ENTREVISTA: A trajetória de Raquel Kochhann, a capitã da seleção de Rugby que é porta-bandeira do Brasil em Paris

Dolores Guerra
Dolores Guerra é formada em Letras pela USP, foi professora de idiomas e tradutora-intérprete entre Brasil e México por 10 anos, e atualmente transita de carreira, estudando Jornalismo em São Paulo. Colabora com veículos especializados em geopolítica, e é estagiária do Jornal GGN desde março de 2014.
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Após 20 meses de afastamento ao tratar o câncer de mama, Raquel Kochhann lidera a equipe brasileira nos Jogos Olímpicos Paris 2024

Após 20 meses de afastamento ao tratar o câncer de mama, Raquel Kochhann lidera a equipe brasileira nos Jogos Olímpicos Paris 2024.
Foto: Divulgação

Em sua terceira olimpíada, a capitã da seleção brasileira de Rugby, Raquel Kochhann, foi encarregada pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB) a ser porta-bandeira na Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos em Paris 2024, nesta sexta (26), ao lado do canoísta Isaquias Queiroz. Esta será a primeira edição dos jogos em que a delegação brasileira conta com a maioria de atletas femininas. 

As brasileiras do Rugby jogam contra a França às 12h, e contra os Estados Unidos às 15h, no domingo (28), e enfrentam as japonesas às 10h de segunda (29). 

Em entrevista concedida no ano passado à repórter Dolores Guerra, um pouco antes de receber o diagnóstico de câncer de mama que conseguiu superar para retomar a carreira, Raquel conta um pouco sobre sua trajetória dentro do esporte. 

No interior de Santa Catarina, uma menina não se cansava de expressar o mesmo desejo: defender a camisa da seleção brasileira. Ela não tem lembranças de sua ambição ser refutada pelos adultos da sala. “Sabe como é, mãe não vai acabar com o sonho de criança”, diz Raquel entre risos.

Talvez, caso seu plano fosse algo menos ambicioso, não teria dado certo. “Nenhum sonho é grande demais”, afirma aquela que é uma atleta que se permitiu experimentar e encontrou-se ao percorrer caminhos desconhecidos. Quem poderia imaginar que, depois de grande, seria no rugby que seu sonho se tornaria realidade?

Convocada para a seleção em 2010, ela foi medalha de ouro nos Jogos Sul-Americanos (2014), medalha de bronze no Pan-americano (2015), participou de duas Olimpíadas, de uma Copa do Mundo de Rugby e teve uma passagem pelo RC Lons da França. Hoje conversamos com a Yara das Yaras, apelido da seleção brasileira feminina de Rugby, a atual capitã da equipe, Raquel Kochhann.

As pessoas só veem a parte boa”

Raquel não hesita em demonstrar que os bons resultados são frutos de muito trabalho: “ser atleta não é fácil, não é mil maravilhas, a parte de se preparar não é fácil. Tem o teu corpo que tá ali, que pode se machucar e ficar um tempo afastado”. Diferente do que se pode concluir pelos meios de comunicação e redes sociais, por onde as pessoas “só veem a parte boa”, a disciplina é o que orienta a vida destas atletas.

Kochhann revelou como é a rotina de uma jogadora da seleção: o treinamento ocorre de segunda a sexta, intercalando entre treinos de alta e baixa intensidade, a depender da semana e da fase de preparação. Além disso, existem as sessões de academia e condicionamento físico, podendo ser complementado com treinos extras segundo as necessidades individuais.

“De noite eu estudo”, disse a catarinense que trancou a graduação no último semestre na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) para ter a chance de disputar o tão sonhado espaço na seleção. A oportunidade de dar continuidade à sua formação acadêmica surgiu através de uma parceria com a Faculdade Estácio de Sá, que disponibiliza bolsas integrais às jogadoras da equipe.“Tentei várias faculdades aqui em São Paulo para fazer as matérias que faltavam, mas não aceitaram”, explicou a veterana do Rugby Seven. Após pedir aproveitamento de matérias, Raquel Kochhann conquistou mais um título: o de bacharel em Educação Física. “Me formei em 2019 no bacharel e na licenciatura em 2022. Pretendo entrar na pós no próximo semestre”, comentou.

Quando lhe pergunto se ela não teve medo em tomar a decisão arriscada de deixar tudo para trás em busca de uma promessa que poderia não se realizar, ela não duvidou em dizer que se for para ir atrás de um sonho, a gente “sempre dá um jeito”. Afirmou que recebeu muito apoio de sua família, sabendo que teria para onde voltar caso o plano não vingasse. “Eu sabia que eu tinha um porto seguro”, completou Kochhann.

Já foi muito pior, mas pode ser muito melhor”

Após mais de uma década de intenso investimento na consolidação do Rugby no Brasil, a modalidade cumpriu com o resultado apontado pela pesquisa “Muito Além do Futebol – Estudo sobre esportes no Brasil” de 2011, sobre ser o esporte que mais cresceria no país. Com apenas um ano de existência, a Confederação Brasileira de Rugby (CBRu) já contava com 10 mil federados e cerca de 100 mil seguidores em quase todos os estados. Inclusive, a seleção feminina já era hexacampeã sul-americana.

