Delações premiadas: Brasil atual x Roma antiga

Em texto publicado no GGN, o jornalista Luis Nassif questiona os resultados do primeiro experimento da delação premiada:

http://www.jornalggn.com.br/noticia/em-seu-primeiro-experimento-delacao-premiada-virou-arma-politica

Nassif tem toda razão. Justamente por isto, gostaria de resgatar aqui alguns outros experimentos de delação premiada.

Os conflitos em Roma eram permanentes. Quando havia fartura, os patrícios lutavam para aumentar seus privilégios ou para conservá-los e plebe buscava adquirir direitos e espaço político. Diante da escassez os representantes das duas ordens acusaram-se mutuamente, cada qual se dizendo irresponsável pela crise.

Na oportunidade, acreditando que teria acesso ao poder absoluto Espúrio Mélio efetuou “…uma compra de trigo na Etrúria às suas próprias custas – o que inutilizou, creio eu, as providências do Estado para baixar os preços – e começou a distribuí-lo ao povo. Com essas dádivas conquistou a plebe e por onde passava todos os olhares o acompanhavam, elevando-o acima da condição de cidadão privado.” (Ab Urbe Condita Libri, Tito Lívio) Entretanto, sua intenção declarada de se tornar rei despertou a ira dos patrícios, que não aceitaram submeter-se a um igual. Espúrio Mélio chegou a ter um arsenal em casa, mas a conspiração foi abortada antes do golpe e seu mentor acabou citado e morto por Ahala Servílio.

Esta tentativa de golpe de estado pode não ter dado certo por dois motivos. Naquela época Roma ainda não tinha um exército regular. Assim, Espúrio Mélio não tinha como domesticar Roma militarmente em razão da lealdade adquirida ou comprada dos soldados como fizeram posteriormente quase todos os césares. Por outro lado, desde o fim da realeza as principais famílias patrícias tinham se acostumado a governar a cidade e não cederiam seu poder e privilégios a não ser que a coação fosse realmente irresistível. De qualquer maneira esta tentativa de golpe demonstra como a República era frágil. Diante das condições propícias, existência de um exército regular comandado por um líder querido ou generoso, os soldados nomeariam um imperador que poderia ignorar os patrícios e se apoiar exclusivamente na plebe mediante a política do pão e circo.

Alertados do risco, os patrícios tomaram providências para fazer de Espúrio Mélio um exemplo. O cônsul Lúcio Qüincio decidiu que “…fosse reduzido a pó o telhado e as paredes que haviam abrigado semelhante loucura e confiscados os bens contaminados por terem servido à compra da realeza. Por esse motivo, ordenara aos questores que vendessem esses bens e recolhessem a quantia ao erário público.”  (Ab Urbe Condita Libri, Tito Lívio). A pena imposta Espúrio, ao seu patrimônio e à sua memória foi tão severa e permanente que sobreviveu até mesmo ao Império Romano, pois seu nome se tornou um adjetivo que designa algo ilegítimo e ilegal.

Num segundo momento, contudo, uma delação fundada na inveja e no despeito quase causou a ruína de Roma. O caso se deu após a derrota dos gauleses liderada por Camilo. 

Consumido de inveja por ver seu rival coberto de glórias e honrarias, Mânlio Capitolino delatou Camilo ao povo. Sem se preocupar em provar o que dizia, Mânlio espalhou entre os cidadãos romanos a notícia de que Camilo e outros patrícios haviam dividido o tesouro público supostamente usado para resgatar a cidade dos gauleses (aos quais  o tesouro não teria sido entregue). 

Exigia Mânlio Capitolino que estes tesouros fossem devolvidos a Roma por Camilo e seus comparsas para que pudesse ser utilizado em benefício do povo. Feito isto, o povo poderia pagar menos impostos. O conflito entre o Senado e o povo acarretou a nomeação de um ditador e este citou Mânlio para publicamente sustentar e provar suas acusações. O incidente acabou sendo resolvido mediante a prisão de Mânlio, pois confrontado em público ele não foi capaz de provar ao ditador a veracidade da acusação que havia feito contra Camilo e outros patrícios.

Este caso narrado por Tito Lívio (Ab Urbe Condita Libri) é tão significativo que foi resgatado e comentado por Maquiavel em uma de suas obras. Diz Maquiavel que “Este episódio mostra claramente que a calúnia deve ser detestada, nas cidades que vivem sob o império da liberdade – e como é importante criar instituições capazes de reprimi-la.” (Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, Nicolau Maquiavel, editora UNB, 3ª edição, 1994, p. 45).

As delações premiadas em curso estão salvando o Brasil, dizem alguns. Contudo, o que nós estamos vendo é exatamente o oposto. Afinal, o Direito tem sido corrompido por promotores e juízes com ajuda da imprensa.

Para se salvar dos crimes que cometeram, alguns delatores amplificam a onda de anti-petismo diariamente disseminada por tucanos e jornalistas inconformados com a vitória de Dilma Rousseff. Alguns delatores tem sido transformados em heróis de telenovelas jornalísticas e policialescas. Pessoas caluniadas por eles tem sido condenadas por presunções absurdas (caso de José Dirceu), presas sem motivo algum (caso de Marice Corrêa de Lima, cunhada de um ex-tesoureiro do PT ) ou conduzidas a prestar depoimento coercitivamente sem qualquer necessidade jurídica (caso de Lula). Algumas delações são, no entanto, ignoradas ou atacadas pela imprensa. Réus em potencial tem sido previamente inocentados por promotores, juízes e jornalistas apesar de serem mencionados várias vezes por delatores (caso de Aécio Neves).

O Brasil já foi chamado de a última flor do Lácio. Portanto, impossível não perguntar que República romana nós desejamos para o Brasil? Aquela que não existiu (em que Espúrio Melio e Mânlio Capitolino conseguiram o que desejavam) ou a que realmente floresceu (após proteger o herói Camilo)?   

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