Arte, resistência política, gênero: confira o Cai Na Roda com Laerte Coutinho

A cartunista Laerte Coutinho é a convidada do Cai Na Roda deste sábado (8). Assista no Youtube

Jornal GGN – A cartunista Laerte Coutinho é a convidada do Cai Na Roda do sábado 8 de agosto. Ela falou às jornalistas da redação do GGN sobre o trabalho criativo e um tanto jornalístico do cartum editorial, suas inspirações e como a charge pode influenciar na cena política.

“Faz parte dessa falsa modéstia do cartunista dizer que uma charge não derruba um governo, mas existe uma influência. Estou me baseando em um texto do Henfil, na verdade um diálogo do Henfil com o Tárik de Souza em que eles tecem considerações sobre o que é fazer humor político e gráfico. Ele tinha informações de que reuniões lá no gabinete do [presidente] Figueiredo se davam depois que ele escrevia a página dele na IstoÉ, que falava de política. Então às vezes a gente não se dá conta disso [do poder de influência]. A gente tem uma mistura de modéstia com ambição de mudar a realidade do mundo com a charge”, disse.

Laerte abordou ainda o episódio de censura do governo Bolsonaro ao cartunista Aroeira. Ali, por meio de um movimento de “charge continuada” (quando vários artistas reproduzem a peça censurada com seu próprio traço), Laerte verificou uma maior pluralidade no meio. Mais mulheres e negros estão desenhando e cavando seu espaço numa área que, por décadas, é dominada pelo “homem, cis e branco”.

Laerte também falou um pouco sobre as personagens Deus e Muriel/Hugo, seu alter ego, e a fase da charge política durante o regime militar. Comentou sobre sua experiência pessoal na transição de gênero e a violência que é depositada sobre as pessoas trans por causa de classe social e cor da pele.

Entre outros assuntos, ela, que se coloca à esquerda na política, também passou a mensagem de que é preciso resistir nos tempos atuais. “O que a gente tem a fazer agora é isso: extrair esse celerado do governo. Esse governo é um desastre que precisa ser removido o mais rápido possível”, comentou.

Participaram desse episódio do Cai Na Roda as jornalistas Lourdes Nassif, Cintia Alves, Patrícia Faermann e Tatiane Correia. Confira outras edições aqui.

Alguns trechos selecionados pela redação:

COMO É MOLDADA A VISÃO DA CARTUNISTA

“Eu gostaria de ter uma resposta simples. Na verdade é simples. Eu leio e converso muito e minhas ideias são elaboradas a partir de outras ideias. Eu não tento fazer com o meu trabalho uma síntese daquilo que foi dito em textos. O modus operandi do cartum, da charge, tem um leito próprio que se conecta [com os fatos] porque é jornalismo, mas ao mesmo tempo tem um leito próprio, não é como um jornalismo investigativo. Você já jamais vai ver um chargista em campo fazendo prospecção de matérias. O que existia muito eram chargistas que tinham uma presença no circuito do poder, do jornalismo, e circulavam e conversavam. Mas dificilmente chargista dá um furo, por exemplo. Então não sei bem responder de que material sou feita. Mas é assim que trabalho. Eu leio muito, procuro estar abastecida com fatos e também com análises e isso vai gerando na minha cabeça um modo de trabalhar.”

O MODUS OPERANDI

“O modo de trabalhar do cartum e da charge – estamos falando basicamente de charge, que é o cartum editorial – ele se baseia na força de determinadas ferramentas que são específicas da charge. São coisas relativamente simples. O poder de fazer uma caricatura, por exemplo. Criar retratos identificáveis de pessoas do meio político e social de maneira caricata e humorística – e agressiva, portanto. Outra: o poder de criar sínteses alegóricas a partir de elementos gráficos e simbólicos que já existem numa determinada cultura. Outra: capacidade de transformar coisas ditas em coisas visíveis. ‘Estar equilibrada no fio da navalha’, se você fala um clichê desse, tem um tipo de força. Em desenho, é como se estivesse criando uma outra realidade. A realidade criada numa charge, ela é simbólica e alegórica.

