Como o Islã influenciou o Blues

O mundo islâmico, que em diversos períodos se estendia de Portugal à China, era um mercado global de bens e ideias, e a África Ocidental fazia parte desse mercado.

O Islã é conhecido na África Ocidental desde o século VIII, das interações com comerciantes berberes e árabes e com imãs do norte. A religião começou a se propagar no Senegal e no Mali no começo do século XI, transmitida por comerciantes, sábios e imãs. O alcance dela logo se expandiu das margens do Rio Senegal, no oeste, às margens do Lago Chade, para o leste. Comerciantes e imãs malineses introduziram a religião no norte da Nigéria no século XIV.

O mundo islâmico, que em diversos períodos se estendia de Portugal à China, era um mercado global de bens e ideias, e a África Ocidental fazia parte desse mercado.

A Música Islâmica na África

Como em muitos outros territórios islâmicos, o Sufismo, o lado místico do Islã, se espalhou bastante na África Ocidental. Uma de suas características únicas era, e ainda é, a música. Considerada um meio de aproximar um indivíduo ou um grupo de Deus, a música é parte integral da vida sufi, seguindo a injunção do hadith: “Adornai o Alcorão com vossas vozes.” Os membros das ordens sufis sempre entoam o Alcorão e hinos religiosos. Súplicas também são um gênero, que consiste de orações entoadas de um jeito emocional. Outro gênero é a arte da tilāwah, a recitação do Alcorão realizada por especialistas que seguem regras estritas de pronúncia e entonação e sempre recitam sozinhos. Apesar de as tradições islâmicas não considerarem a recitação do Alcorão e o chamado da oração como uma forma de canto, essas coisas não deixam de ser melódicas.

Sons fortes tremulantes, melismas (entoar múltiplas notas musicais na mesma sílaba), entonações ondulantes, notas prolongadas, longas pausas entre frases, glissandos e uma certa nasalidade são partes características da recitação e do canto no mundo islâmico. Ou, como descreve o etnomusicólogo Bruno Nettl: “O canto do Oriente Médio soa tensionado e tem uma tonalidade rústica, nasal e profunda na goela, um pouco abaixo do tom.”

Não surpreende que a música foi uma das coisas culturalmente intercambiadas entre a África do Norte e o Sahel ocidental, a região que vai do Senegal e da Gâmbia ao norte da Nigéria. A música da África do Norte era caracteristicamente diferente da música do Oriente Médio, recebendo a influência dos povos negros nativos das regiões do sul do Magreb e, posteriormente, por vítimas não muçulmanas do comércio de escravos trans-saariano. Muitas vezes empregados como músicos, os africanos ocidentais escravizados levaram sua música e seus ritmos para a África do Norte. No Sahel ocidental, principalmente nas regiões urbanas, Muçulmanos adotaram, adaptaram e transformaram o estilo musical islâmico. Os dois lados do deserto contribuíram muito para as culturas um do outro.

Nas regiões islâmicas da África Ocidental, a casta mais baixa dos músicos profissionais, ligadas a côrtes e a famílias ricas desenvolveram um repertório de genealogias, músicas de louvor e poesias épicas. Eles cantavam sozinhos – ou, às vezes, em grupos – em estilo declamatório, com inflexões trêmulas, melismas, cantarolas, vibratos e efeitos de pulsação e tremulantes. Esse estilo, com séculos de idade, continua presente na música contemporânea. Cantores profissionais faziam o próprio acompanhamento instrumental ou eram acompanhados por músicos que tocavam outros instrumentos, como alaúdes, a kora (uma harpa de vinte e uma cordas), instrumentos de uma só corda, e balafons (xilofones).

O musicólogo Gerhard Kubik coloca esse modelo no contexto mais abrangente da música no mundo islâmico

“Em questão de estilo, a música tocada na região do interior da savana oeste-africana em certos instrumentos de corda, por exemplo, principalmente alaúdes de braço longo (xalam, garaya, etc.) e instrumentos de uma corda só (gogegojeriti, etc.), é caracterizada pela predominância de padrões pentatônicos de afinação, pela ausência do conceito padrões assimétricos de compasso, uma estrutura de movimento relativamente simples, sem polirritmias complexas, mas usando acentuações de contratempo sutis e um estilo vocal declamatório com entonações trêmulas, melismas, vozes rasgadas, heterofonia, e assim por diante. Algumas dessas características são, é claro, compartilhadas com a esfera mais abrangente da música islâmica.”

