
Sejamos sérios
por Daniel Afonso da Silva
Samuel Pinheiro Guimarães deixou saudades. A sua morte um ano atrás, em fins de janeiro de 2024, lançou todos à contrição. Amigos e adversários. Admiradores e contendores. Samuel Pinheiro Guimarães era um gigante. Para além de diplomata e alto funcionário do Estado brasileiro, ele se afirmou como sofisticado intérprete do Brasil e das epopeias internacionais brasileiras. Notadamente na “era de gigantes”, depois do muro e da irresistível afirmação de uma certa globalização. Essa que forjou o imbricamento econômico, empresarial e financeiro após 1945 e alterou totalmente a face do planeta deixando, efetivamente, os fracos, mais e mais, sem vez. Vez que o grande capital, as multinacionais e a grande finança passaram a canibalizar tudo à sua frente e à sua volta. Deixando apenas escombros às suas costas e ao seu redor. Tendo os Estados Unidos como ponta de lança. Sendo os demais – quando muito – meros coadjuvantes.
Era uma visão límpida do nobre embaixador. Uma visão realista. Que intuía o mantra que reconhece que o mundo é real, independente das ilusões que dispomos sobre ele. E, nesse sentido, subestimar a presença dos Estados Unidos no mundo beira à irresponsabilidade.
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Para entender melhor, um retorno despretensioso ao choque planetário de 1917 evidencia as mostras de dominação norte-americana que todos, adiante, compreenderiam muito bem.
Quando Lênin decidiu fazer o que fez e teve algum sucesso, todos os sinais de alerta se acenderam entre os países fiadores do Ocidente, adoradores do iluminismo, do liberalismo e das revoluções do século XVIII e, também, aliados da afirmação do poderio norte-americano.
A Grande Guerra avançava extenuante. Impérios multisseculares começavam a ruir. Os europeus reconheciam ter ido longe demais. Seus avanços científicos e tecnológicos tinham sido espetaculares na transição da primeira para a segunda revolução industrial. Mas a sua capacidade diplomática e política para conter solavancos deixou, em tudo, a desejar.
A explosão de 1914, todos sabem, foi uma sobreposição de tensões políticas e diplomáticas mal sanadas, pessimamente abordadas e, muitas das vezes, ignoradas. Mas o momento mais agudo foi 1917.
1917 retirou os norte-americanos do conforto. Era a primeira vez que os preceitos existenciais dos founding fathers eram colocados em perigo real e imediato. O efeito contágio do deslumbre vermelho e antiliberal poderia atingir, sinceramente, o mundo inteiro. O que macularia a necessidade essencial e prosélita dos norte-americanos em levar a “luz aos demais”. O que sempre esteve para além do simples manifest destiny e muito além da simples condição de “eleitos de Deus”.
Os founding fathers eram todos paulinos, seguidores dos preceitos do apóstolo Paulo e do seu cristianismo primitivo. E, portanto, convictos da condição katholikós, universais.
Sim: a essência, o sentido e a razão de ser dos norte-americanos impõem a eles reconhecerem-se universais. E, desse modo, tudo que possa ameaçar a realização dessa afirmação sempre foi percebido como perigo existencial. Como ocorreu em 1917.
O outro momento decisivo foi 1940-1941.
Quando a França naquele junho de 1940 parecia evidente para todos os fiadores do Ocidente que Hitler, Stálin e Hiroito poderiam dominar o mundo. Era o momento mais trágico e incerto da história da humanidade desde a queda de Roma. Os norte-americanos foram aumentando progressivamente o seu esforço de guerra em apoio aos britânicos. Mas a sua inserção definitiva, de tudo ou nada, foi depois de Pearl Harbor, do dezembro de 1941. Quando os japoneses fustigaram o monstro. E o monstro reagiu. E decidiu a sorte da guerra e do mundo.