A charge do Aroeira desenhou com Bolsonaro transformando uma cruz de hospital em suástica é um bom exemplo. A charge não afirma que Bolsonaro fez isso. Mas a charge afirma toda a verdade simbólica do gesto truculento, faceiro e fascista do Bolsonaro ao convocar pessoas a invadir hospitais. Esse é um modo de trabalhar no humor gráfico.”

A FORÇA POLÍTICA DA CHARGE

“Faz parte dessa falsa modéstia do cartunista dizer que uma charge não derruba um governo, mas existe uma influência. Não sei se derruba exatamente, mas pode ajudar. Estou me baseando em um texto do Henfil, na verdade um diálogo do Henfil com o Tárik de Souza em que eles tecem considerações sobre o que é fazer humor político e gráfico. O Henfil argumenta e demonstra que o humor tem uma influência grande sobre os fatos. Os fatos abastecem e alimentam a ideia humorística, mas o humor também tem uma devolutiva. O humor é capaz de fazer isso e ele cita exemplos tantos da área esportiva – ele diz que a torcida do Flamengo começou a se reconhecer com urubu depois de uma série de charges que ele fez – mas também na política. Ele dizia que tinha informações de que reuniões lá no gabinete do Figueiredo se davam depois que ele escrevia a página dele na IstoÉ, que falava de política. Então às vezes a gente não se dá conta disso. A gente tem uma mistura de falsa modéstia com ambição de mudar a realidade do mundo com a charge.”

DO REGIME MILITAR AOS DIAS ATUAIS

“A saída da ditadura não foi da noite para o dia. Foi um saindo que durou uma década inteira, mas foi uma década de escape, desabafo, de cobrar um espaço que a censura tinha negado nos anos anteriores. Acho que floresceu bastante um tipo de linguagem como o Planeta Diário, Los 3 Amigos, linguagens que usavam muito a anarquia e a agressividade, porque isso era um exercício que precisava ser feito. Eram músculos que precisavam ser exercitados. Acho que foi uma marca bastante clara nesse período. Eu não sei dizer de charge. Charge tem algumas linhas de trabalho que desde sempre estão mostrando a mesma coisa. O Pasquim, até a agonia final dele, foi um jornal voltado para a política. Era o ponto mais forte dele. Mas tinha a linguagem da charge fora do Pasquim, que muitas vezes frequentava suas páginas. Paulo Caruso, Chico Caruso… Angeli, Glauco e Eu estávamos mais nessa região dos Los três amigos, da história em quadrinho, trabalhando mais essa coisa da anarquia. Então, acho que charge e política volta a circular mais tarde. Eu não sei se tenho uma boa análise desse fio condutor. Primeiro porque eu estava ocupada fazendo Piratas do Tietê e eu não prestava muito atenção na charge. Segundo porque acho que deu um refluxo mesmo. A minha sensação é que, a partir do AI-5, lá em 1968, houve uma queda do qual ela dificilmente se recuperou em relação ao patamar anterior. Eu me refiro à ‘turma do Rio de Janeiro’, basicamente, que trabalhava com charge, Millor, Jaguar, Fortuna, Claudius, Ziraldo. Esse ‘padrão’ Rio de Janeiro, a ‘corte’, acho que não se recuperou. Mas em compensação, até o progresso tecnológico trouxe uma diversidade de linguagens regionais. O jornalismo regional também apresentou suas charges, seus artistas. Rio Grande do Sul é um foco importante do desenho gráfico crítico.

OS NOVOS ARTISTAS

“Um dos momentos bem chave que a gente passou recentemente foi na tal charge do Aroeira. Por ter sido objeto de um ataque censório da parte do Bolsonaro e dos seus cúmplices mais diretos, esse gesto ditatorial, absolutamente escandaloso, ele provocou uma reação que eu não consegui nem localizar onde começou. Mas quando eu vi, dezenas e dezenas de chargistas e cartunistas estavam redesenhando a charge do Aroeira e assinando ‘charge continuada’. Eu fiz isso também. Contou-se. São mais de 400 charges. Alguém inventou isso e apareceu uma legião de 450 chargistas no Brasil. Não são todos de jornal, cartunistas editoriais, muitos são de quadrinho e tudo. Mas são artistas do traço e lidam com o humor gráfico, e todos se solidarizaram de forma muito clara. Achei esse gesto lindíssimo. Serviu para a gente ter percepção de quem são os autores e autoras de hoje no Brasil. Muita gente jovem, muitas mulheres desenhando, negros. Antigamente era tudo homem, cis, branco.”