Mesmo quando esse tipo de música inclui percussão, é algo claramente distinto da música das regiões africanas costeiras e das florestas. Se caracteriza por uma forte dependência de tambores, sinos, chocalhos, polirritmia, participação coletiva e chamada e resposta, como podemos ver nas regiões sulinas da Costa do Marfim, de Gana, Benim e da Nigéria, e também no centro-oeste da África, do Gabão ao Congo e à Angola.

A Diáspora Africana e a Música Afroamericana 

Com início no começo do século XVI, o comércio transatlântico de escravos deportou cerca de 12,5 milhões de homens, mulheres e crianças do oeste e do centro-oeste da África. Centenas de milhares de muçulmanos estavam entre eles.

Aonde quer que aportassem, os africanos levavam sua música e, com o tempo, eles e seus descendentes desenvolveram muitos gêneros novos. No Caribe e na América do Sul – do Brasil à Cuba, do Uruguai ao Peru, do Haiti à Guadalupe, à Colômbia e à Venezuela – a música que eles desenvolveram apresentava muitas características que surgiram nas regiões costeiras e das florestas africanas: polirritmias elaboradas, percussão em tambores africanos (não em tambores europeus), participação coletiva e chamada e resposta.

É impressionante que esses elementos estavam perceptivelmente ausentes na música tradicional criada pelos africanos e pelos descendentes deles nos Estados Unidos. Na música deles não havia percussão, ao passo em que instrumentos de cordas (banjos, rabecas e, posteriormente, violões) eram a mídia de preferência. Essa particularidade afroamericana se evidencia bastante no blues. Ao analisar as diferenças entre a música afroamericana dos Estados Unidos e a do restante do hemisfério ocidental, Paul Oliver, em seu livro curto porém pioneiro, As Síncopes da Savana: Vestígios da África no Blues (Savannah Syncopators: African Retentions in the Blues) de 1970, foi o primeiro a salientar que as raízes do blues não estavam nas regiões costeiras e de florestas da África. Em vez disso, afirmou ele, o blues tem suas raízes na região do interior da savana, de Senegâmbia até o Mali, Burkina Faso, ao norte de Gana, o Níger e o norte da Nigéria.

Durante os últimos trinta anos, outros musicólogos e historiadores da música entraram em consenso com Oliver, mas propuseram perspectivas diferentes sobre qual região era a predominante. Robert Palmer e Samuel Charters apontaram a Senegâmbia, enquanto Alan Lomax, quando não se referia à África Ocidental em geral no livro A Terra Onde Começou o Blues (The Land Where the Blues Began), mencionava especificamente o Senegal. Gerhard Kubik, autor de A África e o Blues (Africa and the Blues), enfatizava que o centro-oeste do Sudão – do Mali ao norte de Gana e da Nigéria e as regiões do norte e do centro de Camarões – eram o núcleo, enquanto a Senegâmbia demonstrava apenas “algumas características do blues.” Embora o fato de que as pesquisas e os debates sem dúvida continuarão e serão altamente influenciados pela região específica onde as pessoas tiverem feito suas pesquisas de campo, esses especialistas concordam que as raízes da música afroamericana dos Estados Unidos estão na África Ocidental islâmica. Uma vez que muçulmanos africanos estavam presentes na totalidade das américas, o que é que explica o desenvolvimento e a predominância desse estilo musical deles nos Estados Unidos, e não em outros lugares?

