Heinz Dieterich sobre a Venezuela: “Claro que é um golpe de Estado”

“O perigo que vejo é o governo cair nas mãos de um grupo neoliberal inepto a serviço de Washington, liderado por Guaidó.”

por César Locatelli

A revista Carta Capital reproduziu da agência de notícias alemã Deutsche Welle, em 02 de fevereiro, uma entrevista com o sociólogo e economista alemão Heinz Dieterich, sob o título “Maduro se recusou a enxergar a realidade”.

O título transmite a impressão de que o único culpado pelas agruras do povo venezuelano é o atual presidente. A impressão fica mais forte se acrescentarmos que Dieterich tem posições de esquerda, conviveu longamente com Hugo Chávez e é o autor de Socialismo do Século XXI, obra que serviu de inspiração para Hugo Chávez

Ocorre, entretanto, que há uma segunda parte da entrevista, que traduzimos e publicamos na sequência. Dieterich denuncia que o que há hoje na Venezuela é, sem sombra de dúvidas, um golpe de Estado, que Washington confiscou os ativos da petroleira venezuelana, que o Banco da Inglaterra negou-se a entregar o ouro venezuelano lá depositado, que o direito internacional está sendo violado, que os impérios usam as leis somente quando lhes convém, que o ataque de Trump à América Latina é parte da luta dos EUA por manter a unipolaridade no mundo.

Compondo-se as duas partes da entrevista, conclui-se que Dieterich aponta erros de Maduro, mas não enxerga, como solução adequada, a entrega do poder a Guaidó, líder de um “grupo neoliberal inepto a serviço de Washington”.

Segue a entrevista de Heinz Dieterich à Deustche Welle:

O sociólogo e economista alemão Heinz Dieterich, ideólogo do Socialismo do Século XXI e ex-assessor do presidente venezuelano Hugo Chávez, adverte sobre os riscos de uma futura transição na Venezuela.

Nesta segunda parte da entrevista, o ideólogo de esquerda Heinz Dieterich fala sobre o papel da Forças Armadas e os desdobramentos imponderáveis de uma futura transição política pós-Maduro no país caribenho.

Quem determinará a transição na Venezuela?

DW: É plausível que surja uma ditadura militar?

Heinz Dieterich: Não há condições para uma ditadura militar. Nem os militares querem administrar um país que está destruído. É necessário um Plano Marshall com investimentos de algo como 6o bilhões de dólares para reconstruir o país. Terão que pedir mais sacrifícios da população e os militares não querem esse encargo. Além disso, eles estão desprestigiados e Washington também não quer que os militares governem o país.

Que modelo os Estados Unidos querem?

Embora o Exército seja o único aparato funcional e poderoso no atual sistema venezuelano, Washington quer um governo com uma fachada civil apoiada por certos setores das Forças Armadas. Ou seja, um governo civil, mas com uma mudança na correlação nas Forças Armadas para ter uma fração que lhes garanta o petróleo, a segurança interna e que a política “monroísta” na América Latina seja executada. Mas os EUA não querem pagar o custo político de entronizar um governo de uniforme. Isso não lhes convém, nem é necessário.

Há quem afirme que é um golpe de Estado orquestrado pelos Estados Unidos…

Claro que é um golpe de Estado. O Ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Paul Klimkin, reconheceu publicamente que é uma repetição da operação da Praça Maidan na Ucrânia, através da qual derrubaram o então presidente Viktor Yanukovych, que se refugiou na Rússia. Nessa operação na Ucrânia, como disse uma subsecretária de Estado dos EUA, Washington investiu 5 bilhões de dólares para criar as condições para mudar o governo, “mudança de regime”, como é chamada. A Associated Press revelou que Guaidó fez uma visita clandestina aos Estados Unidos, Brasil e Colômbia, onde concordaram com o plano de operações para este golpe de Estado. Washington acaba de confiscar todos os ativos da estatal petrolífera PDVSA.

Os ativos afetados por essas sanções chegariam a cerca de 7 bilhões de dólares?

Além disso, o Banco da Inglaterra se recusou a devolver o ouro venezuelano, cerca de 1,2 bilhão de dólares, que está em seus depósitos em Londres. Nada de legal existe para a política de Washington, de seus aliados europeus e do Japão. Não há mandato do Conselho de Segurança da ONU que possa ter permitido tal procedimento. O direito internacional e a arquitetura de segurança global após 1945 são absolutamente claros. Após a guerra de agressão de Hitler, de acordo com as Nações Unidas, não se pode usar a força de um Estado contra outro, mas que também é uma violação do direito internacional apenas ameaçar com o uso da força.