BRASIL ESTÁ PRONTO PARA A RESISTÊNCIA?

“Pronto, não está, se não a gente já tinha tirado [o que tem de ruim no País]. Acho que está se trabalhando isso. E acho que, não digo a missão, mas o que a gente tem a fazer agora é isso: extrair esse celerado do governo. Esse governo é um desastre que precisa ser removido o mais rápido possível. Acontece que o fato de ser um problema urgente, e a necessidade da rapidez, não faz com que automaticamente a nossa capacidade de resolver isso se reorganize. A gente está lidando com nossos problemas históricos também, que são a capacidade de fazer aliança, a capacidade de de costurar acordos, a capacidade de agir politicamente em momentos decisivos. Isso é um aprendizado. Não tem jeito. A gente vai aprender com o bonde andando.”

HUMOR COM TEMAS SENSÍVEIS E A CONSTRUÇÃO DE MURIEL/HUGO

“Humor mexe com tudo que tiver ao alcance. A gente lida com questões sociais, racismo, questões ambientais. A gente tem tudo para lidar. Potencialmente a gente tem na mesa tudo que acontece no País e no mundo. A nossa sensibilidade, o nosso faro e nossa vontade é que vai definir. Lidar com questão de gênero para mim foi especialmente sensível porque eu estava passando pelo processo de busca de identidade de gênero na época e eu usei um personagem meu, que era meu alter ego, que é o Hugo. Eu usava o Hugo para falar das minhas dificuldades com tecnologia, dinheiro, sexo. Esse personagem servia bem para isso. Aí nessa época eu resolvi parar de fazer personagens e piadas. Eu resolvi produzir uma mudança meio radical no meu trabalho. Mas eu deixei o Hugo porque ele tinha acabado de se travestir e chamar atenção dos leitores e leitoras para a questão de gênero. E para mim também era uma questão nova. Até hoje eu tenho perguntas e não tenho resposta para tudo. Hugo foi uma personagem que me ajudou a pensar e colocar problemas. Às vezes é no ato de fazer a história que coloco a pergunta para mim mesma.”

A VIOLÊNCIA CONTRA PESSOAS TRANS

“O Brasil continua sendo palco de ataque diário às pessoas LGBT. O conservadorismo brasileiro deixou de tentar parecer uma coisa só resmungona. É ativamente agressivo e violento esse conservadorismo brasileiro. Uma boa parte é dirigida às pessoas trans. É inaceitável para essa cabeça fascista que esse movimento de gêneros seja realizado. O sujeito tem uma rigidez em relação a essa questão que não se limita à pessoa trans. É também dirigida à mulher. A questão de gênero que a gente tenta levantar, nas escolas inclusive, é para a gente discutir as relações de gênero, violência doméstica, desigualdade de gênero. Ao mesmo tempo, a gente tem conquistado espaços e vivendo essa duplicidade. Por um lado conquistamos espaços, nos reunimos e nos apoiamos, por outro lado, o conservadorismo se arma e vem para cima disso.”

“Meu movimento [de gênero] foi muito facilitado pela minha situação social de pessoa branca, de classe média, profissional com situação tranquila e bem aceita. Então, o movimento que fiz foi bastante confortável por causa disso tudo. Sempre fui uma pessoa conhecida. Não precisei explicar muito mais que isso, precisei explicar porque estava fazendo esse movimento de gênero. Mas a minha condição social me deixou bem protegida. Esse é um País também que dificulta a coisa para quem está fora desse circuito.”

“A violência que se exerce contra a pessoa trans tem a cor da violência que se exerce contra os pobres, contra os negros, não é só sobre o fato da pessoa ser trans. É o fato da pessoa ser trans, pobre e negra, por exemplo, que aumenta a vulnerabilidade dela. Não é que eu não corri risco. Algum risco, sim, corri, mas o equipamento que a sociedade brasileira, truculenta como é, ainda permite que as pessoas brancas tenham, me permitiu fazer isso. Boa parte da militância trans tem a ver com aumentar esse espaço de reconhecimento das pessoas trans, travestis, não binárias… A minha ideia é aumentar esse reconhecimento justamente para diminuir o perigo que as pessoas trans correm.”

 

Redação

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