A Proibição da Percussão

O primeiro episódio marcante na história da música afroamericana dos Estados Unidos foi um acontecimento impactante do século XVIII. Em 9 de setembro de 1739, pessoas escravizadas do Reino do Kongo (região que, hoje, é parte do Congo e da Angola), organizaram uma revolta em Stono, na Carolina do Sul. Seu objetivo era chegar a San Agustín na Flórida espanhola, onde as autoridades garantiam liberdade a todos os escravos fugitivos dos Estados Unidos. Eles marcharam com “cores à vista e batucando em dois tambores.” À medida em que seus números aumentavam, eles “se puseram a Dançar, Cantar e tocar Tambores para atrair mais negros a eles.” No fim das contas, a revolta acabou por matar vinte brancos e quarenta africanos. No ano seguinte, foi aprovada uma lei na Carolina do Sul que estipulava:

“É absolutamente necessário, para a segurança desta província, que todos os cuidados sejam tomados para conter a perambulação e as reuniões de negros e de outros escravos a todos os momentos e, mais especificamente, nas noites de sábado, nos domingos e em outros feriados, para conter o uso e o porte de espadas de madeira e de outras armas malignas e perigosas por eles, e o uso e a posse de tambores, trombetas e de outros instrumentos barulhentos que podem ser usados para se agruparem, dar sinais ou avisar uns aos outros de seus projetos e planos  perversos.”

É significativo que tambores e trombetas foram considerados tão perigosos quanto armas. A proibição continuou em vigor até a abolição da escravatura. A Geórgia seguiu a prática da Carolina do Sul em 1740 e reafirmou a proibição em 1845. Por lei ou por costume, tambores foram proibidos em todo o sul dos Estados Unidos, exceto na Luisiana, que pertenceu à França até 1803. Na Luisiana, há registros da prática da percussão até a metade do século XIX. É interessante que a maior revolta de escravos dos Estados Unidos ocorreu em 1811 no sul da Luisiana, onde uma multidão de homens e mulheres, num episódio parecido com o de Stono, “marchou nas margens do rio, em direção à cidade, separada em companhias, cada uma sob o comando de um oficial, com toque de tambores e exposição de estandartes.”

Apesar de tambores e trombetas terem sido proibidos no Caribe britânico desde o final do século XVII – pelos mesmos motivos que na América do Norte – a imposição da lei não era muito rígida e, como resume a historiadora da música Edna Epstein, os escravistas “haviam se convencido da sabedoria que estava presente em permitir que seus escravos dançassem e tocassem seus tambores no geral.” Relatos de testemunhas brancas sobre danças em público ao batuque de tambores eram abundantes no Caribe e nas colônias da América do Sul, mas não nos Estados Unidos. Além disso, tambores não faziam parte das memórias de ex-escravos dos Estados Unidos. Na década de 1930, a Works Progress Administration (WPA) entrevistou cerca de 2.300 homens e mulheres, perguntando sobre suas vidas como escravos. 68 descreveram tambores, mas esses tambores ou eram do exército da União ou pertenciam a bandas de pífano e percussão que acompanhavam os regimentos da União. Duas referências a tambores usados pelos escravos chamam atenção. James Bolton, da Geórgia, nota: “Depois da janta, a gente se reunia e batucava nos baldes de lata e nas panelas. A gente batia neles que nem tambor. Uns batiam com os dedos, outros batiam com galhos pra fazer os barulhos de tambor.” Também na Geórgia, Mack Mullen afirmou que, durante a noite, na plantação onde ele morava, as pessoas dançavam ao som de uma rabeca e um tambor. Nas regiões remotas e nas ilhas da Geórgia, 138 homens e mulheres ex-escravos foram entrevistados para o estudo de 1940 da WPA, Tambores e Sombras: um Estudo sobre a Sobrevivência entre os Negros da Costa da Geórgia (Drums and Shadows: Survival Studies Among the Georgia Coastal Negroes)Apesar do título do livro, foram poucos que mencionaram tambores. Duas pessoas lembraram de africanos que tinham tambores, e cerca de dez afirmaram que faziam percussão nas Sea Islands para anunciar a morte de alguém, durante funerais.

