Entre fantasmas e ratos

Ainda que não tivesse horário marcado, sequer compromisso, saio atrasado de casa, vou a passos rápidos para o metrô. Quase chegando na estação cruzo com um homem que me lembra o Valdeni. A viagem é curta, duas estações, mas anda arrastada em meio à lembrança da angústia que me tomou ao saber da notícia: quantos dias passei fugindo dessa imagem, querendo pensar em outra coisa mas não conseguia parar de imaginar ele se atirando na frente do trem, de mochila, camisa vermelha (do Brizola?) e chinelo rider (hoje ele estaria na moda)? Vai, vai ser gauche na vida – num mundo onde quem é diferente sofre bullying. Foi em 2004, janeiro. Não sei quanto tempo depois, Paulo comentou que o que o surpreendia não era uma pessoa se jogar na frente trem, era só uma fazê-lo. Deveras. Mais surpreso ainda quando Misson me informou que se suicidava uma pessoa cada duas semanas no metrô – eu imaginava a cada dois dias. Pior ter que ouvir de uma paquera que Valdeni era fraco, por não suportar calado a humilhação desde longa data sofrida – fácil ser dito por uma evangélica que se escora num narcisismo coletivo tosco. Desço do trem e antes de sair da estação passa por mim um homem que lembra outro amigo, Rodrigo. Não quis saber como foi e tenho dificuldade para lembrar o ano em que se matou. 2012? Não, 2012 acho que foi o Márcio, se atirando de um prédio. 2013? 2014? Entro no restaurante para almoçar, o mesmo onde escrevi minha última crônica paulistana de 2012. Faz calor e o clima é seco – naquele dia de dezembro talvez fizesse calor, mas a chuva amainava o desconforto. Eu estava com um toque melancólico então, apesar da vida nova que São Paulo representava. Valdeni não estava mais, meu avô havia partido há dois meses. Mas ainda estava Rodrigo – não sei se em 2012 ou 2013 havia trocado vários e-mails com ele, que tinha tentado suicídio pela primeira vez; “só quer chamar a atenção”, acusou um amigo em comum -, estava meu pai, estava Misson. Havia um quê infantil de descobrir o mundo – São Paulo foi um mundo novo – com olhos ávidos e brilhantes de tantas novidades, havia um quê adolescente de achar o futuro ainda prenhe de todos os caminhos – e eu bem que tentei, sempre acertando a trave, iluminação, dança, aula no ensino médio, doutorado, marcenaria. Talvez essa melancolia me pegasse aquela época, não sei, por ter levado tanto tempo, depois de ter deixado a cada de meus pais, para achar uma cidade onde finalmente me sentia em casa; pelos amores que aquele ano me deu, mas logo tirou – a morte então tinha antes um sentido figurado e era positivo, abria espaço para o novo. Agora a melancolia que me abate é desse futuro que se estreitou, nas amizades perdidas – não para o tempo, mas para a morte, sem qualquer conotação figurada. Ao menos quesito amores, nunca estive tão bem, com uma pessoa como a que agora compartilho meus momentos. Pela manhã havia recebido uma mensagem de uma  mulher que estava lendo meu livro sobre a perda da Misson. As mortes morridas doem mais que as “matadas”, mas um amigo ou conhecido se suicidando por ano, com a regularidade de Cronos, também dói. A crônica daquele restaurante, em 2012, eu escrevi; houve uma outra, anotei os pontos de minha caminhada por São Paulo em um papel, mas nunca a transformei em texto. Era também melancólica, e eu temia o “arcaísmo tecnicamente equipado” que vira no Viaduto do Chá, onde jogadoras de búzios em seus banquinhos, mesas e conchas eram soterradas pelos alto-falantes de pregadores evangélicos anunciando o inferno a todos que não fossem como ele – alguns pastores e políticos anunciavam a morte breve para quem eles não gostavam (ou gostavam demais?). Saio do restaurante, receoso de passar por algum outro fantasma. Meu destino é próximo à antiga rua dos Turcos, a 25 de março. A rua Florêncio de Abreu sempre me traz certo deslumbre, fico tentando imaginar o que não era ali no início do século passado, casas chiques no caminho entre a estação da Luz e o centro da cidade. Algumas casas estão bem conservadas, outras, abandonadas, à espera do tempo derrubá-las para poder entregar o terreno à especulação imobiliária – como não é um lugar da modinha, como a Paulista, não há nenhuma comoção com esse desdém histórico. Defronte a uma dessas casas moribundas está sentado um morador de rua, ao lado dele há uma gaiola. De longe não consigo identificar que bichos traz preso, parecem duas ou três pombas rolas – e me questiono onde teria conseguido, não me lembro de ver desses pássaros em São Paulo. Pouco antes de passar por ele, mexe na gaiola, para melhor ajeitar a comida, três ratos ocres se movimentam no exíguo espaço. Sinto um aperto no estômago – no tal do plexo solar -, uma nuvem negra se põe sobre mim. Certamente muitos veriam ali quatro ratos. Eu vejo uma sociedade doente. Um homem em companhia de três ratos. Três ratos fazendo companhia a uma pessoa, que ajeita com cuidado a comida deles. Será que se sente irmanado dos ratos? Conversa com eles quando tem alguma ideia ou vê algo que precisa compartilhar com alguém? Quanto de afeto dedica àqueles bichos – e imagina ser a recíproca verdadeira -, afeto negado por outras pessoas? Talvez tenha sido uma escolha deliberada daquele homem e ele seja feliz – e eu não consigo captar isso da minha estreita visão de mundo classe média-pequeno burguesa. Talvez seja uma cena banal, e eu faço um dramalhão onde há apenas mais do mesmo, a cidade e aquilo que não queríamos que existisse e por isso viramos o rosto. O que sei é que, em meio a recordações dolorosas e melancólicas, o homem e seus três ratos rasgam feito navalha meu estômago, eu me equilibro para parecer uma pessoa normal enquanto caminho pela cidade, até chegar em casa e tentar desabafar de alguma forma – a forma de um texto.

19 de julho de 2018

PS: A PM passa correndo e cantando enquanto escrevo esta crônica. “Subi o morro e tomei um tiro/ mas quem morreu foi o bandido”. Um homem alimentando seus ratos tem mais dignidade.

Redação

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