“Hércules” de Eurípedes: o desprezo pelos tiranos, por Carlos Russo Jr.

Ao revisitarmos uma de suas mais importantes tragédias, “Hércules” ou “Héracles”, nos damos conta da correlação com os dias em que vivemos

do Espaço Literário Marcel Proust

“Hércules” de Eurípedes: o desprezo pelos tiranos

por Carlos Russo Jr.

O teatro trágico de Eurípides, em seu maior momento, reflete a desestruturação social pela qual passa a “polis” de Atenas e, com ela, a democracia grega.

Ao revisitarmos uma de suas mais importantes tragédias, “Hércules” ou “Héracles”, nos damos conta da correlação com os dias em que vivemos, quando junto à decadência civilizatória e ética, temos o do retorno de tiranos antes banidos do convívio social e, agora, aceitos como líderes por parcela significativa de sociedades social e politicamente desestruturadas.

Eurípedes nasceu na ilha de Salamina por volta de 485 a.C., época da gloriosa batalha naval travada no estreito da própria ilha, a qual livrou os gregos da segunda aventura do Império Persa, na tentativa de dominá-los pelas armas. Após a vitória sobre Xerxes, sucessor de Dario, a Atenas comandada por Péricles, assumiu a liderança do Peloponeso, exercendo um papel imperialista sobre as demais cidades gregas.

Como império a cidade de Atenas enriquece ao mesmo tempo em que vê crescer a perda dos valores éticos antes cultivados, assim como a decadência das virtudes cidadãs.

Sobre a vida do último dos grandes autores trágicos pouco se sabe, mas a crer nas paródias de cômicos como Aristófanes, Eurípedes preferia o recolhimento, o pensar e o saber às relações sociais mais amplas. Na maturidade, conviveu com a revolta das cidades gregas contra a Atenas imperial, dando origem à longa e destruidora guerra do Peloponeso, onde gregos enfrentavam outros gregos. Pois foi durante a guerra que o poeta escreveu a maior parte de suas peças teatrais, filhas do forte ceticismo do poeta e da sua ruptura tanto com as tradicionais crenças religiosas, com os valores da decadente democracia.

O extermínio que os atenienses realizaram ao derrotar os gregos da ilha de Melos foi a pedra de toque a partir do qual Eurípedes desenvolveu um forte espírito antibelicista, substrato de diversas de suas tragédias, onde os vencedores agressores (tal qual os atenienses), são os assassinos e os vencidos, os verdadeiros heróis na defesa da Pátria.

A tragédia expressa, agora em sua última fase, o pathos da condição humana, desligando-se da significação divina; o próprio viver torna-se confuso, ambíguo, inconstante. Os heróis se aproximam da realidade humana, suas limitações, vícios, maldades e virtudes.

O público, que um dia aplaudira no teatro a política guerreira e imperialista de Atenas, após a derrota dos atenienses na Sicília, começaria a sofrer na própria pele a amargura que os vencidos nas lutas mitológicas “sofreram” e que haviam sido espelhados nas obras de Eurípedes.

Eurípedes transmite à polis a mensagem de que os tiranos são bárbaros, maus e tratam os homens como escravos. Não constituem solução para a decadência da pólis, da democracia.

Finalmente, quando a desgastada Atenas é derrotada por tropas gregas aliadas aos espartanos, tem extinta sua democracia e passa a ser governada por um grupo denominado de “Trinta Tiranos”.

A tragédia “Hércules” simboliza um mundo em ruínas, onde os golpes da sorte e o acaso fraturam a ordem estabelecida.

Ele pouco lembra o herói da tradição mitológica que com seus trabalhos tornara o mundo mais habitável. Agora ele é um homem livre, não subjugado pelos deuses, retornando para uma vida familiar ansiosamente esperada, junto ao pai, esposa e filhos. No entanto, entre Hércules e sua família interpõe-se Lico, o tirano Tebano, assassino do pai de Mégara, esposa do herói ausente. Lico, que crendo estar Hércules morto, decide-se por eliminar toda a família do herói, ou seja, todos aqueles que poderiam um dia, despojá-lo do trono que usurpara.

Como todos os Tiranos, Lico não conhece limites e possui a empáfia tradicional dos hoplitas, militares de posses aristocratas, que desprezam o “populacho”.

