Vinte anos depois, os antigos donos da Escola Base conseguem uma indenização mínima, perto dos prejuízos sofridos.
Aqui, o capítulo do livro “O jornalismo dos anos 90” em que trato do tema.
O artigo com que investi contra o linchamento da mídia foi em 8 de abril de 1994.
O caso Escola Base
O caso “Escola Base” foi herdeira direta da campanha do impeachment contra o ex-
presidente Fernando Collor. Depois que a campanha se esgotou, criou-se um vácuo nos
leitores. Estavam todos viciados em notícias catárticas, no escatológico, do mesmo modo
que viciados em morfina. A cada dia a mídia se obrigava a buscar manchetes e temas que
substituíssem o lixo da campanha do impeachment.
Foi nesse contexto que surgiu o episódio da Escola Base.
Como todo brasileiro, particularmente como pai, interessei-me vivamente pelo tema,
assim que a imprensa passou a divulgá-lo. No primeiro dia, havia declarações do delegado
responsável pelo inquérito sobre supostas orgias com crianças de quatro anos. A imprensa
ecoou em coro as acusações. Pouco espaço era dado aos acusados.
Eram eles Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada , donos da Escola Base; Maria
Cristina Franca, professora da escola, acusada de abusar sexualmente de uma criança de 4
anos, coleguinha de seu filho na escola; Saulo e Mara da Costa Nunes, perueiros da
escola, acusado de abusar das crianças dentro da Kombi; e Maurício Alvarenga e sua
mulher Paula Milhin, sócia e professora, acusados de participarem do esquema todo.
Uma das poucas experiências que eu tive com cobertura policial foi no início dos anos 80,
no rumoroso episódio da corretora Tieppo. Na época era proibido investir fora do país,
especialmente devido à crise cambial brasileira. A corretora montou um esquema de
captação de recursos para aplicar nos novos mercados de derivativos que surgiam.
Apostou mal, perdeu dinheiro e explodiu o escândalo.
Todos os jornais cercaram os delegados incumbidos da investigação, entre eles Romeu
Tuma. Havia ampla disputa na cobertura, todos os jornais tratando de incensar os
delegados, para obter informações. Todos bebendo da mesma fonte.
Como chefe de reportagem de Economia do “Jornal da Tarde”, orientei os repórteres a
buscarem outras fontes. Em pouco tempo descobrimos uma versão totalmente diferente
daquela apregoada pela mídia. O caso era tocado por dois delegados do DOPS, um deles o
futuro senador Romeu Tuma.
A imprensa inteira estava atrás do caixa dois da corretora, que revelaria o nome dos
investidores que aplicaram no exterior. Um dia Tuma convocou os jornalistas para
informar que o caixa dois havia sido descoberto em um pequeno sobrado do bairro do
Ipiranga.
Corremos por fora. O repórter Celso Horta foi incumbido de conversar com as telefonistas
da corretora. Com elas levantou a informação de que as ligações para clientes especiais
tinha umas frases em código, para evitar grampos. E nenhum dos nomes apurados
constava da lista do Tuma.
Outro repórter foi despachado para o sobrado do Ipiranga com fotos de Tieppo e Tuma.
Localizou testemunhas que afirmaram que ambos se encontraram várias vezes por ano,
uma semana antes do anúncio oficial da descoberta do caixa dois.
Com essas informações convidamos o advogado de Tieppo para uma entrevista no “JT”,
onde, apertado por todos os lados, confirmou o acordo entre Tieppo e Tuma para jogar
planos quentes na investigação.
O episódio me deu a certeza de que, a exemplo dos repórteres, delegados e promotores
tendem a supervalorizar os casos dos quais se incumbem, obrigando a um cuidado
redobrado na análise de suas informações.
No caso Escola Base, o delegado aparecia falando muito, expondo vastas certezas, e não
apresentava fatos objetivos. Limitava-se a mencionar testemunho de meninos de quatro
anos. Nas poucas vezes em que foi ouvido, o proprietário da escola revelava genuína
indignação.
No terceiro ou quarto dia de cobertura, sugeri à chefia de reportagem da TV Bandeirantes
que ousasse o caminho oposto: apostar na inocência dos proprietários da escola. Mas o
clima, por demais candente, desestimulava qualquer movimento na direção contrária.
No dia seguinte foi anunciada a prisão de três casais da Escola Base. Naquele dia, decidi
entrar no assunto. Fazia um comentário diário no “Jornal da Noite”, e avisei o editor que
falaria sobre o caso.
Para minha surpresa, o editor me informou que o advogado dos acusados tinha entrado em
contato com a repórter da Bandeirantes –a emissora menos radical na cobertura— e
informado que dispunha de um laudo sobre o caso, segundo o qual havia dilatamento de
um por um no ânus do menino. Significava que, se houve penetração, não foi de adulto;
mas o mais provável é que tivesse sido uma assadura. Em vão o advogado tentava
convencer os jornalistas a divulgar o laudo.
Naquela noite fiz um comentário no Jornal da Noite, posteriormente transcrito pelo
jornalista Alex Ribeiro no livro “Escola Base – Os Abusos da Imprensa”:
“Bom, hoje eu não vou falar de economia, vou falar de um assunto que me deixa doente.
