As reservas internacionais e os mitos da ortodoxia, por Ricardo Carneiro e Guilherme Mello

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Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Do Economia Contemporânea

Os mitos da ortodoxia (III) “As reservas internacionais não devem ser usadas para financiar investimentos domésticos.”
 
por Ricardo Carneiro e Guilherme Mello

A publicação recente pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Estudo “Reservas internacionais do Brasil: evolução, nível adequado e custo de carregamento” (https://www12.senado.leg.br/ifi/EstudosEspeciaisIFIn1ReservasInternacionais.pdf), permite retomar com mais informações e segurança as propostas de utilização de fração das reservas internacionais, para financiar o investimento, no plano doméstico. A negação dessa possibilidade e a aquiescência para o seu uso apenas no pré-pagamento da dívida pública doméstica, como aliás advoga o trabalho citado, constitui um dos mitos correntes da ortodoxia, voltada a analisar apenas o impacto fiscal do carregamento das reservas cambiais. Seu principal problema é a exclusão de alternativas para o uso do excedente das reservas que poderiam auxiliar mais decididamente o crescimento econômico no que tange a um tema crucial: o financiamento do investimento.

Há dois aspectos distintos a serem discutidos no tema: o quanto e o como, ambos sujeitos a controvérsias. No que tange ao primeiro, o trabalho citado realiza um exame minucioso (ver quadro abaixo) sobre qual seria o nível seguro do montante das reservas. A conclusão é bastante sugestiva: mesmo utilizando-se o critério mais restritivo, o Assessing Reserve Adequacy (ARA) do FMI, no qual se combinam variáveis de fluxos (perda potencial de exportações) e estoques (fugas potenciais de capitais a partir dos meios de pagamentos ampliados, dívida e aplicações de curto prazo) e estabelecendo um multiplicador de 1,5 sobre este valor (como buffer adicional), seria possível encontrar que 10% das reservas líquidas são dispensáveis ou excessivas.
 
Utilizando um o conceito particular de reservas, o qual deduz das reservas no conceito de liquidez, uma estimativa nocional do valor em dólar dos swaps cambiais, chega-se a um montante de reservas líquidas de US$ 355 bilhões. Como apontado acima, usando o critério mais duro de requisito de reservas, o ARA 150% do FMI, no valor de US$ 330 bilhões, obtém-se um excedente de reservas de US$ 25 bilhões. Esses recursos seriam inteiramente dispensáveis, devendo ter uso alternativo em razão do seu custo de carregamento, cuja redução seria um objetivo importante da política econômica. A título de exemplo, de acordo com o estudo da IFI o custo de carregamento do total das reservas em 2017, deverá se situar em torno de 2% do PIB, um número equivalente ao do déficit primário.
 
Na discussão de como usar esses recursos excedentes, o trabalho do IFI retoma o mito ortodoxo que propõe uma dicotomia para o uso dos recursos: incorporar ao orçamento e gastá-los ou pré-pagar a dívida pública doméstica. Não há dúvida de que o segundo uso seria mais racional, a despeito de seu impacto relativamente pequeno. Mas, há outra alternativa que, além de reduzir o custo de carregamento das reservas, não tem impacto sobre o montante das dívidas bruta ou líquida, além de ajudar o crescimento: a constituição de um fundo para financiamento da infraestrutura.
 
O fundo proposto acima, de propriedade do Tesouro Nacional, da mesma forma que as reservas, seria constituído incialmente pelas reservas excedentes, que seriam convertidas progressivamente em reais para subscrição de títulos emitidos pelo setor privado, os denominados “debêntures de infraestrutura”. Esses títulos, emitidos pelo setor privado (no caso, os concessionários dos serviços públicos) constituiriam um ativo seguro, pois além de lastreados no fluxo de caixa dos projetos, deveriam contar com garantia adicional de fundos garantidores. A sua taxa de retorno, por sua vez, poderia estar ligeiramente acima da taxa SELIC. Inicialmente instituído com caráter fechado, este fundo poderia ter, no futuro, suas cotas negociadas com o público, permitindo inclusive a saída do Tesouro.
 
Há uma série de vantagens no arranjo proposto acima dentre os quais:
 
a) Um programa de financiamento de infraestrutura com um funding de 50% (BNDES); 30% (Debêntures de infraestrutura subscritos pelo novo fundo) e 20% de capital próprio, poderia financiar obras no valor de US$ 83 bilhões ou R$ 280 bilhões;
 
b) O custo de rolagem da dívida pública como um todo seria reduzido, em razão da substituição de parte das reservas internacionais pelos ativos do fundo, com rentabilidade substancialmente maior. Ressalte-se que essa troca muda apenas a composição dos ativos públicos sem alterar os montantes de dívida bruta e líquida;
 
c) Além de dinamizar o crescimento por meio do investimento num setor chave, essa alternativa contribui para o desenvolvimento do mercado de capitais no país, preparando o maior envolvimento do setor privado no financiamento de longo prazo.
 
Em síntese, ao rejeitar o mito ortodoxo da inadequação do uso das reservas para outro uso que não o pré-pagamento da dívida pública doméstica, a proposta abre a possibilidade de financiar a infraestrutura no Brasil, combinando critérios de robustez macroeconômica, com um funding de custo e prazo adequados para viabilizar a ampliação do investimento e do envolvimento do setor privado na área.
 
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