Assíntotas – Fernando Toledo

SEXTA-FEIRA, JUNHO 24, 2005

Fernando Toledo

Assíntotas

Simplicidade e complexidade são dois termos que, embora se assemelhem a conceitos paradoxais, podem coexistir perfeitamente. A singela beleza de uma rosa, de um pôr-do-sol, de uma única das milhões e milhões de ondas que se quebram em todas as praias e arrecifes do mundo neste momento, traz em si a carga de todo um universo, com suas leis e miríades de inter-relações que parecem, a olho nu, afetar o mecanismo mesmo destas leis. Como compreender o motivo pelo qual um único espermatozóide, entre milhões numa corrida louca; entre milhões de corridas loucas perpetradas, neste mesmo instante, em úteros de todo o mundo, possa fecundar um único óvulo e gerar ora um Marx, ora um Goebbels, ora um Joyce e ora um Paulo Coelho? Aos olhos da régua de um metro, o metro em si é um mistério insolúvel – como estabelecer parâmetros para a compreensão de nossa própria compreensão? Daí a profundidade das pequenas coisas, imperceptíveis na maioria do tempo por aqueles mergulhados, embebidos e parte mesmo destas pequenas coisas.

Os seres humanos, estes fenômenos contados hoje aos bilhões e, contudo únicos em si, já foram, um dia, em sua imensa maioria, extremamente simples e extremamente complexos. Simples porque o alcance de seu dom de transformação da natureza era limitado por condições até mesmo geográficas, no tocante à disseminação e troca de informações acerca da transformação da natureza: ou seja, transformavam o que lhes era necessário e compreensível em determinado instante, sob determinada condição local, e – humanos que eram – transmitiam estas informações entre si, estabelecendo pois o que se chama de Cultura: conjunto de coisas que lhe permitem saber de onde veio, o que é e, mesmo, ter um vislumbre – por meio do conhecimento do conjunto – de onde se poderá chegar. A Cultura é o Passado presente no Futuro e o Futuro que está em potencial no Passado. Desta forma, a “simplicidade” citada lá em cima, funcional para certo espaço geo-social, também não se afigura assim como tão “simples”, apenas como aparentemente, a nossos olhos desdenhosos de hoje, como mais tosca.

Reunidos ao redor de fogueiras, seres humanos se reuniam e trocavam experiências. Posteriormente, chegavam os barcos de terras distantes, não interessa se fenícios ou cretas, trazendo novas descobertas, novos conhecimentos. Mais tarde, barcos de regiões mais remotas e geograficamente distantes se aconchegaram, assim como caravanas que nem mesmo sabiam a que ponto de destinavam. E as narrativas nasciam, passadas de ser humano para ser humano, fosse através da tradição puramente oral, ou na forma dos escritos que viriam a constituir a História ou a Mitologia. Sempre de homem para homem, mesmo quando nasceram os impérios e criou-se um distanciamento entre indivíduo e liderança. Pois que a informação servia a um fim, era apenas um meio, e não uma imensa máquina a servir a si mesma, como que a perpetuar-se por geração espontânea.

Pode-se discutir em que ponto houve esta ruptura: com o advento da imprensa? Discordo. A imprensa em si apenas ampliou o alcance dos trovadores. A informação continuava a ter caráter humano, mesmo quando alegoria (tal qual como nos ditos escritos sagrados de todas as religiões): ainda trazia em si o gérmen de toda uma espécie à parte, a única poder se organizar e transformar, de forma efetiva, a natureza. Talvez o ponto de mutação tenha se dado quando o conceito de natureza se esvaziou, ou seja, a partir da segunda metade do século XX.

Não se trata de atirar a culpa, através de uma leitura rasteira de Adorno, na reprodutibilidade. Esta, em si, nada mais é que o conceito de imprensa aplicado a todas as formas de Saber e de Cultura. Por si só, é uma reles ferramenta, útil como todas as ferramentas. O problema é quando a reprodutibilidade ganha vida autônoma, e engole irremediavelmente o objeto reproduzido.

Quando os modernistas destruíam discursos estéticos, poder-se-ia dizer que, em uma primeira instância, tratava-se de uma iconoclastia pura e simples: destruir por destruir, e aqui cito o caso do artista do grupo de André Breton que, em uma palestra, elaborou uma pintura a giz num quadro-negro para em seguida apagá-la. Acontece que tal atitude dadaísta revelou-se uma canibal de si mesma, pois, esvaziada completamente do discurso, o que seria a obra de Arte? E os modernistas desejavam, sim, criar. Eram artistas legítimos. Por isso, com raras exceções, todos migraram para um processo em que, aplicando-se as conquistas obtidas a partir da iconoclastia, construíram-se obras de Arte verdadeiramente belas. Exemplos crassos são os de Mattisse, Breton, e, até mesmo, Picasso, que não era surrealista estrito.

Tal só foi possível porque não se buscava a extinção, a anulação do princípio humano, mas sim uma oposição entre visões do mundo, assim do tipo “os malucos contra os caretas”. Na época, funcionou.