A escassez de referências a tambores é surpreendente da mesma maneira nas várias “narrativas de escravos” (autobiografias de ex-escravos). Em contrapartida, a importância do tambor na vida de alguns africanos e sua proibição efetiva após a chegada deles nos Estados Unidos são contidas num ocorrido de 1865 em Mobile, Alabama. Cinco anos antes, em 8 de julho de 1860, 110 jovens de Benim e da Nigéria – muitos deles iorubás – chegaram em Mobile. Eles foram os últimos africanos levados (ilegalmente) no comércio internacional de escravos. Em abril de 1865, quando o exército derrotou Mobile, disseram aos jovens escravos que estavam livres. A primeira coisa que ele fizeram foi fabricar um tambor. De raízes em culturas em que o tambor era importante, eles viam o instrumento que até poucos momentos atrás era proibido como parte essencial da vida e como símbolo de liberdade.

Enquanto os tambores desapareciam, seu “espírito” não desaparecia. As pessoas desenvolveram substitutos originais para os tambores. Para a percussão polirrítmica, eles batiam palmas, batiam os pés no chão, batiam galhos ou ossos e dançavam patting Juba. Em 12 Anos de Escravidão, Solomon Northup, nascido livre, mas raptado e escravizado na Luisiana, descreve esse gênero, praticado em todo o sul dos Estados Unidos: “Dança-se a patting batendo as mãos nos joelhos, depois uma na outra, depois batendo no ombro direito com uma mão e no esquerdo com a outra – tudo isso ao mesmo tempo em que mantemos o tempo com os pés e cantamos.”

Por mais engenhoso que fosse, a dança patting Juba e bater ossos e madeiras nunca poderia substituir os ritmos complexos e elaborados dos tocadores de tambor das florestas. Como ressalta o músico e crítico Robert Palmer, “a gama de expressão musical que foi legada para os africanos do sul de Senegal foi cruelmente limitada.”

Os Instrumentos de Corda

Ao passo em que seus semelhantes da áreas costeiras e de floresta não estavam mais autorizados a tocar devido à proibição dos tambores, os músicos escravizados da região do Sahel que tocavam tradicionalmente instrumentos de cordas podiam continuar tocando e, à medida em que o estilo deles se tornou conhecido, outros músicos nascidos nos Estados Unidos o adotaram.

Um dos instrumentos de corda que se tornou mais conhecido – e que foi mencionado mais de  noventa vezes nas entrevistas com os ex-escravos – foi o banjo, cuja origem africana era conhecida por todos nas Américas. Em 1782, Thomas Jefferson comentou: “O instrumento próprio deles é o banjer, que eles trouxeram da África, e é a versão original do violão. Suas cordas são precisamente as quatro cordas mais graves do violão.” Mas, muito antes dos comentários de Jefferson, o banjo (chamado também de banjarbanzabanjerbonjoon ou bangoe) foi descrito na Gambia em 1621 e aparece em múltiplos relatos do Caribe francês e inglês, de até tão antigamente quanto 1654. Feitos de cabaças, os banjos nas Américas, tal  como os diversos alaúdes africanos, tinham um braço arredondado em vez do braço reto que mais tarde viria se tornar o padrão.

Laurent Dubois, em The Banjo: America’s African Instrument, chama o banjo de o “primeiro instrumento ‘verdadeiramente’ africano” pois, nas Américas, ele unia as diversas tradições musicais do oeste e do centro-oeste da África. Em 1819, Benjamin Latrobe descreveu e esboçou um banjo – e também tambores – que havia visto numa reunião na Congo Square em Nova Orleans:

“O instrumento mais interessante, no entanto, era um instrumento de cordas que, sem dúvida, foi importado da África. Na parte de cima do braço, havia uma imagem rústica de um homem sentado e duas cavilhas atrás dele, às quais estavam amarradas as cordas. O corpo do instrumento era uma cabaça. Um velhinho muito pequeno, que parecia ter 80 ou 90 anos, o tocava.”

O instrumento do idoso africano não se parecia com os alaúdes de Sahel em um aspecto  importante: a figura do homem. Reparando na presença de gravuras e esculturas antropomórficas em alguns instrumentos de cordas africanos, Dubois lembrou, “É interessante que essa tradição de decorar instrumentos aparenta ter sido menos comum nos alaúdes da África Ocidental, cuja forma é mais parecida com a dos banjos do Novo Mundo.” Por motivos religiosos, os muçulmanos africanos não acrescentavam imagens antropomórficas em seus instrumentos. Essa particularidade pode indicar que o banjo americano tenha origens na região do Sahel e não na costa ou nas florestas.

