A crise terminal dos grupos de mídia corporativa e independentes, por Luis Nassif

Concentração nas mãos das grandes redes é ameaça maior à liberdade de expressão do que décadas de manipulação por grupos de mídia ou pela tesoura de governos autoritários

Um dos setores diretamente afetado pelo coronavírus é a mídia, não apenas os grupos tradicionais, como todo o arquipélago de jornais eletrônicos independentes.

Até então, sua viabilidade era assegurada pela chamada publicidade programática, praticada pelo Google, Facebook, Youtube e outros canais de publicidade. A crise do coronavirus registrou uma queda de até 70% nessa publicidade, acelerando um processo de concentração de poder em grandes grupos atuando em escala global.

É apenas o capítulo mais dramático de um jogo que comprometerá mais a liberdade de opinião que os arrufos de ditadores.

Antes da Internet, o mercado se acomodara em um modelo padrão:

1. A publicidade nacional ia para as redes de televisão e para os veículos nacionais da mídia escrita, alguns poucos jornais e revistas.

2. Bens de consumo se valiam da imprensa escrita, televisiva e radiofônica nos mercados de consumo locais.

3. Classificados ficavam com jornais diários, também nos mercados locais.

4. Havia ainda a publicidade em cartazes de rua, publicidade em transporte coletivo e nos pontos de venda – disputando espaços nas gôndolas dos supermercados.

Com a Internet, o jogo se alterou completamente.

As campanhas nacionais passaram a ser divididas com grandes portais. Os classificados encontraram terreno melhor em sites especializados, inclusive pela facilidade na organização das ofertas. Os fabricantes passaram a expor seus produtos em sitios próprios, gastando as verbas de publicidade na divulgação do endereço em sites da Internet. E os antigos pontos de venda foram substituídos por publicidade em sites de compras. O que é mais eficiente para um fabricante de geladeira: anunciar em um jornal ou em no site da Amazon ou das Americanas?

Com a explosão das redes sociais, o modelo de negócios da mídia tornou-se mais frágil. Muitos veículos aceitaram abrigar seu conteúdo no Facebook transferindo a comercialização para plataformas de programática, dominadas pelo Google e pelo Facebook. Ou seja, abriram mão da parte mais estratégica de seu modelo de negócio.

No começo houve alguma resistência, até os grupos jornalísticos se renderem à nova realidade. Hoje em dia, grupos comno Folha e Globo já aceitam que o sistema de assinaturas seja administrado pelo Google.

Houve algumas tentativas iniciais – especialmente em portais tipo UOL e IG – de criar seu próprio modelo de publicidade. Mas acabaram se rendendo total ou parcialmente à publicidade programática dos grandes grupos.

Antes do coronavirus, chegou-se a um equilíbrio precário, com a programática ajudando a sustentar negócios da mídia tradicional e dos novos veículos que surgiram no período. Mas criou-se um modelo complicado. Do lado da oferta de notícias, uma multiplicação de veículos, youtubers, sites aumentando exponencialmente a competição. Do lado dos negócios, a programática se concentrando cada vez mais nas mãos dos grandes grupos trabalhando em escala global. E novos modelos de negócio aparecendo com o streaming de vídeos (tipo Netflix) e de áudios (tipo Spotfy).

O mercado passou a ser dominado pelo Google, Amazon, Comcast, a AT&T de telefonia, incorporando a WarnerMedia e a CNN, e os novos gigantes, Netflix, Spotfy, juntando jornalismo, entretenimento, em escala global.

A facilidade da customização da publicidade, a venda em escala global, faz com que um leitor brasileiro seja atingido por uma publicidade de produto brasileiro quando consulta um jornal britânico. Ou seja alcançado por uma publicidade de produto regional quando se desloca para qualquer região. De fato, a possibilidade de customização da publicidade fez com que fosse atingido o último reduto da mídia focada, a imprensa regional.

A crise da publicidade digital será o golpe de misericórdia em um modelo que começou com jornais municipais, com o advento do telégrafo as agências de notícias, as redes de jornais, as rádios, as redes de rádio, televisões em rede nacional, com o poder distribuído em cada país entre grupos nacionais.

A concentração nas mãos das grandes redes é uma ameaça maior à liberdade de expressão do que décadas de manipulação da informação pelos grupos de mídia, ou pela tesoura de governos autoritários.

