Quem pode ler as notícias sobre a tragédia no Rio Grande do Sul?, por Natália Huf

Paywall impede acesso à informação de interesse público, e escancara critérios de noticiabilidade e modelo de negócio adotado pelos veículos

Menos de uma semana após o ciclone, jornais nacionais não dão destaque ao assunto e matérias de portais são inacessíveis para não-assinantes. Foto: Marinha do Brasil/RS

do objETHOS

Quem pode ler as notícias sobre a tragédia no Rio Grande do Sul?

por Natália Huf

Neste domingo, 10 de setembro, buscando matérias sobre a tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul nos principais jornais do país, duas coisas me chamaram a atenção: a ausência do tema nas páginas iniciais dos portais que se pretendem nacionais e a barreira do paywall em grande parte dos textos, até mesmo no maior portal digital gaúcho. Por diversos motivos, não sou assinante destes veículos, o que me deixa “do lado de fora” de muitas matérias no dia a dia; mas, em uma situação como a do ciclone que matou cerca de 40 pessoas até o momento e deixou inúmeros desabrigados, seria de se esperar que os jornais mantivessem o acesso aberto às informações.

Esta não é apenas a reclamação de uma pessoa que mora na região Sul e tem familiares que habitam próximo a cidades atingidas. Para além destes vieses, o questionamento sobre o paywall que impede a leitura das notícias sobre o ciclone perpassa o olhar sobre acesso à informação de interesse público, critérios de noticiabilidade e modelo de negócio adotado pelos veículos. Vamos por partes.

Repercussão

Em capítulo no livro Critérios de noticiabilidade – Problemas conceituais e aplicações (Insular, 2014), a pesquisadora Gislene Silva elenca 13 autores e as categorias de valor-notícia que cada um deles apresenta em sua obra (p. 62). Destes, absolutamente todos possuem ao menos uma categoria que justifica a repercussão do ciclone enquanto fato jornalístico: para Stieler, o fator proeminência; Lippman, impacto; Bond, catástrofe, drama e número de pessoas afetadas; Galtung e Ruge, amplitude e negativismo; Golding-Elliot, drama, importância e atualidade; Gans, importância; Warren, atualidade e conflito; Hetherington, importância, drama, número de pessoas envolvidas; Shoemaker e colegas, impacto; Wolf, número de pessoas envolvidas; Erbolato, impacto e interesse humano; Chaparro, atualidade e dramaticidade; e Lage, intensidade. Com uma análise mais detalhada de cada um dos conceitos apresentados por cada autor, talvez seja possível encaixar esse fato em ainda mais categorias. Portanto, o que justifica a ausência de matérias sobre o ciclone nas capas (virtuais e impressas) dos quality papers brasileiros no fim de semana após a tragédia?

O ciclo das notícias é cada vez mais rápido, especialmente considerando a circulação nas redes sociais. Embora tenha sido destaque nos dias imediatamente seguintes ao ciclone, causa espanto que um evento de tamanha proporção não tenha sido sequer  mencionado na capa da Folha de S. Paulo deste domingo, nem d’O Estado de S. Paulo ou d’O Globo, enquanto todos os três dão destaque à tragédia no Marrocos, que é manchete da Folha e a foto de capa dos outros dois. A intenção aqui não é, de forma alguma, “comparar” eventos catastróficos e tentar determinar qual deles é mais ou menos importante. Mas é curioso que, quando situações de impacto ocorrem fora do eixo Rio-São Paulo, elas ganhem destaque por pouco tempo nos veículos de maior abrangência do país. Não foi diferente com o apagão que atingiu 13 das 16 cidades do Amapá em 2020, por exemplo, que gerou discussão em torno do porquê o caos no estado nortista teve menos espaço no noticiário nacional do que as eleições americanas, que ocorreram na mesma época.

Modelo de negócio

Em relação ao paywall, cito a pesquisadora e colega do objETHOS Lívia Vieira, que escreveu em comentário publicado em março deste ano sobre como essa ferramenta vem sendo bem-sucedida desde sua implementação pelos pioneiros The New York Times e Financial Times, no início da década passada. O modelo foi adotado por grande parte dos veículos, mas segue com questões éticas que precisam ser observadas pelas empresas, como destaca Lívia: a impossibilidade dos leitores de assinar todos os veículos, as dificuldades impostas ao jornalismo local, a desinformação que circula livremente (e sem paywall) e, em especial, a restrição a informações de interesse público.

