Governo federal adotou “estratégias erradas” na Saúde desde o começo da pandemia, diz epidemiologista

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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"A pandemia foi subestimada" na gestão Mandetta, afirma o ex-diretor de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde, Expedito Luna, em entrevista ao GGN

Jornal GGN – Com Jair Bolsonaro no comando do governo federal, e Luiz Henrique Mandetta à frente do Ministério da Saúde, o Brasil adotou estratégias “erradas” no enfrentamento ao coronavírus logo no início da crise sanitária.

Sem motivo plausível, o governo simplesmente marginalizou a estrutura de vigilância epidemiológica instalada no País há 40 anos.

Hoje, há mais de 50 dias sem ministro da Saúde, o governo Bolsonaro segue sem orientar estados e municípios em um plano para rastrear, diagnosticar e isolar os casos de covid-19 e seus contatos, como fizeram os países que desempenharam bem na primeira onda e conseguiram afrouxar o isolamento social com margem de segurança.

Em vez de investir no controle das cadeias de transmissão do vírus, Mandetta optou por depositar todo o dinheiro na ponta, ou seja, na aquisição de itens de proteção, insumos e no aparelhamento do setor de alta complexidade – que, no contexto atual, demanda equipamentos caros e escassos no mercado, como os respiradores.

“Desde o início, a minha impressão é que as estratégias foram erradas. A pandemia foi subestimada. O Brasil teve dois meses para se preparar e aparentemente nada ou muito pouco foi feito”, diz ao GGN o epidemiologista Expedito José de Alburquerque Luna, ex-diretor do Departamento de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde no primeiro mandato do ex-presidente Lula.

Em entrevista exclusiva ao canal no Youtube, Luna apontou cidades brasileiras onde a estratégia de rastreamento das cadeias de transmissão tem sido bem sucedida. Para ele, esses exemplos precisam ser copiados porque, enquanto o País não tiver uma vacina ou medicamento eficaz contra a covid-19, reduzir o volume de casos por meio da vigilância epidemiológica é “algo que tem que ser feito”.

A entrevista foi concedida ao jornalista Luis Nassif, com participação da repórter do GGN Cintia Alves, na tarde desta quarta (8). Confira a íntegra no vídeo abaixo:

P: Como você vê a estratégia implementada na pandemia? Quais foram os principais erros?

R: Creio que fruto, possivelmente, desse negacionismo do governo federal, desde o início a minha impressão é que as estratégias foram erradas. Primeiro, a pandemia foi subestimada. Apesar de logo no início de fevereiro o Ministério da Saúde, ainda com o ministro Mandetta, ter declarado emergência em saúde pública, questões fundamentais como a disponibilização de insumos para realização de testes de diagnóstico não foram resolvidas. O Brasil teve dois meses para se preparar para isso e aparentemente nada ou muito pouco foi feito. 

Desde o início houve uma subestimação. Talvez se imaginasse que a doença se comportaria como a primeira SARS, a SARS de 2002. Não sei bem porquê razões, a equipe que estava lá subestimou a pandemia. Na sequência, em vez de se adotar estratégias para conter a transmissão, ou seja, fazer as ações tradicionais de vigilância epidemiológica, que é detectar precocemente os casos, fazer a busca desses casos, identificar os contatos, colocar esses contatos em quarentena e fazer o diagnóstico desses contatos, isso não foi feito. Lamentavelmente deixaram de aproveitar toda a experiência que o Brasil já tem em vigilância epidemiológica, e toda a rede do SUS, do programa de saúde da família, dos agentes comunitários da saúde, que já desenvolvem esse tipo de atividade, por exemplo, para os casos de tuberculose. Isso já é feito no Brasil, e não foi incorporado até agora como estratégia para a pandemia. Privilegiou-se equipar o setor que chamamos de alta complexidade, ou seja, as UTIs para o tratamento dos casos graves. Claro que isso tem que ser feito, mas não em detrimento das tentativas de controlar as cadeias de transmissão.

Outro problema é que, como o Ministério da Saúde abdicou de sua atribuição de liderar técnica e cientificamente esse processo, os estados se viram forçados a buscar o Supremo Tribunal Federal, que colocou sob responsabilidade deles a execução dessas medidas. 

Os estados e municípios brasileiros não tinham experiência de fazer compra em mercado internacional e isso gerou todo o problema na compra de equipamentos de alta complexidade e na compra também de insumos para diagnóstico. Como resultado nós temos, além da dificuldade de isso se realizar, tem a fragmentação das ações. Cada local do país adotando uma estratégia diferente. Evidentemente os estados mais ricos têm resultados melhores, e os outros, os mais pobres, com estrutura mais desorganizada, tiveram resultados piores, como em toda a região Norte e região amazônica.