Em 2018, houve um salto para 60 mil praticantes e 11 mil federados. Em termos de faturamento, naquele mesmo ano houve uma pesquisa do Ibope/Repucom que demonstrou que a CBRu havia crescido de 30 mil reais no ano de sua fundação para 20 milhões.

Assim como Raquel, muitas pessoas se encontraram no Rugby entre as décadas de 2000 e 2010. Como mencionava a pesquisa da Deloitte, a expansão do esporte que mais crescia no país se devia principalmente através de amigos. “Sempre fui do esporte e não tinha ideia do que era o Rugby, não era algo que eu tinha acesso”, confessa. Por isso, a capitã da seleção brasileira não vê problemas em apresentar seu esporte uma e outra vez, pois, para ela, “sempre é um privilégio falar de um esporte tão incrível”. Ela afirma ter vídeos no celular para mostrar para os curiosos, tentando aproximá-los “de um jeito divertido e cativante”.

Entre os desafios para massificar o rugby está o fato de ser um esporte de contato, o que gera o receio de ser um esporte “violento”. Neste sentido, Raquel nos conta que a saída é cativar a partir do grande diferencial do Rugby: os valores.

Acabei encontrando uma segunda família”

Em sua transição do futebol para o Rugby, Raquel não só renovou sua esperança em poder ser uma atleta profissional como também se encantou com o ambiente. “Nunca gostei da forma que o árbitro era tratado, que os colegas eram tratados, me incomodava a falta de respeito”.

O respeito mencionado por Raquel não se limita às partidas, mas também ao que acontece logo ao final de cada uma delas. O chamado “terceiro tempo” é um momento de confraternização entre as duas equipes que acabaram de se enfrentar.

Quem acredita que o “Terceiro tempo” acontece apenas em torneios amadores, se engana. Raquel nos conta que em todos os níveis ele acontece, ainda que de maneiras distintas. Por exemplo, em Hong Kong, as anfitriãs organizaram atividades interativas que incluíam concurso de dança e pagar prendas, enquanto que nas Olimpíadas do Rio, a convivência promovida foi tipicamente brasileira, com direito a samba e churrasquinho. A prática divertida oferece a oportunidade única de intercâmbio saudável entre as equipes.

O Rugby também é um esporte inclusivo a respeito do biotipo de seus praticantes: todos são muito bem-vindos. Raquel comenta que, quando ainda jogava futebol “era bem gordinha” e, mesmo sendo uma vantagem em campo, “a galera zoava, mas no Rugby foi o contrário, era um ponto positivo”. A diversidade de biotipos também se aplica à seleção brasileira, cuja estatura é mais baixa que suas concorrentes internacionais, o que facilita na agilidade perto do chão e na disputa de bola por baixo.
A menina que almejava representar o Brasil pelo esporte cresceu e se tornou um dos maiores nomes do Rugby nacional, participando de alguns dos mais importantes eventos esportivos como as Olimpíadas do Rio (2016) e de Tóquio (2020).

As Yaras vão às Olimpíadas

As Olimpíadas do Rio marcaram o retorno do Rugby aos Jogos Olímpicos após um hiato de 92 anos. Poucos torcedores brasileiros realmente conheciam a modalidade, mas acabaram se interessando em acompanhar as partidas pelo clima olímpico, logo, esta era a chance de “mostrar para os brasileiros que existem outros esportes, não só o futebol”, como afirma Raquel entusiasmada.
A seleção feminina não conseguiu garantir uma vaga nas quartas de final e terminou em 9 lugar. Ainda assim, as Yaras conseguiram um lugar no Mundial de Rugby Sevens Feminino. Com três vitórias e duas derrotas, a equipe terminou eliminada pelo saldo negativo.

Por outro lado, Tóquio foi “algo meio complexo de explicar”. Muitos foram os fatores que prejudicaram o evento, que foi profundamente afetado pela pandemia de COVID-19. Devido à emergência sanitária, as equipes não sabiam se realmente ocorreria ou sob quais condições.

“O próprio clima da Olimpíada: não tinha torcida, não tinha pessoa na rua, não tinha confraternização entre os times, era tudo muito limitado”, relembra Raquel. “Jogamos num estádio completamente vazio, tu escutava o eco da tua voz”.

Se os obstáculos externos eram enormes, os desafios dentro da equipe brasileira tampouco eram simples. Com a aposentadoria de Baby Futuro, Raquel Rochhann assume a posição de capitã de um grupo muito heterogêneo que teve uma preparação muito curta. Individualmente, Raquel precisou se recuperar de uma cirurgia na coluna em quatro meses para conseguir dar seguimento às suas atividades.

Raquel Kochhann realizou o sonho de infância de jogar em uma seleção “com a amarelinha”. Viajou pelo mundo, conheceu pessoas, se desenvolveu como atleta e pessoa. Quando perguntada sobre qual é seu sonho esportivo hoje, ela não teve dúvida: “o meu objetivo é deixar o Rugby um lugar melhor do que eu encontrei”. Raquel se superou com o Rugby e ele evoluiu com ela, conquistando uma grande inspiração e professora para as novas gerações. Seu empenho em trabalhar pelo desenvolvimento do esporte, construindo um sonho coletivo, talvez seja uma das maiores provas das transformações que o Rugby pode fazer no mundo.  

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