1944-1945 explicitou o lugar dos Estados Unidos no mundo. As reuniões de Yalta e Potsdam, contrário a todas as impressões valorosas, não forjaram partilhas do mundo. Bem do contrário. Simplesmente permitiram aos norte-americanos ampliarem a sua prevalência em todas as partes.
Inicialmente sob o véu do multilateralismo, do direito internacional, da democracia e do mundo livre. Adiante com a manutenção e/ou instalação de bases militares nos quatro cantos do mundo. E, por fim, com a imposição do dólar como meio de troca universal.
Samuel Pinheiro Guimarães gostava de lembrar do exemplo das bases militares e do dólar. Qualquer aferição da realidade mundial precisa levar em conta esses singelos fatos. Nenhum outro país possui maiores excedentes de poder estacionados mundo afora. Nem a China nem a Rússia.
E nesse ínterim, vale muitíssimo acentuar que o gap atual de 10 trilhões de dólares entre o PIB dos Estados Unidos versus o da China continuam sendo insuperáveis em curto, médio ou longo prazos. No plano militar, no biênio 2023-2024, os norte-americanos empenharam 916 bilhões de dólares frente a 296 bilhões de dólares dos chineses. Dito sem receios, a obsessão pelo declínio norte-americano beira à falácia.
Uma falácia acentuada pelo retorno de Donald J. Trump em 2025.
Esse retorno – como foi e como está se desenrolando – entorpeceu olhares e sensações. Para ignorar a racionalidade das ações iniciais do novo mandatário norte-americano, variados formadores de opinião tendem a construir impérios em todas as esquinas. E não raramente atribuem, especialmente, à China e à Rússia atributos e convicções que não possuem.
Nem a Rússia tampouco a China possui desejo ardente de levar a luz ao mundo inteiro. O seu ethos sempre foi mais autocentrado que projetado ao exterior. Chineses nem russos jamais desejaram, efetivamente, contar para além de suas fronteiras.
No caso norte-americano, tudo é diferente. A sua condição imperial alimenta a sua própria existência. As pessoas podem pensar diferente e até viver em ficção. Mas essa gente o nobre embaixador Samuel Pinheiro Guimarães sempre evitava confrontar. Preferia sorrir. Olhar de soslaio. Dissimular a sua ironia pertinaz para não ter que dizer: “sejamos sérios, pô”.
Publicado também na Tribuna da Imprensa
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
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Pois é. O problema é que os Estados Unidos mantém e aumentam o seu poder justamente atribuindo aos outros dois, Rússia e China, supostos projetos de domínio mundial que são seus. De acordo com os americanos, os europeus, coitados, vivem eternamente à sombra da ameaça do anticristo russo, e o resto do mundo passou a ser o sonho molhado dos chineses. E devemos ser sérios quanto a uma possível retirada de aportes dos EUA na OTAN; isso significa, simplesmente, que eles não querem intermediários manejando dólares por lá. Eles mesmos vão cuidar disso, e transformar, de vez, a Europa em quintal. Suprema humilhação, mas, na visão de mundo de Trumptelho, o curso natural das coisas. E assim colocará a Rússia entre o Ocidente e a China. A Rússia será a Europa do futuro, o teatro de operações da 3ª guerra mundial. O que Trumptelho não sabe é que, dessa vez, não haverá pós-guerra.
Há uma percepção errônea quanto ao tempo; no longo prazo os EUA, tal como são hoje, não terão mais o poderio econômico atual e, em razão disso, o poderio militar. Já há um rumo de consenso que não é tolerável o dólar como moeda de referência e isso vai ser acelerado pelas próprias ações do atual governante bravateiro dos EUA, tanta interna quanto externamente. os recursos para manter bases militares mundo afora serão escassos. É evidente que um tempo vai passar até que seja revertida a atual primazia do império, mas estudiosos são claros em afirmar que em 50 anos a liderança do mundo estará em outras mãos e, pelo que transparece hoje, sem guerras e sem intervenções em países estrangeiros.