Jorge Alexandre Neves
Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.
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Vale de lama: quando a racionalidade falha, por Jorge Alexandre Neves

Foto BBC

Vale de lama: quando a racionalidade falha, por Jorge Alexandre Neves

Em minhas aulas de introdução à Sociologia, costumo dar um exemplo relacionado ao meio ambiente para os alunos entenderem a abrangência da concepção sociológica de ação racional, em particular em contraponto à visão excessivamente parcimoniosa do conceito de Homo Economicus. Falo para os alunos sobre a diferença do consumo per capita de água em condomínios nos quais o pagamento da conta é individualizado e naqueles nos quais ele é coletivo. No primeiro caso, mantidos constantes alguns fatores (como o tamanho do imóvel), o consumo per capita de água é menor. No segundo caso, tem-se um pequeno caso de Tragedy of the Commons, no qual as pessoas sobreutilizam o recurso natural, no caso a água, pois seu benefício marginal por cada unidade de água consumida será bem maior do que o seu custo marginal. Numa situação como essa, predomina o comportamento típico do Homo Economicus e forma-se um típico “Dilema do Prisioneiro”. Este jogo deriva da racionalidade específica desse ser abstrato da economia neoclássica (ortodoxa). O interessante começa quando coloco a seguinte situação para os alunos: haverá pessoas que, mesmo diante do fato de que teriam um retorno marginal líquido muito maior sobreutilizando água, decidirão por poupá-la, pois acreditam que se está lidando com um recurso não-renovável e que, portanto, o ato da utilização parcimoniosa da água faz sentido. Tradicionalmente, na economia neoclássica essa ação seria vista como irracional, ao passo que, para nós sociólogos tem-se uma “ação racional com relação a valores”.

Um dos papas da economia neoclássica, Gary Backer, ganhador do Prêmio Nobel em 1992, publicou um interessante livro reunindo alguns de seus escritos intitulado The Economic Approach to Human Behavior. Logo na introdução, ele afirma que a análise econômica se sustenta em três pressupostos: a) os atores são racionais (agem como Homo Economicus); b) as preferências são exógenas e estacionárias e; c) os mercados são eficientes. Entre outros, Amartya Sen (Rational Fools) e Albert Hirschman (Against Parsimony) escreveram brilhantes trabalhos mostrando a limitação dessa abordagem, do ponto de vista da própria economia. Sem tocar nos demais pressupostos, acredito que o rompimento da barragem de resíduos da Vale em Brumadinho é bastante provocativo para a discussão do primeiro deles.

Recebi de dois dos muitos ex-alunos meus que trabalham hoje com consultoria na área socioeconômica, neste caso com projetos de análise e mitigação dos impactos da mineração em Minas Gerais, a seguinte mensagem:

“Hoje, fizemos umas contas sobre custos de engenharia versus custos ambientais em Mariana. Alguns especialistas dizem que uma obra preventiva em Mariana teria custado cerca de R$ 100 milhões. Estima-se que a Renova já tenha gasto em Mariana R$ 6,5 bilhões. Ou seja, 65 vezes mais. Se somarmos a isso custos indiretos, como valor de ações em mercados internacionais, a conta deve aproximar-se de R$ 10 bilhões. Sinceramente, não nos parece nem um pouco razoável a política ambiental das empresas de mineração. Aliás, a tal efetividade do setor privado pode ser vista nas horas de emergência (o setor público arcará com grande parte dos custos)”.

Mais de uma dezena de bilhões de reais da Vale já foram bloqueados pela justiça e multas milionárias já foram aplicadas pelo poder público, em decorrência do rompimento da barragem de Brumadinho. Não há a menor dúvida de que a empresa Vale terá despesas iguais ou maiores aos bilhões de reais que já teve com o rompimento da barragem de Mariana. Por que a empresa se expõe a tal risco no lugar de providenciar obras que custariam uma minúscula fração do que irá gastar para mitigar os impactos do novo rompimento de barragem?

A entrevista do Prof. Bruno Milanez à Folha de São Paulo traz uma afirmação interessante: “Existe uma visão de mundo dentro do setor de que barragens não rompem. Eles acreditam que elas são seguras, de verdade”. Essa fala do professor explicita a falha da racionalidade por parte de agentes do setor privado. Uma empresa como a Vale, cheia de engenheiros que, supostamente, são atores extremamente racionais, mas que terminam se sustentando em algo mais próximo de crenças.

Outros dois ganhadores do Prêmio Nobel em Economia escreveram sobre a limitação do comportamento racional instrumental. Herbert Simon discutiu os limites cognitivos da racionalidade, ao passo que Keneth Arrow analisou limites mais objetivos. Ambos mostram que a ação racional instrumental do Homo Economicus é um instrumento extremamente falho de tomada de decisão.