Além do banjo, os músicos que tinham familiaridade com alaúdes e instrumentos de uma só corda aprenderam o violino. Esses instrumentos de uma só corda são, de longe, os mais citados nas entrevistas com os ex-escravos. Eles não tocavam somente para sua comunidade – durante trabalhos forçados de descascar milho, para manter as pessoas em alerta, e durante danças estritamente monitoradas – mas também durante as danças dos brancos. Solomon Northup, conhecido por tocar esses instrumentos, era muitas vezes “alugado” por seu dono para tocar em bailes dos brancos. Em muitos relatórios sobre escravos fugitivos, consta que os que tocavam esses instrumentos os levavam com eles quando fugiam.

Uma Segunda Diáspora: O Extremo Sul dos Estados Unidos

Por volta da década de 1750, o cenário musical das colônias britânicas na América do Norte, era muito diferente do que no restante das Américas. Junto com os efeitos impactantes da revolta de Stono, outro fenômeno particular dos Estados Unidos logo viria a dar à música afroamericana sua forma única. O século XIX presenciou uma migração forçada de escravos para o extremo sul dos Estados Unidos. Entre 1790 e 1865, o comércio interno de escravos mandou à força mais de um milhão de africanos e afroamericanos do extremo norte para os estados de Alabama, Mississipi, Texas, Luisiana, Arkansas, Tennessee, Geórgia e Flórida. Eles foram “vendidos rio abaixo”, ou migraram junto com seus donos para novas fazendas de algodão e açúcar.

O extremo sul foi povoado de homens, mulheres e crianças que haviam sido brutalmente desenraizados e separados de suas famílias, sem esperanças de serem reunidos novamente. Foi uma experiência traumática parecida com a que os africanos tiveram de passar da primeira vez que foram forçados a se separarem de seus amados e de suas comunidades. Os recém chegados tiveram de abrir espaço para plantações de algodão e de açúcar nas florestas, um tipo de trabalho extremamente puxado. Os artesãos que haviam desenvolvido outras habilidades na região do Upper South (a região mais ao norte da região sul) foram mandados para trabalhar nos campos, cortando a cana, capinando e colhendo algodão. O sistema de tarefas que, em algumas regiões, permitia que as pessoas trabalhassem para elas mesmas e cultivassem pomares após terminarem seu trabalho diário não existia. Por causa da distância, os fugitivos que chegavam aos estados livres eram em sua  maioria da região do Upper South (principalmente de Maryland e da Virgínia); os homens, mulheres e crianças levados mais ao sul não tinham esperança de atravessar a linha Mason-Dixon. E pior, o regime extremo de trabalho se apoiava em tamanha brutalidade, que usavam até tortura. “Os que haviam presenciado e passado pela tortura no nas regiões do sudeste e do sudoeste,” insistia o historiador Edward Baptist, “todos eles insistiam que era pior nas plantações do sudoeste.”

Nesse ambiente desumano, terrível e devastador, as tradições coletivas de música e dança podem não ter sido interessantes. Além disso, a visão de um homem cantando sozinho devia ser muito menos preocupante para os brancos do que grandes reuniões de pessoas dançando ao ritmo de chocalhos e baldes. O estilo musical de Sahel tinha mais chances de se enraizar, pois era uma tradição individual e não instrumental, que havia sido preservada com mais facilidade mais ao norte, havia interagido melhor com a situação social e psicológica em que as pessoas se encontravam. Isso não significa que a maioria dos que chegaram ao extremo sul eram muçulmanos ou descendentes de muçulmanos. Como diz Kubik:

“[Não podemos saber] se a maioria dos ancestrais dos que criaram e preservaram o blues vieram de locais como o Senegal, do Mali, do norte de Gana, do norte de Togo, do  norte da Nigéria e do norte de Camarões. Mas isso é apenas de importância periférica, pois outras pessoas facilmente poderiam ter aprendido rapidamente com os que vieram de lá. Se compartilhado com outras pessoas, seu estilo poderia prevalecer. Sob as circunstâncias da vida na fazenda no extremo sul do século XIX, um agrupamento de estilos, com modificações, começou a predominar, eventualmente resultando no desenvolvimento do blues, entre outras coisas. Outros grupos de estilos ficaram nos bastidores, guardando seu potencial para uma revolução em oportunidades futuras.”

