A discussão sobre o futuro do jornalismo em Portugal

Enviado por Carlos Ravara

Do Voz da Rússia

A agonia do jornalismo

Cristina Mestre

Há dez anos atrás, costumava comprar uma revista de informação publicada em Portugal, a Visão. Mas houve um dia em que a “minha” revista mudou em tudo. Passou a exibir uma capa vermelha apelativa com letras maiores, os artigos passaram a ser muito mais pequenos, passou a haver mais notícias sobre “fait divers”, mais fotos e menos texto. As reportagens de investigação com várias páginas passaram a ser mais raras. Comecei a perder o interesse.
 
Eu, sem saber, estava presenciando a “revolução no jornalismo” ou, segundo outros, a “agonia do jornalismo”. Ao longo desta última década muitas coisas aconteceram: dezenas de jornais e revistas deixaram de existir, centenas ou milhares de jornalistas foram despedidos, muitas pessoas deixaram de comprar jornais e passaram a obter a informação de forma gratuita na Internet.
 
Não sendo eu jornalista e arriscando a ser criticada pelo meu diletantismo, vejo o desespero de uma classe profissional que está desaparecendo; os que ainda permanecem adaptam-se como podem, condescendem, praticam a autocensura.

 
Há quem invente desculpas: o jornalismo é hoje uma indústria cuja mercadoria – a informação – se orienta prioritariamente para o mercado, sujeita às leis da oferta e da procura, lutando pela sobrevivência como qualquer outro setor da economia. Será mesmo assim? Ou será que o jornalismo ainda se orienta pelos valores da procura da verdade, da independência e da equidistância face aos diversos poderes?
 
Muitos apontam a causa desta revolução: A Internet. Antes, a imprensa escrita (para além da rádio e da TV) praticava um “caminho de sentido único”, só ela dispunha do monopólio da divulgação da informação. Hoje, essa supremacia acabou. Não há emissores puros nem recetores puros que tenham de resignar-se com tal função. A revolução que vivemos é que cada receptor pode ser também emissor. Todos podem fazer uma página na Internet, publicar textos no Facebook ou Twitter, manter um blogue. Agora, como consequência das mudanças técnicas e culturais, o leitor, a audiência, têm um poder como nunca tiveram.
 
A estrutura da indústria da informação e a maneira de produzir informação estão a ser transformadas. Muitos jornais passaram para o suporte digital. O jornalismo de investigação, o gênero mais nobre, está a desaparecer.
 
Dizem que não há recursos para fazer investigação jornalística, menos ainda para enviar uma equipe a outra parte do mundo para produzir notícias. Os donos das empresas jornalísticas queixam-se que as receitas da publicidade estão caindo. Em Portugal, por exemplo, o mercado publicitário contraiu 50% nos últimos anos.
 
A crise da comunicação social tem origem, outros afirmam, na opção pelo simplismo e o sensacionalismo, que veio acompanhada por cortes abruptos na qualidade.
 
Jornalismo e democracia
 
O declínio do jornalismo acompanha (e também provoca) o declínio da democracia.
 
Porque a democracia só pode funcionar se surgem críticas e reivindicações da sociedade, que sempre foram transmitidas e denunciadas pelo quarto poder. Quando este não cumpre a sua função, a sociedade e a democracia começam a degradar-se.
 
É possível ver a agonia do jornalismo na forma de funcionamento dos jornais regionais portugueses (embora tal deva acontecer também em muitos outros países).
 
“O jornalista está algemado aos interesses do cacique, do partido político dominante, da Câmara Municipal local, dos grandes e médios empresários da zona, e tudo por causa da publicidade. São eles que dão dinheiro aos jornais e às rádios, e são eles que, com esse dinheiro, chanta geiam os diretores, chefes de redação e até jornalistas a seguirem as suas linhas de orientação, pois, caso assim não seja, os cortes financeiros serão acentuados e o próprio órgão de informação correrá o risco de desaparecer. A liberdade de expressão está, como se sabe – mas poucos querem assumir – regrada, obstaculizada, condicionada e, por vezes, adulterada nos grandes órgãos de comunicação social. O assédio psicológico sobre os jornalistas é uma constante em algumas dessas empresas. As tais empresas que controlam os jornais e rádios regionais.” Este é o testemunho de José Gonçalves, um jornalista português de um jornal regional.
 
“O jornalismo tornou-se sensacionalista e deixou de interessar aos cidadãos porque os jornalistas não estão a cumprir devidamente o seu papel de informar com qualidade”, afirma o jornalista Nuno Ramos de Almeida.
 
Deixou de interessar aos cidadãos ou será algo mais grave?
 
A verdade é que vivemos num mundo com constante fluxo de informação, através de múltiplos canais. Houve uma altura em que se pensava que a Internet e as redes sociais tornariam a informação não só mais variada mas também mais fidedigna e isenta, que “democratizariam” as mentalidades e ajudariam as pessoas a analisar as notícias de forma mais racional. Isso aconteceu mas só parcialmente.
 