Anfitrião, pai do Hércules ausente, defende a “arete”, a honra do filho contra as infâmias do tirano. Relata alguma das façanhas do filho e diz que “o hoplita é um homem escravo das armas, somente pode subsistir ao combate em formação unida de companheiros, em seus esquadrões militares; já o arqueiro, tal qual Hércules, seu filho. posto à distância resguarda da morte a si e aos outros”. Hércules utiliza as mesmas armas dos inimigos “populares” do tirano.

Enfrentando cara a cara o tirano Lico (que significa lobo, aquele que ataca à traição em grego), Anfitrião ainda diz: “Na luta, o mais sábio é fazer mal aos inimigos sem escudar-se na “tické”, na sorte… Teu desejo de matar-nos é filho de tua covardia e eu a entendo, pois os filhos de Hércules possuem os mesmos olhos de Górgona, onde tu vês espelhar tua própria morte no futuro… Mas se desejas merecer o cetro que ora deténs, deixa-nos partir”.

Dirige-se, então, ao Coro, o qual representa o povo tebano, em pedido de solidariedade. A soberba e a brutalidade de Lico tenta impedir os velhos anciãos de se manifestarem e os ameaça: “Recordeis que sois escravos de minha tirania”.

Ordena, então, que tragam madeira e que queimem toda a família de Hércules no próprio altar de Zeus, onde eles haviam buscado refúgio. Que mostra maior de que aos tiranos somente lhes importa a religiosidade quando lhes propiciam o poder!

Anfitrião somente pode aconselhar que “prolonguem o tempo de vida, já que todos os humanos são frágeis… afinal, a luz me é cara e amo a esperança”. Responde-lhe Mégara, esposa de Hércules: “A mim também, velho, mas como esperar o inesperado?”. Anfitrião: “No adiamento dos males há sempre alívio… o melhor homem é aquele que sempre na esperança confia: o desesperar é próprio do imprudente.”

Como veremos ao final da tragédia, ao contrário do raciocínio do velho Anfitrião, mesmo a esperança carece de sentido no caos da sociedade desestruturada, dado que fatores imprevisíveis e atilados com o acaso comandam o resultado das ações humanas.

O Coro dos anciãos tebanos responde à altura ao tirano brutal: “Nunca me dominarás impunemente, nem obterás o que consegui com esforço e fadiga. Volta para o lugar de onde vieste (Lico é estrangeiro em Tebas) e lá pratiques as tuas desmedidas. Enquanto eu viver não matarás os filhos de Hércules… Ó destra mão, como desejaria empunhar a forte lança e não chamarias escravos a homens livres… Não é sensata uma cidade enferma por ausência de rebeliões e de más decisões, ou jamais teria te recebido como déspota”.

Enquanto isso, Hércules, o herói que descera ao Hades para de lá retirar o cão Cérbero, retorna a tempo de salvar a própria família. Mégara e Anfitrião vêm sua aproximação e saúdam-no como a um salvador.

Hércules, ao tomar pé da situação pergunta onde estariam a deusa Decência e seus amigos e como resposta obtém dos cidadãos do Coral: “Eles (os déspotas) vivem longe desta deusa e a má sorte não tem amigos”.

A primeira reação de Hércules é selvagem: quer destruir o palácio do tirano e seus familiares, “arrancar a ímpia cabeça e lançá-la aos cães”; “outros dilacerarei com minhas flechas, e encherei os rios de cadáveres”. Mas o ponderado pai lhe recomenda: “É da natureza, filho, amar os amigos e odiar os inimigos, mas não sejas tão apressado”.

E fornece a chave de como Lico fora vitorioso e destruíra o rei Creonte, inspirado pela inveja: “Muitos pobres têm o tirano como aliado, pois quando se revoltaram o fizeram para pilhar seus vizinhos mais ricos; mas seus bens foram gastos e evaporaram-se pelo ócio”.

Pede que o filho ali permaneça, pois Lico não tardará a vir executar a sentença de morte que terminará numa peripécia, sendo a sua própria. Lico ao chegar é atacado e destruído por Hércules.

