20 de novembro, centro de São Paulo

Não são nem nove horas da manhã, passo pelo largo de São Bento. Um jovem está sentado em local não permitido. Aparentemente está passando mal – e não parece ter sido da noitada. Dois policiais militares se aproximam, interpelam o garoto – negro. Estou à distância, não sei o que conversam, o clima não é tenso (dentro do que estou habituado a presenciar nessas abordagens), mas a conversa é intensa, com os policiais eretos e rijos e o rapaz de cabeça baixa entre as pernas e uma garrafa de água na mão. O local é público, mas é proibido estar – certamente uma dessas regras de validade geral e aplicação específica, como presenciei várias vezes no CCSP, onde era proibido deitar nos bancos, por exemplo, mas se for branco dava para conversar. Um terceiro militar se aproxima, mais firme que os outros que já estão. Seguem a palestra, eu sigo meu trajeto.
A praça da Sé mantém seu ethos para os dias inúteis (já que só os de comércio aberto são os úteis): deambulam por ela os renegados do baile, os humilhados do parque – pobres moradores de rua drogadictos loucos imigrantes bêbados, os improdutivos, os inúteis, os descartáveis -, observados por GCMs e seguranças do Metrô. Sequer a palavra do diabo serve para eles, como atesta a ausência dos pregadores que nos dias úteis gritam na praça sobre pecados e infernos. Em meio à escória e ao policiamento, alguns turistas com suas potentes máquinas fotográficas. Estou na fila do Caixa Cultural, para retirar ingresso para o espetáculo “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Novamente, não conseguirei assistir à peça. Até saber disso, sigo na espera, intercalando a leitura de Dois Irmãos, do Milton Hatoum, com atenção ao entorno. Na minha frente um casal de jovens, vinte anos, se muito, negros, conversa – assuntos aleatórios. São ingênuos, idealistas – mas de uma ingenuidade que não invejo, e torço para que logo passe, sem cair no cinismo ou na desesperança. Depois de um policial civil (branco) passar pela fila (cheia de negros) ostentando uma metralhadora, dedo próximo do gatilho, a garota comenta que gostaria de poder voltar no tempo, voltar ao tempo da escravidão, para com um machado quebrar as correntes que prendiam seus antepassados e permitir que eles fugissem. O namorado estranha: você com um machado? Mais fácil seria roubar a chave. Nenhum dos dois parece ter tido ainda a ciência de que a escravidão não se resolveu (como ainda não se resolve) com a fuga, e sim com o enfrentamento, a luta, o embate, o combate – Palmares de Zumbi e tantos outros que o diga. A escravidão, como tantos problemas, em especial os que assolam pretos pobres periféricos, são absolutamente impossíveis de resolução dentro da moldura pequeno-burguesa (europeia-branca) de fuga isolamento e evasão, de deixar o tempo passar para resolver: somente na luta – consciente e coletiva – é possível a mudança efetiva. Quem sabe a peça do grupo Nóis de Teatro, de Fortaleza, desse um pouco de consciência a esses dois jovens negros, mas infelizmente eles tampouco conseguiram ingresso.
Passo novamente pelo São Bento, não estão mais lá nem o jovem, nem os policiais – apenas a garrafa d’água e um outro pertence, parece uma pasta, que estava com o rapaz. Quero crer que os policiais trataram de dar socorro a ele, mas martela em minha cabeça: todo camburão tem um pouco de navio negreiro.
Hoje é vinte de novembro, dia da consciência negra. O desde sempre roto tecido social brasileiro se esgarça ainda mais, a violência antes tentada disfarçar na cordialidade brasileira hoje é bramida orgulhosa da sua ignorância bruta. O país segue como um navio negreiro em meio à tempestade – e em alto mar não há possibilidade fuga.

20 de novembro de 2018.

Redação

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