Toda a imprensa está há uma semana denunciando donos de escola que presumivelmente
teriam cometido abuso sexual contra crianças de quatro anos. Toda a cobertura se funda
em opinião da polícia. Está havendo um massacre. Mais que isso, está havendo um
linchamento. Se eles foram culpados, não é mais que merecido. E se não forem? Uma
leitura exaustiva de todos os jornais mostra o seguinte: não há até agora nenhuma prova
conclusiva de que a criança foi violentada por adulto. Não há nenhuma prova conclusiva
contra as pessoas que estão sendo acusadas. Tem-se apenas a opinião de policiais que
ganharam notoriedade com denúncias e, se eventualmente de descobrir que as denúncias
são falsas, vão ter muita dificuldade de admitir. Por isso, a melhor fonte não é a polícia,
neste momento. A imprensa deve às pessoas que estão sendo massacradas, no mínimo,
um direito de defesa, de procurar versões fora da polícia. Repito: é possível que as pessoas
sejam culpadas. Mas é possível que sejam inocentes. E se forem inocentes?”
Na manhã seguinte, aumentei o tom das críticas no programa da rádio Bandeirantes, no
qual participava ao lado de Salmoão Esper e José Paulo de Andrade. Naquele dia, escrevi
a coluna na “Folha” sobre o episódio, que saiu publicada no dia posterior. Foi a primeira
manifestação denunciando os erros de cobertura.
O massacre do japonês da Aclimação se dava no mesmo momento em que um banqueiro
de atividade polêmica se firmava na mídia, particularmente nas colunas sociais, como o
novo grande mecenas da cidade. Sua incensação serviu de contraponto ao massacre da
Escola Base.
8/04/1994 O japonês da Aclimação e o Mecenas
O japonês da Aclimação vai ajudar a brava sociedade brasileira a purgar seus erros e
permissividades. Desconfiou-se que em sua escolinha donos, professores e pais de aluno
praticavam abusos sexuais contra pequenos alunos de 4 anos de idade. Um roteiro para
Marques de Sade nenhum botar defeito.
Não há nenhuma prova conclusiva para as acusações. Não há sequer laudos que
comprovem definitivamente a prática de abusos sexuais. Um exame comprovou
dilatamento de um por um no ânus de uma das crianças. Pode ser vestígio de penetração,
seguramente não por parte de um adulto. Pode ser fruto de uma assadura. Depois disso,
há apenas informações arrancadas de crianças de 4 anos por pais desesperados.
Há o quadro já conhecido de policiais que se deslumbram com episódios que podem lhe
render popularidade, e de cobertura jornalística burocrática que se vale exclusivamente
da versão oficial.
Mas pode haver algo de maior impacto, para policiais e jornalistas, do que a suposição
de crianças de 4 anos—que poderiam ser filhos dos próprios leitores—sendo utilizadas
em sessões de filmes pornográficos?
Não há nenhuma foto, nenhum filme que comprove a versão, mas o que importa? Como
tem-se 50% de possibilidade do japonês da Aclimação ser culpado, está-se cometendo
apenas 50% de injustiça.
E toca-se a linchar o japonês e os pais de outros alunos de 4 anos, valendo-se dessa
grande prerrogativa de sentir-se fortalecido na companhia da unanimidade, para melhor
poder exercitar o supremo gozo de participar de um linchamento, sem riscos e sem
remorsos—uma espécie de realidade virtual da Disneyworld com vidas alheias, em que
se vive a sensação de perigo, sem correr riscos.
Pouco importa se o resultado final dessa investigação vier eventualmente a comprovar a
inocência dos acusados. Se errar, terão o álibi de estar errando em ampla companhia.
Lei e ética
O combate à corrupção não se faz em cima de leis, mas de princípios éticos
desenvolvidos pela sociedade como um todo. O primeiro círculo a coibir pr ticas erradas
é a família. O segundo, o círculo social. Se houver conivência com desvios, não há
aparato legal que resolva.
Em São Paulo, um banqueiro foi acusado de integrar o esquema PC Farias junto a
fundos de pensão e ao sistema Telebrás. Um grande empresário carioca, homem de vida
pública conhecida, e de boa reputação, acusou-o frontalmente de ter exigido propinas
para liberar uma licitação. Outro empresário, do setor de telecomunicações, acusou-o de
tê-lo procurado em nome do próprio PC Farias.
Nenhuma medida foi tomada pelo Ministério Público Federal para apurar os fatos. Fosse
apenas um empresário paulista, o banqueiro provavelmente teria sua vida investigada.
Mas é também genro de um senador da República.
A brava elite paulista transformou-o em seu mecenas particular, sem se preocupar sequer
em cobrar-lhe explicações cabais para as acusações. Ele é personagem ativo das colunas
sociais, sua casa é freqüentada por personalidades conhecidas da vida intelectual e
empresarial, suas festas elogiadíssimas, assim como suas virtudes de enólogo. Tem
dinheiro e é grande amante das artes. Um grande praça, sem dúvida.
Não se assuma a presunção da culpa. Pode ser que seja inocente. Pode ser que seja
culpado. O fato é que em nenhum momento as suspeitas provocaram sequer o
constrangimento, que é o sinal mais tênue de existência de princípios éticos regendo
relações sociais.
Mas pouco importa. O poderoso japonês da Aclimação está aí mesmo, para mostrar que
com a sociedade brasileira não se brinca.