu inconsciente bloqueou os nomes de quem presidiu o Brasil neste período de significativa e consistente redução nas taxas de desmatamento na Amazônia Legal. Mesmo considerando que esse bloqueio não se sustenta nas evidências de qual seria de fato a ideologia de Lula e Dilma, que em quase 15 anos de governo mantiveram o Brasil capitalista.

O artigo prossegue falando de eventuais carências de precisão dos dados e da impossibilidade de utilizá-los com efeito judicial – tudo para formar uma “cortina de fumaça”, com o perdão do trocadilho, que justifique a inação atual.

A parte final mantém a subserviência explícita ao governo atual, emulando a desculpa tantas vezes repetida por nossas autoridades de que “os outros são ainda piores que nós”. Ou, “Se dermos um jeito de saber exatamente o que nossos vizinhos fazem, quem sabe poderemos nos safar da acusação de que nosso governo é incompetente ou trata com má-fé a área ambiental?”. Esse argumento vem disfarçado em uma ideia que não é de todo má – a de que a Amazônia precisa ser cuidada em cooperação com nossos vizinhos. No entanto, as razões para trazer a ideia nos parecem as piores possíveis.

De forma apoteótica, o artigo nos leva a concluir que a culpa é da Bolívia, do Peru, Colômbia e Venezuela. Que triste! Como faz nosso Presidente, sempre que confrontado com seus erros, diz que a culpa é dos outros.

Articulista e entrevistado devem viver em um até agora desconhecido “metaverso ambiental”. Só pode ser. Mas é preciso reconhecer que o conteúdo do artigo não é totalmente inútil na busca de uma verdade sobre o que está acontecendo na Amazônia, porque, pelo menos, serve de mau exemplo.

PS: A respeito do tema, oportuno citar mensagem enviada por Gilberto Câmara, ex-diretor do INPE, ao grupo de diretores e ex-diretores dos institutos do MCTI, do qual Clezio De Nardin faz parte:

“Entendo que a defesa dos valores científicos e do desenvolvimento de Ciência e Tecnologia no Brasil formem a base de nossas convicções e de nossas ações como gestores e pesquisadores. Acredito que todos concordem que esses valores sejam inegociáveis. Defender a Ciência, como sabemos, implica no devido reconhecimento do trabalho de um dos pesquisadores e engenheiros de nossos institutos. Todos concordamos que é falta ética grave que um pesquisador ou gestor se aproprie indevidamente do trabalho de outro colega. Pois bem. Em entrevista hoje à Folha de São Paulo, o diretor do INPE, Clezio Nardin, afirma: “com os avanços das tecnologias de aprendizado de máquina (machine learning) e o aumento da disponibilização de imagens de sensores remotos disponíveis no mercado mundial, os projetos do INPE vêm aprimorando suas metodologias, implementando algoritmos de inteligência artificial, com posterior validação dos resultados e proporcionando, assim, a manutenção da qualidade da informação”.

“Acontece que o pesquisador líder do desenvolvimento de técnicas inovadoras de inteligência artificial e aprendizagem por máquina para melhorar o monitoramento ambiental do INPE é a mesma pessoa de quem Clezio declarou na Justiça não ter vínculos com o INPE, que foi impedido de solicitar apoio para sua pesquisa na FAPESP, e que foi intimado a retirar o nome do INPE de artigo científico desenvolvido em conjunto com seus alunos da pós-graduação do INPE. É isso mesmo. O líder científico da pesquisa em Inteligência Artificial para monitoramento ambiental sou eu.”

“Como gosta o Galvão, seguem alguns dos papers que publiquei em revistas indexadas nos anos recentes sobre o tema, em conjunto com meus alunos e outros pesquisadores (é apresentada uma extensa lista de publicações).”

“Além dos papers, sou também o desenvolvedor líder do software SITS, sistema de código livre em R que está sendo utilizado pelas equipes envolvidas em modernizar o ambiente de monitoramento do INPE. O software está disponível em https://github.com/e-sensing. Quem acessar a página https://github.com/e-sensing/sits/graphs/contributors poderá verificar que sou diretamente responsável por 40% do código, além de liderar a equipe.”

“Peço aos colegas ex-diretores e diretores que analisem se essa postura do diretor do INPE, ao divulgar para a imprensa como grande avanço de sua gestão a contribuição de um pesquisador que ele insiste em perseguir e negar seu valor, não se constitui numa grave violação ética os princípios básicos que todo gestor de C&T deveria seguir.”

“O diretor do INPE deveria ter vergonha de se apropriar do trabalho de um cientista a quem persegue. Mas, afinal, essa hipocrisia tem tudo a ver com as práticas do governo Bolsonaro.”

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