Mas temos visto um grande cinismo no Conselho de Segurança da ONU com relação à guerra na Síria e agora na Venezuela. Nas discussões recentes, a China e a Rússia chegaram a vetar o reconhecimento da Assembleia Nacional [Venezuelana] como uma instituição democraticamente eleita.

O problema da relação entre os estados atuais é que as grandes potências – que são basicamente quatro: a União Europeia, os Estados Unidos, a Rússia e a China – não precisam de lei para agir. O sistema mundial é um sistema social darwinista, onde rege a lei do mais forte. Há uma ideia que determina a prática de impérios, que atribuem a si o direito de determinar o que acontece em suas esferas de influência. Essa foi a Doutrina Monroe nos Estados Unidos no século XIX; mais tarde, Hitler reivindicou o direito dos nazistas de usá-lo para dominação regional na Europa. Todos os impérios agem dessa maneira e só usam o direito quando lhes convém. E, claro, seu principal objetivo é garantir seus interesses.

Enquanto Washington dominava o mundo, os norte-americanos podiam fazer as mudanças no governo na Ucrânia, no Iraque e agora na Venezuela. O que mudou é que a Rússia é militarmente muito mais forte que os Estados Unidos, com um avanço de até cerca de 15 anos em tecnologia militar, embora Washington não o reconheça. A China também é economicamente e militarmente tão poderosa quanto os Estados Unidos. Mas a elite em Washington acha que eles estão na mesma situação que em 1990, após o colapso da União Soviética, quando eles poderiam impor seus interesses sem consultar ninguém

Isso explica a retórica agressiva do presidente dos Estados Unidos?

Isso nos mantém permanentemente à beira de uma guerra nuclear, seja por Taiwan, seja pelo petróleo da Venezuela, seja pela Ucrânia. Washington ignora o direito internacional depois que eles próprios o conformaram em 1945. O que foi chamado de arquitetura de segurança jurídica e política, construída a partir de 1944-1945, não foi substituído por um novo conjunto de leis que permitem a coexistência pacífica. Estamos no fundo em uma situação de anarquia com novas potências emergentes como a Rússia e a China reclamando uma redefinição de convivência e coexistência dos Estados e Washington não aceita isso. É assim que estamos em uma época em que reina a lei dos mais fortes, o que é extremamente perigoso em tempos de armas nucleares.

Qual é o resultado esperado na Venezuela?

O perigo que vejo é o governo cair nas mãos de um grupo neoliberal inepto a serviço de Washington, liderado por Guaidó. Nenhuma das duas soluções (Guaidó ou Maduro) é o que o país precisa, mas essas são as duas forças que estão em luta. O que decidirá o futuro da Venezuela são as condições da transição após a saída de Maduro, que são negociáveis. Quem organizará as próximas eleições? Não pode ser o Instituto Nacional Eleitoral, que apoia Maduro, mas também não pode ser uma instituição dos vencedores. Quem será candidato em uma competição nacional limpa entre partes com suficiente substância democrática? Nada disso foi definido. Em que prazo a eleição será definida? Guaidó será o presidente interino por um ano ou dois, ou por três meses?

E quem pode garantir que não haverá um massacre como na Colômbia, onde sob o governo de Duque está se matando sistematicamente sindicalistas e ex-membros da guerrilha? Quem impede a sangrenta vingança dos novos no governo? Uma solução possível é o que foi feito na Nicarágua em 1989: a solução sandinista. Entrega-se o governo a Guaidó, que vai ganhar as eleições, mas as Forças Armadas e a polícia ficam sob o controle dos militares democráticos, aqueles que agora estão presos, como o general Raúl Isaías Baduel e o general Miguel Rodríguez Torres, entre outros. É a única garantia de que o país possa ser conduzido. Além de rancores, vinganças e ressentimentos, é necessário possibilitar uma reconstrução pacífica. Tudo isso tem que ser negociado.

Há também o tabuleiro internacional, com os interesses das grandes potências…

De um lado está Washington, com representantes locais, mas, por outro lado, está a China, que investiu cerca de 60 bilhões de dólares, a Rússia também investiu dezenas de bilhões e, claro, as forças chavistas e pró-democracia. Tudo isso tem que ser negociado e esse será o momento decisivo da situação na Venezuela. Quem determinará as condições de transição? Idealmente um grupo equilibrado de Nações Unidas, mas temos de ver se a correlação de forças permite isso ou se Washington vai tentar impor unilateralmente os seus interesses.

Nota: Para ver a entrevista de Heinz Dieterich, em espanhol:

https://www.dw.com/es/qui%C3%A9n-determinar%C3%A1-la-transici%C3%B3n-en-venezuela/a-47316800

 

Luis Nassif

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