P: Quer dizer que rastreamento e isolamento é uma estratégia usual para toda sorte de pandemias.

R: Sim, o Brasil faz isso de rotina na nossa vigilância epidemiológica. Nós fazemos isso para tuberculose, hanseníase, meningite, quase todas as doenças de notificação compulsória que implicam cadeias de transmissão de pessoa para pessoa. É uma herança dos anos 1970, quando nós passamos pelo vexame da epidemia de meningite. 

Para relembrar, nós tivemos uma grave epidemia de meningite meningocócica que começou em São Paulo e se espalhou para o Brasil inteiro. Na época, a ditadura militar considerou que a divulgação da epidemia era sinalizar o fracasso do governo deles. A divulgação foi censurada e isso agravou o problema. Somente quando a pandemia chegou na classe média e nos mais ricos é que se reconheceu que havia um problema e se foi buscar soluções. Dentre as soluções que surgiram foi a implementação do sistema de vigilância epidemiológica em base nacional. Essa tecnologia de identificar casos e buscar os contatos desses casos existe e está implantado no País há mais de 40 anos.

P: Por que não se adotou essa estratégia na pandemia de coronavírus? Foi um vacilo do Ministério da Saúde?

R: Desde o início isso causou estranheza. Aqui no próprio site do GGN tem falas do então ministro Mandetta, desconsiderando essa possibilidade, que seria impossível fazer isso em País do tamanho do Brasil. A China tem de 6 a 7 vezes a população do Brasil e fez. Tudo bem, a China tem um poder estatal mais rigoroso que o nosso. Mas nós temos também uma estrutura de saúde que não é desprezível. Não consigo entender essa opção. Creio que foi também pela subestimação do tamanho do problema que nós teríamos.

P: Essa estratégia de rastreamento usaria os agentes comunitários do programa Saúde da Família? Qual seria o nível de cobertura no território nacional?

R: Essa é uma possibilidade. Temos essa estrutura já implantada. Fazer uso dela é possibilidade. Hoje em dia, a pandemia avançou e os países que têm conseguido um sucesso no controle das cadeias de transmissão o têm feito utilizando meios eletrônicos também. São aplicativos que as pessoas baixam em seu celular e indicam por onde elas estão circulando e se estiveram próximos de alguém que teve diagnóstico de coronavírus. Isso tem sido usado na Coréia, Cingapura, Europa e até na Alemanha, que tem mais rigor com a privacidade das pessoas. Um comentário que ouvi que isso foi tentado no México e não deu certo porque o aplicativo do governo mexicano gerava muito gasto da bateria de celular e as pessoas de baixa renda não conseguiam mantê-lo. Creio que a gente poderia usar uma mistura das duas coisas, usar quando possível os meios eletrônicos e também essa rede de pessoas que são necessárias, porque você tem que chegar no indivíduo e convencê-lo a adotar o isolamento social e colher o exame para diagnóstico. 

P: Agora, com a pandemia fora de controle, essa estratégia pode ser retomada? Qual a dificuldade?

R: A dificuldade agora é maior porque você tem múltiplas cadeias de transmissão. Milhares de casos. A necessidade de recurso tecnológico e humano é muito maior do que se tivesse adotado essa estratégia no começo da pandemia, mas eu não vejo outra saída. Quer dizer, a continuar ainda sem termos vacina – e minha avaliação é de que não teremos vacina até o próximo ano, e UTI não controla epidemia -, é algo que tem que ser feito.

P: Quais são os indicadores que devem ser acompanhados para ter uma visão menos distorcida da realidade da pandemia?

R: O indicador principal para qualquer evento em saúde é a morte. Acompanhar os óbitos confirmados, que têm sido divulgados, e os suspeitos, que são os óbitos por síndrome respiratória aguda grave sem diagnóstico. Isso está sendo feito e nos permite ter dimensão da subnotificação.

P: Existem regiões no Brasil que têm utilizado a estratégia de vigilância epidemiológica de maneira exemplar? Se essa estratégia tivesse sido adotada em fevereiro, teríamos evitado a interiorização da pandemia no Brasil?