 

 

 

Luis Nassif

12 Comentários

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  1. É gravíssimo ..pior que o alerta vem de faz tempo ..OS governos progressistas por exemplo, sequer atentaram a esse fenômeno que comporia, com certeza, ao menos um dos capítulos da tal “regulação da mídia”.
    Manipulação digital de imagem, som, de FATOS, censura aleatória ou pontual, fakes ..é PIOR que a INVASÃO DOS MUNDOS de Orson Wells.
    Por estes canais estarem ligados a ferramentas e POTENCIAS internacionais (pois as potencias hegemônicas influem sim na ação desses conglomerados), ainda temos um agravante, a ANOMIA que fará questões polêmicas gravitarem por TERRA DE NINGUÉM.
    Independente de ideologias, prover os canais de mídia INTERNOS, sejam eles gingantes, grandes, médios ou nanicos, virou uma questão de SEGURANÇA NACIONAL ..tal qual o era o cabo submarino e o satélite sob supervisão do Estado DEMOCRÁTICO e SOBERANO brasileiro. (que por estes dias esta em quarentena, diga,se, desde 2015)

  2. Daí a importância das emissoras públicas de rádio e televisão e pública,no sentido amplo,democrático e universal,não como alavanca política dos detentores do poder.
    Os grandes grupos não são piores do que a concentração nas mãos de meia dúzia de famílias,aliás,elas mesmas,causadoras desse novo modelo.
    Também,é importante ressaltar,mesmo a mídia independente acabou se escravizando aos cliques da publicidade e perdeu muito em conteúdo e,sobretudo,em qualidade.
    Mas,como dizia munha velha avó,não a mal que nunca acabe,esta nova ordem,por sobrevivência,também terá de mudar ou será engolida por ela mesma,pelo monstro da informática.
    O mundo ainda acordará para a realidade que o fundamental é o ser humano.

    1. Sinceramente, torço para que sua última frase se realize, mas tenho muitas e sérias dúvidas. O mundo, como está amplamente demonstrado no Brasil, é gado. Gado não pensa, não raciocina, só segue os “trends”.

  3. Não que eu discorde, até porque seria ridículo de minha parte, jejuno no assunto, questionar um jornalista da categoria de Luis Nassif, seria querer ensinar o Padre Nosso não a um vigário de periferia mas ao Papa Francisco. Mas não entendi bem a conclusão final de que é melhor para a liberdade de expressão as décadas de manipulação da informação pelos grupos de mídia e por governos autoritários do que a concentração em grandes redes, pensava que era a mesma m… coisa. E sobre essa tal de customização: Recentemente acessei aqui no GGN, um post de jornalista americano sobre as estripulias de Trump, lá atrás, quando era Trumpinho, assediando sexualmente modelos, e que poderia lhe causar problemas na reeleição; ele era sócio, não me lembro do nome, de uma pessoa que morou e faleceu no Rio de Janeiro. Depois disso passei a receber inúmeros anúncios oferecendo encontros com “gatas”. Nada contra, apenas não estou precisando, eles estão falhando na customização.

  4. A crise está sendo usada para beneficiar a quem?
    Quando surgir um “fato”,pisem no freio e olhem para todos os lados antes de agirem/reagirem,a IA conhecem a todos melhor q a nós mesmos!!
    Obs:Bolsonaro é tão incompetente (será?)q os “grandões”não lhe disseram o plano maior !!!!

  5. Acredito que uma boa parte da vultosa e monumental fortuna que governos de todo mundo estão disponibilizando para combater a pandemia e proteger a população, irá reforçar ainda mais o poder econômico e financeiro das grandes corporações rainhas do planeta. Acredito que o segmento das mídias tradicionais, já estando vulnerável e com baixa imunidade financeira e representativa, certamente correrá sérios riscos de sobrevivência. Pior ainda para as mídias alternativas independentes e seus fiéis leitores, que precisarão mais que nunca, junto com todas as camadas da sociedade interessadas em ter do seu lado uma potente luz de transparência e um fiel e confiável braço forte de resistência, para poderem ter alguma condição de enfrentar a difícil batalha contra o poder trevoso e covarde do grande capital. Precisará também criar uma forma de interação dinâmica, super imparcial, com forte blindagem e que seja fiscalizada por todos, para fazer da verdade plena, a sua melhor propaganda. Conservar acesa a chama corajosa da investigação, da busca e do garimpo diário da informação, com certeza, será a principal tarefa de todos nós, para toda essa parceria.

  6. Nassif,
    Estas mudanças no mercodo de notícias e informação já estão acontecendo há alguns anos. Não entendi como a crise do corona vírus pode acelerar este processo.

  7. Há que se pensar também no suporte dessa nova mídia. Google, Face, Amazon etc usam uma infraestrutura, de comunicações e de servidores de dados, que não é neutra, tem dono(s). Não sem motivo, países como a Rússia e a China criaram as suas internets internas, nos seus espaços nacionais, como itens estratégicos para as suas soberanias. Então, a questão vai muito muito além da propaganda comercial de jornais e revistas, em suporte de papel ou na nuvem. Big Brother já chegou!

  8. Internet, bah… Vai levar algum tempo ainda até entendermos que nem tudo que podemos fazer devemos fazer. O que o pessoal chama de irresponsabilidade – mas que talvez melhor termo seja inconsequência já que responsabilidade é inerente à ação, queira o ator assumi-la para si ou não – é, junto com eterna imaturidade adolescente quase pueril, condição “sine qua non” para o Capitalismo. Sim, as crianças são cruéis e imediatistas. Se nem leis convencem que dizer de ética?

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