Holler

Um estilo que se originou no Extremo Sul foi o holler. O viajante e autor Fredrick Law Olmsted escutou um homem na Carolina do Sul, em 1853, elevando a voz num “grito musical longo, alto, que subia e descia e, entrando em falsete, sua voz ecoava pela mata no ar fresco e gelado da noite, como um soar de trombeta.” Isso que ele escreveu também chamou a atenção do arqueólogo de Harvard, Charles Peabody, que trabalhou em 1901 e 1902 em Coahoma County no Delta do Mississipi. Os homens que ele havia contratado no local, a cerca de 25 quilômetros de Clarksdale, tinham um jeito próprio de cantar, que era diferente da maneira que o grupo de homens que ele havia trazido da cidade cantava. Um dos homens em particular cantava o que era “música africana aparentemente genuína, às vezes com palavras, às vezes sem.”

“Havia frases compridas que não aparentavam ter ritmo marcado, de notas particularmente difíceis de copiar. Quando o que ele e os outros cantavam podia ser reduzido em forma, era possível perceber alguns motivos e, quando copiados, costumavam ser muito simples, baseados em sua maior parte nas tríades menor e maior. A cantoria prolongada e solitária dos campos era muito diferente de todo o resto, apesar de que o cantor era habilidoso em passar de temas de hino para os do canto nativo.”

Em 1940, o erudito afroamericano John W. Work III, que fez um trabalho de campo extensivo no Delta e catalogou 230 músicas no livro American Negro Songs and Spirituals, descreveu o holler como “uma amostra do yodel, meio cantada, meio gritada,” acrescentando que o gênero tinha “um tipo de melodia lento, melancólico, de cadência característica.” O etnomusicólogo Alan Lommax e seu pai, John, registraram múltiplos hollers nas décadas de 1930 e de 1940, definiram as características que o distinguem:

“Eles são solos de batida lenta, ritmo livre (diferente das músicas de trabalho de grupos de prisioneiros), compostos de frases compridas, leves, ornamentadas e melismáticas. Recebem o caráter melancólico pela escala menor, também por quartos de tom entre as terças e sétimas maiores e menores, que soam como choros, gemidos e gritos de tristeza e de dor, mesmo quando eram tocados com tanta maestria que ressoavam pelos campos afora.”

O holler estava do lado oposto da música de trabalho em grupo, de chamada e resposta. Como afirma Work: “O ‘holler contrasta demais com o primeiro tipo de música de trabalho, em que o fator rítmico é o de maior importância. Não tem sentido em grupo.” “Cornfield Holler”, por Thomas J. Marshall, gravado em 1939 no Mississipi, é um exemplo desse gênero, com essa melodia individual e melancólica, palavras alongadas e melismas.

Oooooh, oooooh

I won’t be here long.

Oooooh, oooooh

Oh, dark gonna catch me here,

Dark gonna catch me here

Oooooh, oooooh

(Oooooh, oooooh

Não ficarei muito por aqui.

Oooooh, oooooh

Oh, a escuridão vai me alcançar aqui,

A escuridão vai me alcançar aqui

Oooooh, oooooh)

Os hollers muitas vezes eram músicas de três versos, mas alguns tinham muito mais. Exemplos de hollers mais compridos podem ser encontrados nas gravações de Horace Sprott. Nascido numa plantação do Alabama na década de 1890, ele aprendeu a cantar com seus pais, avós e outros anciões. Seu holler do campo “My little Annie, so sweet,” gravado ao vivo – é possível escutar os pássaros piando – é caracterizado pelas ondulações, pelo vibrato e pelas pausas.

Depois da Emancipação e o Nascimento do Blues

Depois de seis décadas de pesquisa sobre o holler e o sobre o blues original, Lomax afirmou: “Os negros americanos utilizaram técnicas africanas antigas, pois reclamações desse tipo existiam na tradição dos reinos africanos.” Ele enfatiza que o que ele chama de “a reclamação elevada e solitária” era comum no oeste e no norte da África, no sul do Mediterrâneo e no Oriente Médio; isso, ele conclui, deu origem ao blues nos Estados Unidos.