R: Evitado talvez não, mas minimizado. Sim, tenho conhecimento. Trabalho no Instituto de Medicina Tropical da USP. A equipe que faz o diagnóstico para o projeto de São Caetano do Sul (SP) trabalha na sala ao lado da minha. Essa é uma experiência, e temos também em Niterói (RJ) e em Florianópolis (SC). Esses exemplos mostram que isso é possível, que não é uma fantasia achar que a situação brasileira, a precariedade das nossas instituições de saúde impediriam que isso seria realizado. Esses exemplos reforçam que é possível, sim, fazer o rastreamento de casos e o controle das cadeias de transmissão a partir do diagnóstico e da conscientização das pessoas.

P: Por que a figura de um ministro que minimizava a doença paralisou toda a ação que poderia ter sido deflagrada?

R: O modelo de vigilância e controle de doenças no País acabou sendo um modelo centralizado. A parte de inteligência do modelo estava localizada no nível federal. poucos estados tinham capacidade autônoma de analisar dados e propor soluções. O estado de São Paulo sempre foi um estado com maior capacidade e os outros variam de gestão a gestão. Creio que a espera por uma condução federal acabou fazendo com que muitos estados… E muitos estados não tinham essa capacidade, tinham uma estrutura fragilizada de vigilância e controle de doenças, porque essa não é a área visível do SUS. A área visível são as filas em emergência e dificuldades de marcar a consulta. Quase sempre os gestores estaduais e municipais estão muito mais preocupados com a fila dos serviços do que com as ações de prevenção e controle. Elas só ganham visibilidade no momento das crises.

P: A estratégia de flexibilização adotada por alguns estados, que libera alguns municípios e outros não, sendo que não há fronteiras entre elas, isso tem alguma lógica ou é mais uma tentativa de reduzir pressões econômicas?

R: Creio que sim. As pressões econômicas são legítimas. Vivemos numa sociedade igual e as pessoas precisam ganhar seu sustento no dia a dia. Agora, achar que vamos controlar no município de São Paulo e não em Taboão da Serra, quando as pessoas pegam ônibus de uma cidade a outra, é estranho. Não faz muito sentido. Talvez, pensar em regiões maiores faça mais sentido. Dentro da região metropolitana, diferenciar os municípios não faz muito sentido.

P: Como tem visto a estratégia de enfrentamento à pandemia em São Paulo, sobretudo nas favelas?

R: Com toda a limitação que nós temos, é o que há de melhor no país. Ainda temos a disponibilidade maior [de hospitais] do que em comparação com demais estados brasileiros. Mas é uma coisa que por razões históricas e relacionadas às desigualdades sociais, que temos também os equipamentos de saúde não distribuídos de acordo com a população. Nas áreas centrais, onde moram, em geral, os mais favorecidos, tendem a ter mais serviços. Nas áreas periféricas há concentração menor não apenas de hospitais mas também de unidades básicas e de pronto atendimento. A distribuição é desigual e reflete a desigualdade social. Isso também fica evidente nas situações de crise.

P: É possível projetar até quando vai essa primeira onda da pandemia no Brasil?

P: Não tem como fazer essa projeção. Temos essa proporção alta [de casos] na região Norte, chegando a 25%, um quarto da população se infectou nessa primeira onda. Agora, a experiência do País é extremamente diversa. Até por conta dessa diversidade, outras ondas virão. Tem outro detalhe: todos os agentes infecciosos que transmite de pessoa a pessoa, todos esses agentes têm comportamento sazonal, ou seja, a transmissão aumenta no inverno porque as pessoas ficam mais confinadas em espaços fechado. Na região Norte, a gente vê que o pico de ocorrência da gripe é diferente, anterior, coincide com a estação de chuvas. Então coincidiu a entrada do corona com a estação favorável a ela na região Norte. E agora em São Paulo estamos vivendo a estação favorável da transmissão do vírus aqui. Isso tem que ser levado em consideração. 

Mas prever o que vai acontecer no futuro é muito arriscado, mas creio que o inquérito sorológico da Espanha está nos mostrando que uma parcela pequena da população se infectou. Isso nos mostra que a maior parte continua suscetível e, portanto, ou as medidas de distanciamento social terão de ser adotadas novamente no próximo outono/inverno, ou otimisticamente a gente tem uma vacina eficaz a ser usada.

P: Vendo o histórico até agora sobre as estratégias adotadas de forma dispare pelos estados, é possível estimar o período em que começa e termina uma onda?

R: Pegando carona no que acabei de falar, essas ondas tendem a se concentrar no inverno. Então eu pensaria, a exemplo dos outros agentes infecciosos respiratórios, que a gente vai ter um descenso no próximo verão para ter novamente um pico nesse mesmo período do próximo ano.

 

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