Destinação de resíduos expõe entranhas do sistema, por Arnaldo Cardoso

Um passo importante foi dado em setembro passado ao serem inseridos os têxteis no alcance da Lei de Reciclagem e Responsabilidade Ampliada do Produtor (REP), promulgada em 2016 no Chile

Destinação de resíduos expõe entranhas do sistema

por Arnaldo Cardoso

Como evidenciado mais uma vez na Cúpula do Clima Global em Glasgow a luta pela salvação do planeta confronta lógicas do sistema capitalista e impõe à sociedade civil organizada o enfrentamento de problemas gerados por atores estatais e privados, que optam pela inércia ou, deliberadamente agem criando ou aproveitando brechas que facilitam o cometimento dos mais variados crimes ambientais. Atores que, como psicopatas, só conhecem o egoísmo e a medíocre fórmula do ganho fácil, sem arrependimentos, agem comprometendo o presente e o futuro da humanidade.

Depois dos registros assustadores da violência das chuvas que causou destruição e mais de 160 mortos em julho do ano passado no oeste da Alemanha e outros eventos como incêndios na Califórnia acompanhados de elevadas temperaturas em todo o Hemisfério Norte, agora tem sido a vez do Brasil que após meses de escassez de água em quase todo o país, vem sofrendo com as devastadoras chuvas no sul da Bahia, avançando sobre Minas Gerais e, nos últimos dias, em cidades do estado de São Paulo, causando destruição e mortes em todos esses territórios.

Em meio ao noticiário dessas catástrofes no Brasil se alternam notícias de omissões e desmandos do governo federal, perseguição e morte de ativistas ambientais e de direitos humanos e diversos crimes ambientais cometidos por agentes privados sob o mantra maléfico do “liberalismo maximizador de oportunidades”.

A importação de resíduos proibidos

Um caso ocorrido em julho passado que voltou dias atrás ao noticiário é ilustrativo de uma atitude que, longe de ser exceção, ajuda a compreender a extensão e profundidade dos problemas a serem enfrentados.

Uma empresa produtora de embalagens sediada em Goiás que importa resíduos de papel usados como matéria-prima em seus processos industriais, teve carga de 93 contêineres apreendida pela inspeção do IBAMA no Porto de Santos-SP por conter resíduos característicos de lixo doméstico misturados ao papel/papelão. Garrafa plástica com resto de líquido, lata, luvas e máscaras usadas, fraldas geriátricas, roupas usadas, pratos descartáveis, foram alguns dos resíduos encontrados misturados com papelão. Isso caracteriza carga perigosa, com risco de disseminação de doenças, proibida pela legislação brasileira de ingressar no país.

Uma investigação feita por equipe da Columbia Journalism School e do UOL constatou que “setenta e três contêineres partiram de três portos da costa leste dos EUA” […] “Outros 10 contêineres saíram do porto de Cortes em Honduras e 10 do porto de Caucedo na República Dominicana, todos chegando ao Brasil via Cartagena, Colômbia”. Apurou-se também que no último ano a empresa “importou mais de 250 contêineres de resíduos de papel. A maioria veio do mesmo exportador nos EUA (CellMark Inc.) e passou sem inspeção das autoridades brasileiras”.

A Convenção da Basiléia

Em 1993 o Brasil ratificou a Convenção da Basiléia, que é o instrumento que estabelece mecanismos de controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e seu depósito. Essa convenção baseia-se no princípio do “consentimento prévio e explícito para a importação e o trânsito desses resíduos, coibindo o tráfico ilícito”, portanto, uma importação desse tipo de resíduo só pode ocorrer com consentimento prévio, por escrito, por parte dos países importadores. No Brasil, as autoridades competentes e de ponto focal são: Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Meio Ambiente e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).

Os Estados Unidos, que figura entre os maiores produtores e exportadores de resíduos é um dos poucos países do mundo que não ratificou a Convenção da Basiléia, mantendo essa atividade (exportação de lixo) bastante desregulamentada.