Este surgimento teve início nas últimas duas décadas do século XIX. James Smethurst, erudito em cultura afroamericana, nos lembra que “o blues foi essencialmente criado pela primeira geração de afroamericanos que não tiveram a experiência direta de serem escravos quando adultos, mas cresceram num tempo em que muitas das esperanças da emancipação se desmentiam.” A reconstrução (1865-1877), uma época de grandes expectativas para a população negra, mas também de violência, foi sucedida por Jim Crow e seu cortejo de brutalidade mortal. O blues em sua forma original, do interior do país, se desenvolveu no contexto do que poderia ser chamado de Um Outro Nome para a Escravidão: A Reescravização dos Americanos Negros da Guerra Civil à Segunda Guerra Mundial (Slavery by Another Name: The Re-Enslavement of Black Americans From the Civil War to World War II), pegando emprestado o título do livro de Douglas A. Blackmon. Agricultura compartilhada, peonagem, linchamentos, prisioneiros acorrentados uns nos outros, o terror, e o trabalho forçado não constituíam ambiente propício para o surgimento de um estilo musical alegre. Os jovens compositores rurais do blues cresceram num mundo musical secular onde os hollers predominavam, e esse estilo estava presente em toda o novo estilo musical deles. O crítico e historiador de música Ted Gioia repara: “Às vezes fica complicado dizer onde termina o holler de plantação e onde começa o blues.” Este é o caso, por exemplo, com o blues “Sun Going Down” de Eddie James “Son” House Jr., com seus melismas, vibratos, cantarolas e pausas compridas. Além disso, os ritmos da África Ocidental ainda eram familiares. Disseram que um blues cantado por Tangle Eye, detento da famosa fazenda-prisão de Parchman no Mississipi, tinha “uma versão no Senegal.” Escutar as duas músicas em seguida convenceu Lomax que “Os antepassados de Tangle Eye devem ter vindo do Senegal e trazido com eles o estilo dessa música.”

O Estilo de Blues Instrumental

Além do estilo de canto, a dimensão instrumental do blues apresenta certos traços que alguns musicólogos dizem ser do oeste do Sahel. Segundo John Storm Roberts,

“As semelhanças entre o jeito de tocar instrumentos de cordas do povo do cinturão da savana africano e de muitos violonistas e guitarristas de blues é impressionante. A kora grande do Senegal e da Guiné é tocada com um estilo que usa a mudança constante de ritmos, muitas vezes com uma base de graves com padrões complexos de agudos por cima, enquanto os vocais fornecem uma terceira camada rítmica. Técnicas semelhantes podem ser encontradas em centenas de gravações de blues.”

Mas nem todas as características do blues com origem na África são originárias dessa região. Kubik delineou as regiões das quais ele acredita que venham outros elementos. A “zona de intensidade de cítaras monocórdias e das técnicas de slide” – o que se tornou a guitarra de slide – pode ser encontrada, ele afirma, do sul de Benim até o Congo. E “regiões com arcos de boca tocados com a haste apoiada nos lábios do músico” – o diddley bow e o arco de boca – são comuns na Angola e no Moçambique. Além disso, Gioia propõe a hipótese interessante de que a repetição do primeiro verso em muitos blues é uma adaptação da chamada e resposta, onde o cantor sozinho faz a chamada e a resposta.

As Práticas Islâmicas e o Blues

Musicólogos como Lomax, Kubik, Charters, Oliver e outros que encontraram as raízes do blues no cinturão islâmico ocidental africano visualizaram a linhagem do blues como constituída de estilos musicais levados aos Estados Unidos por músicos africanos. O que eles não viram é a relação direta com certas práticas islâmicas que sobreviveram nas Américas, como orações, a recitação do Alcorão, cânticos sufis e o chamado à oração.