Com o aumento exponencial da informação na Internet, a sociedade parece estar cansada e ter deixado de distinguir entre o que é verdade e o que é simulação da verdade, o que faz com que seja mais fácil divulgar informação manipulada ou apenas não rigorosa.
 
Uma jovem jornalista, Susana Valente, escreve algo que é tanto uma confissão como um lamento:
 
“Deixamo-nos apanhar, nós jornalistas, esta espécie em vias de extinção, pela vacuidade dos dias, onde a informação é só mais um bem perecível e, cada vez mais, um bem terciário, relegado para o fundo da lista de prioridades do público. Creio que muitos dos leitores/espectadores/ouvintes não desejam sequer uma informação isenta e imparcial; esperam, simplesmente, por notícias que enformem as suas “vidinhas”, que vão ao encontro daquilo que são os seus desesperos e as suas esperanças. Não querem uma perspectiva desinteressada e clara da realidade, mas antes um ponto de vista que justifique a sua condição. Não querem ser elucidados, preferem ser iludidos. E se há esta divergência nítida entre o dever do jornalista e o interesse do seu público, como sustentar o futuro da profissão?”
 
Embora o drama de ser posto à margem do sistema seja vivido por muitos jornalistas, julgo que estes têm o futuro nas suas mãos. O futuro e o poder.
 
Basta recordar, como uma das formas possíveis de ultrapassar a situação atual, os projetos de auto-organização de jornalistas, que já existem em vários países como os EUA, a França, a Espanha ou o Brasil.
 
Não, não se trata de os jornalistas criarem empresas a partir do modelo de negócios baseado na publicidade. O financiamento, questão central de qualquer meio de imprensa, pode revestir-se de formas inovadoras, ou seja, ser público mas não estatal, isto porque um jornalismo de interesse público não pode depender do Estado (ou seja, do governo) e também não deve depender de determinados grupos privados, onde há conhecidos conflitos de interesses. Já há, em vários países, jornalistas que se juntam trabalhando em regime de financiamento coletivo (crowdfunding), geralmente sem fins lucrativos.
 
O crowdfunding permite uma total independência sob o ponto de vista do financiamento e poderá ser uma das respostas. Mas para que este modelo tenha sucesso resta explicar às pessoas que a isenção e a independência não se alcançam facilmente e precisam do apoio de todos nós.
Leia mais: http://portuguese.ruvr.ru/news/2014_06_30/A-agonia-do-jornalismo-0213/
Há dez anos atrás, costumava comprar uma revista de informação publicada em Portugal, a Visão. Mas houve um dia em que a “minha” revista mudou em tudo. Passou a exibir uma capa vermelha apelativa com letras maiores, os artigos passaram a ser muito mais pequenos, passou a haver mais notícias sobre “fait divers”, mais fotos e menos texto. As reportagens de investigação com várias páginas passaram a ser mais raras. Comecei a perder o interesse.
 
Eu, sem saber, estava presenciando a “revolução no jornalismo” ou, segundo outros, a “agonia do jornalismo”. Ao longo desta última década muitas coisas aconteceram: dezenas de jornais e revistas deixaram de existir, centenas ou milhares de jornalistas foram despedidos, muitas pessoas deixaram de comprar jornais e passaram a obter a informação de forma gratuita na Internet.
 
Não sendo eu jornalista e arriscando a ser criticada pelo meu diletantismo, vejo o desespero de uma classe profissional que está desaparecendo; os que ainda permanecem adaptam-se como podem, condescendem, praticam a autocensura.
 
Há quem invente desculpas: o jornalismo é hoje uma indústria cuja mercadoria – a informação – se orienta prioritariamente para o mercado, sujeita às leis da oferta e da procura, lutando pela sobrevivência como qualquer outro setor da economia. Será mesmo assim? Ou será que o jornalismo ainda se orienta pelos valores da procura da verdade, da independência e da equidistância face aos diversos poderes?
 
Muitos apontam a causa desta revolução: A Internet. Antes, a imprensa escrita (para além da rádio e da TV) praticava um “caminho de sentido único”, só ela dispunha do monopólio da divulgação da informação. Hoje, essa supremacia acabou. Não há emissores puros nem recetores puros que tenham de resignar-se com tal função. A revolução que vivemos é que cada receptor pode ser também emissor. Todos podem fazer uma página na Internet, publicar textos no Facebook ou Twitter, manter um blogue. Agora, como consequência das mudanças técnicas e culturais, o leitor, a audiência, têm um poder como nunca tiveram.
 
A estrutura da indústria da informação e a maneira de produzir informação estão a ser transformadas. Muitos jornais passaram para o suporte digital. O jornalismo de investigação, o gênero mais nobre, está a desaparecer.
 