 Golove e Eto, da Universidade da Califórnia-Berkeley, ao analisar a necessidade da regulação pública no mercado de energia, resumem bem uma das principais razões pelas quais a racionalidade falha – levando a falhas de mercado – em setores econômicos complexos:

“A ideia de cadeia de barreiras (ou falhas) pode representar terreno fértil para explicar porque análises que focam em aspectos muito específicos de mercados podem identificar apenas pequenas ineficiências enquanto que o mercado como um todo pode ser muito mais ineficiente e assim prover o potencial para alavancar de forma significativa a identificação das ligações que podem levar a intervenções produtivas” (tradução minha).

Eles resumem bem o problema central. Em situações econômicas complexas, há interações entre falhas que tornam o fenômeno muito mais complexo do que se costuma considerar. A análise de risco costuma considerar dois fatores: probabilidade e impacto. No caso da barragem de Brumadinho, a probabilidade de ocorrência de ruptura da barragem era considerada baixa, mas o impacto era sabidamente alto. Como o primeiro fator, a probabilidade, é mais difícil de mensurar, o impacto deveria ter sido mais levado em consideração. Adicionalmente, é sabido entre os especialistas em análises cognitivas na área, que, quando algo tem elevado risco (probabilidade e/ou impacto), nós, seres humanos, temos uma tendência natural de subestimá-lo. É uma falha cognitiva comum à maioria das pessoas(1).

O setor de mineração tem altíssima externalidade negativa, como essas rupturas de barragem bem mostram. Logo, as falhas de mercado tendem a ser abundantes. Mais ainda se há sérias falhas de racionalidade, como parece ser o caso. Adicionalmente, o elevado nível de competição no mercado de minério de ferro e as pressões dos acionistas em nível mundial forçam a Vale a subestimar o risco de suas operações. O gasto que a empresa já teve e ainda terá com a ruptura da barragem de Mariana somado aos gastos que terá com a ruptura da barragem de Brumadinho seria, provavelmente, mais do que suficiente para fazer obras de engenharia para reforço de todas as suas barragens com elevado risco. Infelizmente, contudo, a incapacidade de agir de maneira realmente racional (2) levará a empresa a, mais uma vez, subestimar o risco futuro.

A situação de uma grande mineradora como a Vale é aquela identificada por Jon Elster em seu livro Ulysses and the Sirens, qual seja, precisa que uma força externa lhe obrigue a agir racionalmente, controlando sua volição irracional. Para além das terríveis externalidades negativas que a ação irracional da Vale está tendo, seus próprios acionistas e gestores ganharão, no longo prazo, com o aumento da regulação e um maior rigor técnico dos órgãos públicos sobre sua atuação. O Estado brasileiro precisa salvar as pessoas e a própria empresa da ação irracional da Vale.

(1) Por sua vez, quando algo tem baixo risco, tendemos a superestimá-lo.

(2) Levando em consideração a cadeia de riscos que interagem quando se considera todas as suas barragens de resíduos.

 

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

4 Comentários

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  1. “O Estado brasileiro precisa

    “O Estado brasileiro precisa salvar as pessoas e a própria empresa da ação irracional da Vale.”

    Muito bom. O problema é isso entrar no bestunto tanto do pessoal do setor quanto do alommerado de estupidos que assumiu o governo. Estamos falando de criaturas grosseiramente tapadas pela ideololgia que demoniza “intervenção”, Estado, bem publico…

    Foram eleitos prometendo menos fiscalização. É provavel que mais essa ocorencia em Brumadinho intimide só por pouco tempo esses arrivistas.

    1. O problema é que a centro-esquerda…

      também é predatória. Todo o crescimento econômico da era Lula foi feito com base na exportação de comodities entre as quais, está a mineração. Não tem como sair dessa situação sem uma mudança total e completamente radical do capitalismo. É caso pra fazer uma ruptura generalizada e anarco-ecológica. Para muito além do Socialismo. Ou isso ou o mundo vai acabar em lama.

  2. A solução é intensificar a privataria
    Isso aconteceu porque a Vale não foi suficientemente privatizada. O Bolsonaro pode acabar com essas tragédias: basta privatizar completamente as empresas públicas e acabar com as fiscalizações.

  3. Bolsominions veiculam fake news na internet
    Os Bolsominions veiculam notícias falsas sobre a tragédia nas redes sociais, provavelmente para desviar os holofotes das podridões da Família do Bolsonaro

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