Em Servos de Allah: Muçulmanos Africanos Escravizados nas Américas (Servants of Allah: African Muslims Enslaved in the Americas), demonstrei que, dadas as circunstâncias, os muçulmanos não deixaram de seguir a religião, seus preceitos e suas práticas da melhor maneira que podiam. Orações, jejuns, restrições alimentares, caridade, estudos e vestuário, por exemplo, perduraram em segredo e abertamente. Escravistas, viajantes e escritores, tal como os não muçulmanos escravizados, testemunharam e relataram algumas dessas manifestações de virtuosidade religiosa sem necessariamente as compreenderem dessa maneira.

Um episódio que ocorreu em Sierra Leone no final da década de 1780 ilustra o que provavelmente aconteceu do outro lado do Oceano Atlântico:

“No campo de escravos ao lado, vi um homem acorrentado, de cerca de 35 anos. Ele era um maometano, lia e escrevia o árabe. De vez em quando ele fazia barulhos; às vezes cantava uma música melancólica e então pronunciava uma oração sincera, então observava um silêncio mortal.”

A música melancólica pode ter sido a recitação melodiosa do Alcorão ou um cântico sufi: o jovem homem usando a expressão oral de sua fé para para acalmar seu desespero. Nas fazendas e nas plantações americanas, a recitação do Alcorão e os cânticos sufis, feitos individualmente ou em grupo, teriam soado como músicas. E também soaria como música o chamado da oração, o Azan. As palavras do Azan são as mesmas em todo lugar, mas cada chamado tem um som distinto, característico de cada local. O do Uzbequistão é diferente de, digamos, o do Senegal. Talvez o holler mais surpreendente desses seja o de Bama, o cantor  estrela da prisão de Parchaman. Como com o Azan, o “Levee Camp Holler”, gravado por Lomax em 1947 – sinal da longevidade do gênero – poderia ter sido declamado num minarete. É quase igual ao chamado da oração feito por muezzins da África Ocidental. Carrega as mesmas notas ornamentadas, sílabas alongadas com entonações onduladas, melismas e pausas. Quando justapomos as duas coisas, fica difícil determinar onde termina o chamado da oração e onde começa o holler. É mais possível que tenham sido essas expressões audíveis da fé islâmica, e não simplesmente as que os músicos levaram, que geraram a música afroamericana do sul dos Estados Unidos, tão característica.

Costumam compreender o blues como um estilo musical secular, de perda: perda de mulheres, perda de emprego, arrependimentos e derrotas. Mas ele tem um lado mais profundo e espiritual: o de desafiar o desespero. Na década de 1950, Ralph Ellison notou que “a voz do blues zomba o desespero que é afirmado explicitamente na letra, e ela expressa a grande piada humana dirigida ao universo, aquela piada, que é o segredo de todo o folclore e das lendas: de que, apesar de sermos desmembrados todos os dias, nos levantaremos novamente.” Para o teólogo James Conne, o blues é “um spiritual secular.” Nesta espiritualidade, pode ser que encontremos um eco de uma das raízes do blues nas práticas e nas músicas islâmicas.

O blues não é música africana, não há um “blues africano” tradicional. E nem é “música islâmica”. O blues é uma criação afroamericana, nascido das circunstâncias norte-americanas, de múltiplas influências. O que faz o torna único é a prevalência de alguns elementos estilísticos do Sahel e islâmicos que se tornaram predominantes, em parte por causa de eventos históricos da escravidão norte-americana. Primeiro, a revolta de Stono, que foi um ataque ao sistema, em busca de liberdade. Outro evento, a relocação forçada de um milhão de pessoas, que foi planejado para alimentar o desenvolvimento da escravidão monstruosamente violento do extremo sul dos Estados Unidos. Outro ainda é o que foi, na prática, a reescravização do período pós-emancipação. Para resistir ao massacre dessas circunstâncias históricas cruéis, os afroamericanos usaram todos os aparatos culturais que os permitiam expressar seu sofrimento e sua esperança, reconfortarem a si mesmos e ajudá-los a lidarem com a situação. Entre esses aparatos estavam as melodias inspiradoras do holler e do blues. Apesar da ausência de reconhecimento, estão entre as mais duradouras contribuições dos muçulmanos da África Ocidental para a cultura americana.

Fonte: https://renovatio.zaytuna.edu/article/what-islam-gave-the-blues

Redação

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