A empresa de embalagens de Goiás importadora da carga apreendida foi multada pelo IBAMA em R$ 44 milhões e está recorrendo com pedido de “conciliação”, que é um “instrumento criado no IBAMA no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (2019) como uma espécie de negociação antes do pagamento da multa”. (Ambientalistas e analistas criticam medidas como essa que abrandam o rigor da legislação de proteção ambiental e relativizam responsabilidades).

A socióloga, professora e ambientalista Marijane Lisboa, em sua tese de doutoramento defendida em 2000 na PUC-SP e publicada em 2009 pela editora Saraiva com o título “Ética e Cidadania Planetária na Era Tecnológica – o Caso da Proibição da Basiléia, já alertava que “[…] a fragmentação do processo de tomada de decisões – técnicos, administradores públicos, legisladores, autoridades de supervisão, tornam-se todos irresponsáveis pelos resultados  finais, ou apenas responsáveis por sua pequena tarefa dentro da divisão do trabalho, tal qual cada oficial nazista podia ser considerado responsável ‘apenas’ pela prisão, cadastramento, transporte, controle da válvula de gás e queima de cadáveres dentro da Solução Final aos judeus nos campos de concentração” (LISBOA, 2000, 58).

Desde muito atuando na Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP a professora Marijane Lisboa (de quem tive a fortuna de ser aluno) hoje coordena também o pertinente curso de Ciências Socioambientais que propõe “Entender por que chegamos a essa catástrofe ambiental, buscar soluções que já estão aí pedindo para ser adotadas, revolucionar nossas ideias e reunir as muitas pessoas, organizações, movimentos, empresas e instituições nesse esforço comum e urgente” de salvar o planeta.

O Chile e seu deserto poluído pelo lixo da fast fashion mundial

A cidade chilena de Iquique, a oeste do deserto do Atacama, com seus quase duzentos mil habitantes tem no turismo popular e nas atividades portuárias principalmente ligadas a indústria pesqueira as principais fontes de sua economia.

O Porto de Iquique se beneficia da condição de ser uma Zona Franca, criada para “estimular o investimento no extremo norte do país”. As mercadorias ingressadas em zonas francas não pagam taxas alfandegárias, impostos ou qualquer outra tarifa.

Mas por trás das fotos que as agências de turismo expõem de praias ensolaradas, Iquique assiste ao crescimento das montanhas de tecidos, camisetas, calças, saias, chapéus empilhados ou espalhados por dunas de areias em seu deserto.

Isso que é visto em Iquique e em outras partes do Sul Global (como Gana, na África) é a medonha expressão de uma lógica operante na indústria mundial da fast fashion, que na última década viu seus custos de produção serem reduzidos por uma combinação de fatores como avanço tecnológico, expansão da escala de produção e exploração massiva de mão-de-obra precarizada.

Peças baratas com defeitos, ou simplesmente não vendidas, bem como fardos de tecidos, são descartados em regiões remotas servidas por algum porto e, de preferência precariamente regulamentadas ou com sistemas de inspeção subornáveis.

Em Iquique, há quinze anos essa situação só se agrava. Os danos ambientais se dão pelo acúmulo desses resíduos ou quando algumas dessas montanhas de roupas são queimadas gerando fumaça tóxica que chega nos moradores da cidade que sofrem com isso.

Leis nacionais com lacunas se tornam ameaças quando se encontram com as disfunções do mercado global. As principais origens dessas roupas exportadas para o Chile são rejeitos de confecções de países asiáticos e peças de temporada usadas por consumidores da Europa e Estados Unidos e rapidamente descartadas.

Essas roupas/rejeitos exportadas para o Chile (único país da América do Sul a aceitá-las) são descartadas clandestinamente no Atacama pois os aterros legais não aceitam roupas, conforme portaria do Ministério da Saúde chileno, por serem nocivas ao solo.