Estando o tirano morto, o Coro, representando a população tebana, começa suas danças: “Foi-se o novo rei, o antigo domina, a esperança voltou”. “Ninguém suporta olhar o tempo futuro; ao abandonar a lei e favorecer aquilo que é ilegal, rompe-se o obscuro laço da felicidade.”

No momento seguinte, o Coro transtorna-se; evapora-se a alegria e um pavoroso espectro é visto rondando o palácio. Trata-se de Íris, a mensageira dos deuses, acompanhada de Lissa, a loucura. Dirigindo-se ao coro, diz ao que veio: “Agora que Hércules terminou seus os trabalhos, Hera quer atá-lo à derrama do sangue familiar através do assassinato dos próprios filhos e o mesmo o quero eu.”

Íris ordena à indecisa Lissa que derrame sobre Hércules a loucura puericida, ou “os deuses de nada valerão e grandes serão os mortais, caso Héracles não seja punido” ( por suas desmedidas que o aproximavam dos próprios deuses). Como Lissa vacila, pois não lhe agrada visitar homens amigos, ou seja, homens lúcidos, Íris deixa claro que a esposa de Zeus nunca envia “a loucura aos homens para que ela seja sensata”.

Lissa toma Apolo por testemunha de que fará o que não deseja e sentencia: “Hércules ao matar os filhos nada saberá, ficará em delírio até livrar-se de meu furor”. E passa a descrever a reação de loucura que acomete o herói: “Sacode a cabeça, gira as pupilas onde se reflete o olhar da morte, não controla a respiração, muge”.

A tarefa de Íris será cumprida. O Coro está fora do palácio onde Hércules caça seus próprios filhos e sua mulher. No delírio em que entra, Hércules confundirá seus filhos com os de Euristeu, o meio-irmão- inimigo, às ordens de quem tornara o mundo mais habitável. Hércules, afinal, trucida sua mulher e os próprios filhos. Do massacre salva-se, tão somente, o infeliz pai.

Temos, então, o herói vivente que livrara a terra dos piores monstros, mas que ao se transformar no assassino da própria família, torna-se um avatar dos monstros irracionais que ele mesmo combatera. E, ao final do massacre, o herói está destruído; nem mesmo o consolo na própria morte, por suas mãos manchadas com o sangue familiar, ele consegue perpetrar.

Então Eurípides coloca Teseu, rei de Atenas, como um deus ex-machine em cena.Toda a peripécia é contada por Anfitrião, o pai de Hércules, ao amigo Teseu. E o rei de Atenas mitológica, Teseu, odeia aqueles que apenas são amigos na bonança. Estende sua mão fraterna ao herói destroçado e diz “quem é nobre dentre os mortais suporta o que vem dos deuses e não o rejeita”.

Depois de todos seus feitos, por ter na loucura realizado a matança dos filhos, Hércules não pode habitar Tebas, tão pouco pode ir a Argos ou estar entre amigos… “Para um homem outrora ditoso, são aflitivas as mudanças; já para aquele que esteve sempre mal, este nada sofre: é infeliz de berço”. E se questiona com ímpeto suicida: “Por que terei que viver uma vida ímpia e inútil?”

Mas a firme amizade acena para o antigo herói psiquicamente destruído com a continuidade da vida. Teseu: “Acompanha-me à cidade de Atenas onde te purificarei e compartilharei contigo tudo o que possuo… Quando morrerdes e fores ao Hades, toda Atenas te honrará com sacrifícios e monumentos… Agora tu precisas, como nunca, de amigos”.

Os deuses, em Eurípedes, deixaram de proporcionar harmonia ao mundo dos mortais; existem, mas num mundo que lhes é próprio, em que “nada lhes falta”. Todo o demais “são contos dos poetas”, pois mais vale a phylia, a amizade aparadora das desditas humanas, que a crença religiosa.

O mundo, reflexo do momento de desagregação social, já não comporta grandes reis, e heróis. Muito menos, Tiranos. O caos, a incerteza, a instabilidade e imprevisibilidade da sorte se instalaram no universo que, outros antes dele acreditavam unificado e harmonioso, e este, é um espelho de nosso mundo desestruturado.

São somente os tiranos que prestam juras e homenagens a conceitos religiosos degradados, na medida em que estes se prestam apenas aos interesses da dominação mais brutal da sociedade.

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Redação

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