No entanto, após a década de cinqüenta, o discurso modernista já apresentava sinais de cansaço, e surgiram duas vertentes: uma buscou uma volta ao passado (vide Stravinski em sua fase neoclássica, e os neo-sonetistas), outra radicalizou e transformou o meio no fim, extirpando o fator “mensagem” da equação. Nada precisava significar nada, e o industrial, o ready-made duchampsiano (apesar dos propósitos do Duchamps serem bem diferentes) tomou conta. Tudo poderia ser Arte, tudo poderia ser Cultura – o que equivale a dizer que o Nada também o poderia ser. E o Nada, por ser mais fácil de produzir, mais acessível à mediocridade, apoderou-se da premissa e fez sua entrada triunfal e multicolorida. Nada mais de oposições: como não há conteúdo no discurso, ou, mesmo, como abole-se o conceito de discurso, todas as justaposições são possíveis, resultando naquilo que o teórico Jair Ferreira dos Santos chama de zero patafísico: a extinção do “ou” e a ascensão do “e”. Não tem mais sentido ser ateu ou religioso: pode-se ser agnóstico e sacrificar morangos em altares no canto de apartamentos; pode-se criar uma nova ordem religiosa altamente cristã que permita o canibalismo e o homossexualismo; pode-se autoproclamar criptocomunista e ter um bom cargo na empresa do papai. Toda esta série de “e”s conduz ao signo sem significado. E tal visão do mundo tornou-se massificadora por meio de meios como a televisão, internet, e sabe-se mais que bicho vai aparecer por aí.

A televisão é signo puro: suas imagens e sons não têm relação real com o significante nem transmitem algum significado, na maneira como é utilizada hoje. De meio de comunicação torna-se um obstáculo para a mesma, isolando pessoas mesmo quando estas sentam-se lado a lado. Somente alguém embotado por ela pode ter uma atitude como é muito comum nos dias correntes: receber amigos em frente à telinha e permanecerem, anfitriões e visitantes, degustando as pífias aventuras da fulaninha de biquíni por entre as passarelas da Barra da Tijuca, enquanto a mãe da fulaninha, manicure de subúrbio, aproveita os finais-de-semana vendendo alface na feira – claro, até o dia em que Rodolfo Leopoldo, rico industrial de meia-idade, frustrado em seu primeiro casamento, descobre a verdadeira beleza interior (aquela localizada entre as dobras do joelho e o colo do útero, exacerbada pelos hábeis maquiadores globais) da pobre feirante, e a pede em casamento. E todas estas aventuras e desventuras ocorridas em reinos completamente virtuais, e absurdamente distantes do universo que rodeia a dita roda de amigos reunida em torno do aparelho, os absorve de tal maneira que esquecem-se mesmo que, como amigos, estariam reunidos para darem-se entre si como humanos, e não recolherem-se em esferas tão consistentes quanto bolas de sabão, apenas para usar um clichê bem ao gosto dos redatores do meio televisivo. E a internet radicaliza ainda mais, excluindo mesmo a roda em torno do ícone na sala, multiplicando-se em ícones customizados distantes entre si, individualizados ao extremo, em seus milhões de pontos mundo afora. Perpetra-se a ilusão do vizinho em detrimento da capacidade de aproximar-se de forma efetiva do mesmo.

O mesmo pode ser dito quanto a religiões e seitas que pululam como larvas de mosquito por aí: em vez de se procurar o reencontrar de um conteúdo comum, quase que atávico, a todo ser humano personalizam-se as vertentes. Tanto de pode seguir o Budismo Aramaico da Martinica quanto o Protestantismo Evangélico da Escritura das Sagradas Almôndegas ao Sugo. Tudo vale, desde que seja “mais a ver com meu eu, sabe, um negócio que fala mais dentro de mim” – o importante é a primeira pessoa, e se esta for do singular, melhor ainda. E exemplos poderiam ser dados em termos de profissões, gostos gastronômicos (“O quê? Você nunca provou meu “Filet a Mim Mesmo”?) etc. E, no fundo desta ilusão, pensamos agir como exceções no rebanho, quando na verdade tornamo-nos mais e mais impessoais e vazios. Digerimos engodos imaginando estarmos nos tornando a cada dia mais únicos, o que é falso. Acabamos por nos assemelhar às Marylins de Andy Warhol, não passando mesmo de silk-screens imperfeitos de modelos inexistentes na Realidade.

É difícil saber o que gerou o que, mas pode-se ter certeza que os fatores citados são multiplicadores, ferozes extintores em massa das antigas fogueiras e lampiões: o que nos afasta, cria muros e faz com que, a cada dia, o conceito do humano se torne cada vez mais forma e menos conteúdo. E caminhando, como retas idênticas, contudo assíntotas, rumo a um Nada que pode ser tudo, menos inócuo, à sua chegada.

Fernando Toledo

Eu – Não existe coisa mais sofrida que a ausência de outros seres, as minhas são irreflexões por mais  do equívoco, assim sempre paira uma interrogação se, distancia e nesta lacuna entre os mundos. A realimentação em si do corpo e a razão nos pergunta literalmente como se faz, escolhemos e lemos livros, foi. O conviver simples nas feiras de ruas semanais e dos encontros sem presa, de um teatro ao vivo com peça nova onde as cenas passadas não serão jamais vistas. Fernando foi confusão complexo mais absoluto. Mais uma das suas lembranças.

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