Dizem que não há recursos para fazer investigação jornalística, menos ainda para enviar uma equipe a outra parte do mundo para produzir notícias. Os donos das empresas jornalísticas queixam-se que as receitas da publicidade estão caindo. Em Portugal, por exemplo, o mercado publicitário contraiu 50% nos últimos anos.
 
A crise da comunicação social tem origem, outros afirmam, na opção pelo simplismo e o sensacionalismo, que veio acompanhada por cortes abruptos na qualidade.
 
Jornalismo e democracia
 
O declínio do jornalismo acompanha (e também provoca) o declínio da democracia.
 
Porque a democracia só pode funcionar se surgem críticas e reivindicações da sociedade, que sempre foram transmitidas e denunciadas pelo quarto poder. Quando este não cumpre a sua função, a sociedade e a democracia começam a degradar-se.
 
É possível ver a agonia do jornalismo na forma de funcionamento dos jornais regionais portugueses (embora tal deva acontecer também em muitos outros países).
 
“O jornalista está algemado aos interesses do cacique, do partido político dominante, da Câmara Municipal local, dos grandes e médios empresários da zona, e tudo por causa da publicidade. São eles que dão dinheiro aos jornais e às rádios, e são eles que, com esse dinheiro, chanta geiam os diretores, chefes de redação e até jornalistas a seguirem as suas linhas de orientação, pois, caso assim não seja, os cortes financeiros serão acentuados e o próprio órgão de informação correrá o risco de desaparecer. A liberdade de expressão está, como se sabe – mas poucos querem assumir – regrada, obstaculizada, condicionada e, por vezes, adulterada nos grandes órgãos de comunicação social. O assédio psicológico sobre os jornalistas é uma constante em algumas dessas empresas. As tais empresas que controlam os jornais e rádios regionais.” Este é o testemunho de José Gonçalves, um jornalista português de um jornal regional.
 
“O jornalismo tornou-se sensacionalista e deixou de interessar aos cidadãos porque os jornalistas não estão a cumprir devidamente o seu papel de informar com qualidade”, afirma o jornalista Nuno Ramos de Almeida.
 
Deixou de interessar aos cidadãos ou será algo mais grave?
 
A verdade é que vivemos num mundo com constante fluxo de informação, através de múltiplos canais. Houve uma altura em que se pensava que a Internet e as redes sociais tornariam a informação não só mais variada mas também mais fidedigna e isenta, que “democratizariam” as mentalidades e ajudariam as pessoas a analisar as notícias de forma mais racional. Isso aconteceu mas só parcialmente.
 
Com o aumento exponencial da informação na Internet, a sociedade parece estar cansada e ter deixado de distinguir entre o que é verdade e o que é simulação da verdade, o que faz com que seja mais fácil divulgar informação manipulada ou apenas não rigorosa.
 
Uma jovem jornalista, Susana Valente, escreve algo que é tanto uma confissão como um lamento:
 
“Deixamo-nos apanhar, nós jornalistas, esta espécie em vias de extinção, pela vacuidade dos dias, onde a informação é só mais um bem perecível e, cada vez mais, um bem terciário, relegado para o fundo da lista de prioridades do público. Creio que muitos dos leitores/espectadores/ouvintes não desejam sequer uma informação isenta e imparcial; esperam, simplesmente, por notícias que enformem as suas “vidinhas”, que vão ao encontro daquilo que são os seus desesperos e as suas esperanças. Não querem uma perspectiva desinteressada e clara da realidade, mas antes um ponto de vista que justifique a sua condição. Não querem ser elucidados, preferem ser iludidos. E se há esta divergência nítida entre o dever do jornalista e o interesse do seu público, como sustentar o futuro da profissão?”
 
Embora o drama de ser posto à margem do sistema seja vivido por muitos jornalistas, julgo que estes têm o futuro nas suas mãos. O futuro e o poder.
 
Basta recordar, como uma das formas possíveis de ultrapassar a situação atual, os projetos de auto-organização de jornalistas, que já existem em vários países como os EUA, a França, a Espanha ou o Brasil.
 
Não, não se trata de os jornalistas criarem empresas a partir do modelo de negócios baseado na publicidade. O financiamento, questão central de qualquer meio de imprensa, pode revestir-se de formas inovadoras, ou seja, ser público mas não estatal, isto porque um jornalismo de interesse público não pode depender do Estado (ou seja, do governo) e também não deve depender de determinados grupos privados, onde há conhecidos conflitos de interesses. Já há, em vários países, jornalistas que se juntam trabalhando em regime de financiamento coletivo (crowdfunding), geralmente sem fins lucrativos.
 
O crowdfunding permite uma total independência sob o ponto de vista do financiamento e poderá ser uma das respostas. Mas para que este modelo tenha sucesso resta explicar às pessoas que a isenção e a independência não se alcançam facilmente e precisam do apoio de todos nós.
Redação

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