Um passo importante foi dado em setembro passado ao serem inseridos os têxteis no alcance da Lei de Reciclagem e Responsabilidade Ampliada do Produtor (REP), promulgada em 2016 no Chile, que “obriga essencialmente os fabricantes e importadores de seis produtos prioritários a recuperar uma porcentagem deles após o término de sua vida útil”.

Com isso empresas de reciclagem encontrarão suporte legal para investimentos em processos de transformação desses resíduos têxteis. Mas são muitas as medidas ainda necessárias para que isso prospere.

A indústria têxtil em discussão

O artigo “Geografía de la Ropa desechada en Chile: Desierto de Atacama se ha convertido en un gran basural têxtil” disponível no site da Universidad de Chile dá a saber que o seu Departamento de Geografia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) abriu um debate público sobre o problema envolvendo acadêmicos, pesquisadores, empresários e governo.

Beatriz Bustos, geógrafa da FAU e especialista acadêmica em desenvolvimento rural, geografia econômica e ecologia política, aponta a “urgência de dar visibilidade ao problema e ação de todos os atores envolvidos”. 

O artigo mencionado ressalta que “A indústria do vestuário é uma das mais poluentes do mundo. Sua produção envolve o uso de grandes volumes de água e produtos químicos” […] “A pegada ecológica de uma peça de roupa é devastadora. Citando dados de estudos realizados pela ONU, informa que hoje 73% das roupas pós-consumo é jogada fora e menos de 1% é reciclada”.

A professora Beatriz Bustos assevera que “Há uma dívida do Estado para reparar e limpar os territórios degradados pelos resíduos têxteis, espaços em que vivem muitas comunidades”.

Chamando a responsabilidade de atores como universidades e cidadãos ela ainda salienta que “temos o papel de tornar visíveis as cadeias globais de produção têxtil e gerar educação cidadã sobre a origem das roupas que estão em nosso armário e para onde elas vão quando paramos de usá-las”.

As disputas no interior do Estado-Nação e as possíveis saídas

Em novembro passado, por ocasião da Cop-26 o respeitado intelectual americano Noam Chomsky, professor emérito do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e um dos mais incisivos críticos do poder e defensor da autonomia e ação política das pessoas comuns concedeu uma entrevista a Stan Cox, no Tom Dispatch, traduzida por Vitor Costa e publicada pelo Outras Palavras em que mais uma vez expôs o erro da crença no mito de um Estado racional, unitário, coeso na defesa equânime dos cidadãos.

Coerente com a noção de que o lugar dos intelectuais é o da crítica do poder Chomsky expõe a fraqueza do governo Joe Biden que, mesmo com insistente discurso e até propostas válidas para o enfrentamento da crise climática global, enfrenta a oposição do Partido Republicano que “perdeu qualquer pretensão de ser uma organização política normal, dedica-se quase exclusivamente ao bem-estar dos super-ricos e do setor corporativo, e não se preocupa absolutamente com a população ou o futuro do mundo”.

Crítico mordaz do governo Trump, o professor do MIT relembra que “o governo Trump se dedicou abertamente a maximizar o uso de combustíveis fósseis e desmontar o aparato regulatório” de proteção ambiental.

Sensível ao drama do aumento da desigualdade no mundo Chomsky salienta que “São as pessoas pobres do mundo que vivem no que Trump chamou de “países de merda” que mais sofrem; eles são os que menos contribuem para o desastre e são as vítimas principais”.

Mas o realismo que caracteriza a análise de Noam Chomsky não impede a identificação de possíveis saídas, como quando nos diz: “Não tem que ser assim. Há um caminho para um futuro habitável. Existem maneiras de ter políticas responsáveis, sãs e racialmente justas. Cabe a todos nós exigi-los, algo que jovens de todo o mundo já estão fazendo”.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), escritor e professor universitário.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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