Maria das Neves Duarte? Presente! Elzita Santa Cruz? Presente!

da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos

Maria das Neves Duarte? Presente! Elzita Santa Cruz? Presente!

A luta pela localização dos corpos de desaparecidos políticos perdeu nesses dias 23 e 25 de junho, duas grandes mulheres. Ambas de Pernambuco, terra de tanta gente guerreira. No dia 23, faleceu Maria Neves Duarte, aos 81 anos, irmã do militante, Edgar de Aquino Duarte; no dia 25, Elzita Santa Cruz Oliveira, aos 105 anos, mãe do desaparecido Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira.

Tanto Edgar quanto Fernando estão entre os casos de desaparecimentos forçados perpetrados pela ditadura em que não há qualquer pista sobre o destino dos corpos. Simplesmente desapareceram.

Como disse o poeta Affonso Romano de Sant´Anna:

“Desaparecia-se muito
naqueles dias.
[…]
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricôs ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
— mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.”

O irmão de Dona Maria das Neves, Edgar, desapareceu em 1973. Ele havia sido preso no ano de 1971. Talvez tenha sido o preso político que ficou mais tempo detido e sendo torturado, antes de ser morto. Naqueles dois anos, ele esteve no DOPS e no DOI-CODI de São Paulo, no DOI-CODI/Brasília e no Batalhão de Caçadores de Goiânia. Foi visto pela última vez em junho de 1973, no DOPS/SP. Estava barbudo, cabeludo e muito debilitado fisicamente. Edgar era cabo do Corpo de Fuzileiros Navais e teve que se exilar após 1964 por ter participado da Revolta dos Marinheiros. Vivia clandestino quando foi capturado. A sua localização foi delatada pelo agente infiltrado, Cabo Anselmo, que conhecia Edgar desde 1964 e estava residindo com ele em 1971.

O filho de Dona Elzita, Fernando, desapareceu em fevereiro de 1974. Ele foi capturado no Rio de Janeiro, no bairro de Copacabana, juntamente com Eduardo Collier, seu amigo de infância e de militância política. Fernando, nessa época, morava em São Paulo e era casado com Ana Lúcia Valença Santa Cruz Oliveira, com quem teve um filho, Felipe Santa Cruz, hoje presidente nacional da OAB. Levava uma vida absolutamente legal e era funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica. Naquele sábado de carnaval, 23 de fevereiro, estava com a família no Rio de Janeiro. Por volta das 15h30min, saiu da casa de seu irmão Marcelo, também militante político, e foi se encontrar com Eduardo Collier. Deixou a advertência: se não voltasse até 18 horas, teria sido preso. De fato, ele nunca mais foi visto.

Ao lado de outra pernambucana, a Dona Risoleta Collier, mãe de Eduardo, Dona Elzita iniciou sua cruzada em busca do filho. Tornou-se um simbolo de luta contra a ditadura, peregrinando entre altas autoridades, no Brasil e no exterior, cobrando respostas sobre seu filho e denunciando insistentemente o regime.

Dona Maria das Neves e Dona Elzita, mesmo após tantos anos do desaparecimento de Edgar e Fernando, não perderam as esperanças. Viveram tempo suficiente para doar suas amostras genéticas para utilização do Grupo de Trabalhos Perus (GTP), grupo pericial que analisa as ossadas oriundas da vala clandestina do cemitério de Perus.

Mesmo não havendo qualquer notícia sobre o local em que Edgar e Fernando foram enterrados – se é que seus corpos foram sepultados -, eles estão no rol de pessoas procuradas entre as ossadas daquela vala, pois eles desapareceram no período em que várias pessoas assassinadas pela ditadura foram enterradas no cemitério de Perus, em São Paulo/SP.

Esse critério amplo eleito pelo GTP foi extremamente importante. Em dezembro de 2018, por exemplo, foi anunciada a identificação de Aluísio Palhano. Após ter sido preso e passado por aparelhos da repressão em São Paulo e no Rio de Janeiro, Palhano também desapareceu completamente. Não há qualquer registro sobre seu óbito ou sepultamento, mas seu corpo foi encontrado entre aqueles ocultados na vala de Perus.

Por outro lado, mesmo se não for obtida a identificação de todas as pessoas do rol, ainda assim o GTP terá prestado um serviço extremamente relevante para essas famílias. Elas nunca foram contempladas com um trabalho tão técnico e criterioso de identificação, logo, até mesmo o “não” – não está na vala clandestina de Perus – será considerado um avanço.

A partir desse critério amplo, o perito-geneticista, Dr. Samuel Ferreira, coordenador científico do GTP e da CEMDP, viajou o país todo coletando amostras de integrantes de 41 (quarenta e uma) famílias. A coleta de Dona Elzita foi considerada prioritária, em razão de sua idade avançada. Assim, em novembro de 2015, ele foi à casa dela – em Olinda – e dos demais parentes de pessoas do rol do GTP residentes em Recife – inclusive Dona Maria Neves – e coletou suas amostras sanguíneas.

A coleta da amostra de Dona Elzita, em especial, foi um momento emocionante, pois ela já tinha mais de 100 anos de idade e aceitou que colhessem seu sangue para que um dia possa servir à identificação do filho. Ivan Seixas e Amparo Araujo, ex-militantes políticos e familiares de vítimas, acompanharam a coleta.

Todas as amostras biológicas de familiares já colhidas pelo GTP estão hoje armazenadas pelo laboratório genético da Internacional Commission on Missing Persons (ICMP), em Haia (Holanda), onde estão sendo comparadas a cada uma das amostras ósseas extraídas das ossadas da Vala. No futuro, em caso de resultado negativo, elas poderão servir a outras frentes de trabalho.

Portanto, Dona Maria das Neves e Dona Elzita se foram, mas um pedacinho de cada uma permanece lá do outro lado do oceano à espera de encontrar seus entes queridos.

– Maria das Neves Duarte? Presente!
– Elzita Santa Cruz? Presente!

PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA, PARA QUE NUNCA MAIS SE REPITA.

Redação

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