O pesquisador Alexandro Mota, em capítulo do livro Covid-19 e a comunicação (Cegraf UFG, 2021), destaca o momento da pandemia em que 15 veículos brasileiros suspenderam o paywall das notícias sobre Covid-19: “Os valores sociais acima dos de mercado no contexto de uma pandemia nos ajudam a pensar como, em algumas situações, o espírito jornalístico ‘clássico’, aquele mais amplamente propagandeado pelo campo como legítimo, tem oportunidade de se alinhar à prática, encontra terreno propício para o jornalismo ser o que ele costuma prometer – sem aqui anular ou hierarquizar outras formas de ser e de poder ser do jornalismo” (p. 425).

Até mesmo o portal Gaúcha ZH, da RBS, limita o acesso às matérias sobre as enchentes no estado. Imagem: GaúchaZH/Reprodução

É certo que a pandemia teve uma proporção muito maior, afetando todos os países do mundo. No entanto, aquele foi um momento em que diversos veículos deixaram de diferenciar a categoria leitor assinante da “subcategoria” de não-assinante e permitiu acesso livre a uma maior parcela de conteúdo, que foi consumida e disseminada pelas pessoas: em 2020, primeiro ano da pandemia, em meio ao que muitos afirmam ser uma grande crise de credibilidade das instituições, TVs e jornais lideravam o índice de confiança em relação a informações sobre o vírus.

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Situações de interesse público, catástrofes e com um grande número de pessoas afetadas, para retomar os critérios de noticiabilidade, demonstram que o jornalismo continua ocupando uma posição de referência para grande parte do público. Além de investir em jornalismo de qualidade, é importante também que as empresas jornalísticas revisitem suas estratégias de modelo de negócio e identifiquem momentos em que o interesse humano deve estar à frente da lógica de mercado.

Referências

MOTA, A. O discurso metajornalístico como regulador do modelo paywall na pandemia. In: OLIVEIRA, R. C.; CHRISTINO, D.; MACHADO JÚNIOR, E. V. (Orgs.). Covid-19 e a Comunicação. Goiânia: Cegraf UFG, 2021. p. 404-430. Disponível em: https://www.academia.edu/50414483/O_discurso_metajornal%C3%ADstico_como_regulador_do_modelo_paywall_na_pandemia. Acesso em: 10 set. 2023.

SILVA, G. Para pensar critérios de noticiabilidade. In: SILVA, G.; SILVA, M. P.; FERNANDES, M. L. (Orgs.). Critérios de noticiabilidade: Problemas conceituais e aplicações. Florianópolis: Insular, 2014. p. 51-70.

Natália HufDoutoranda no PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS

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Redação

1 Comentário

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  1. Quem paga? Negócios são assim mesmo. Uma notícia, um atendimento emergencial num hospital privado… sãos negócios. Pagou? Passou. Sem pagar? Nem pensar. O mainstrean perdeu o bonde no início do século diante de uma timaço de marginais digitais, que liberou geral, de músicas e filmes a conteúdos jornalísticos. Mas isso foi só no começo da festa. Logo, logo, os velhos lobos do profissionalismo estavam engolindo tudo. De programinhas experimentais, gráficos, áudio, vídeo, anti-vírus e até jogos, até as plataformas de buscas, que virou o filão de ouro que nos trouxe até a “matrix” Google. Programa gratuito hoje, por mais elementar que seja, sempre traz um “tracker” junto; às vezes em forma de vírus. Foi a inocência rebelde dos tipos quais Shaun Fanning ou os quatro do Terravision, levado na ‘tora’ pela Google e hoje no excelente GoogleEarth. Acabou. Todas as músicas que tenho no computador, copiadas de CDs nos anos 90, o sistema as identificou e, por enquanto não ainda criou nenhum obstáculo para que eu as reproduza. Para copiar ou editar, já são outros quinhentos. E olha que passei para a máquina antes mesmo de chegar internet por aqui. Acabou a privacidade, de qualquer modo. E, claro, é hora de ganhar dinheiro. Muito dinheiro.

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