Marilena Chauí: Para Onde Vai A Classe Trabalhadora?

Exclusivo: Marilena Chaui fala da Nova Classe Trabalhadora
 


No início desta semana a filósofa Marilena Chaui foi convidada, juntamente com o ex-chanceler Celso Amorim, para fazer uma exposição para lideranças sociais e populares de esquerda em São Paulo. A pedido de Nocaute, a professora autorizou a publicação dos apontamentos que orientaram sua fala. A eles, Marilena Chaui acrescentou um texto adicional sobre a classe trabalhadora e a classe média.

Por Nocaute em 05 de dezembro às 18h31
Apontamentos sobre a Nova Classe Trabalhadora

Marilena Chaui*

(Dezembro de 2017)

Tópicos sobre a conjuntura

Vocês verão que não fiz menção à economia porque sou totalmente ignorante nisso. Dei ênfase à política e à ideologia. Para facilitar a exposição e torná-la mais enxuta, fiz alguns tópicos com a finalidade de abrir o debate. No final, coloquei um texto mais longo sobre a nova classe trabalhadora e sobre a classe média (e que lerei para ir mais rápido).

1. Desinstitucionalização da República

– Interferência recíproca dos três poderes; nenhum com autonomia e nenhum com hegemonia [a expressão “judicialização da política” não recobre realmente o que se passa, pois não há hegemonia do judiciário].

– Finalidade: desmonte do Estado – sob a aparência de moralizar a política, realiza-se a desmoralização do Estado

– Instrumento: Operação Lava Jato

2. Desmonte neoliberal do Estado

– O aparecimento da figura do governante como gestor: a empresa privada se torna o modelo da política; donde a privatização dos direitos sociais transformados em serviços privados que se compra e vende no mercado {Prova: os 50 projetos de lei contra todos os direitos sociais]

– As ações públicas assumem a forma militar de operações, isto é, ações pontuais ou circunscritas e de curta duração [O modelo adotado no Brasil se inspira no novo formato da política imperialista dos USA: em lugar da tomada de um país como colônia, têm-se a ocupação militar e econômica de um território delimitado no espaço e por um prazo limitado. Isto é, feita a exploração econômica, o território devastado é abandonado].

Exemplos de operações em curso no Brasil:

Lava a Jato

Governo Temer (do qual se diz que “tem prazo de validade”, como toda operação)

Cortes nos orçamentos dos projetos militares de ponta; Base de Alcântara

Destruição da Petrobrás como empresa estatal

Repentino conflito com a OMC em programas de autonomia econômica e tecnológica.

Etc. A lista é grande porque é a marca registrada do política neste momento.

3. Cenário eleitoral

– A função de Aloysio Nunes (sob aparente oposição de uma parte do PSDB) é garantir o processo político neoliberal posto em andamento por Temer de maneira a garantir um solo seguro para o projeto de governo do PSDB [ver o projeto e programa, escrito por Bolívar Lamounier e Edmar Bacha, sob a orientação de Meirelles]. Aposta do PSDB: a polarização entre esquerda e extrema direita resultará em voto de centro. Modelo de campanha eleitoral do PSDB: Macron (França) e Trump (USA).

– PSDB e evangélicos: preparam a hegemonia no congresso (maioria na Câmara e no Senado), que será essencial em vista do sistema partidário que impede que o eleito para o poder executivo tenha maioria no parlamento, sendo forçado à negociação e, como vimos com o golpe, podendo ser impedido de governar

– A polarização difundida pela mídia constrói três pólos igualmente problemáticos porque se colocam contra a política propriamente dita: Lula como salvador popular; Bolsonaro como portador da ordem e da segurança; Alckmin como gestor competente;

– Riscos: a) não haver eleições; b) a condenação de Lula sair em agosto ou setembro; c) a esperança popular em Lula como um salvador não pode ser frustrada pela ruína que ele encontrará e pela possível hegemonia do congresso pelo PSDB e evangélicos, que tentarão impedi-lo de governar.

4. Ideologia

A nova classe trabalhadora brasileira

Pesquisas e análises mostram que, graças aos governos do PT, houve uma mudança profunda na composição da sociedade brasileira, em decorrência dos programas governamentais de transferência da renda, inclusão social e erradicação da pobreza, à política econômica de emprego e de elevação do salário mínimo, à recuperação de parte dos direitos sociais das classes populares (sobretudo relativos a alimentação, saúde, educação e moradia), à articulação entre esses programas e o princípio do desenvolvimento sustentável e aos primeiros passos de uma reforma agrária que permitiria às populações do campo não recorrer à migração forçada em direção aos centros urbanos.

De modo geral, utilizando a classificação dos institutos de pesquisa de mercado (marketing) e da sociologia norte-americana, costuma-se organizar a sociedade numa pirâmide dividida em classes designadas como A, B, C, D e E. Os critérios para essa divisão são a renda, a propriedade de bens imóveis e móveis, a escolaridade, a ocupação ou profissão exercida e o padrão de consumo. Por esses critérios, chegou-se à conclusão de que, entre 2003 e 2015, as classes D e E diminuíram consideravelmente, passando de 96,2 milhões de pessoas para 63,5 milhões. No topo da pirâmide, houve crescimento das classes A e B, que passaram de 13,3 milhões de pessoas para 22,5 milhões. Mas a expansão verdadeiramente espetacular ocorreu na classe C, que passou de 65,8 milhões de pessoas para 105,4 milhões. Essa expansão levou à afirmação de que a classe média brasileira cresceu, ou melhor: de que teria surgido uma nova classe média no país. [Evidentemente, esses números devem ter sofrido enorme mudança no correr de 2017, mas não tenho dados].

Pensamos, entretanto, que a novidade não é esta e sim que há no Brasil uma nova classe trabalhadora, cuja composição, forma de inserção econômica e social, formas de expressão pública e de consciência permanecem ainda muito difíceis de apreender e compreender, mesmo com o auxílio do conceito de Paul Singer de sub-proletariado ou o de precariado, proposto por alguns cientistas sociais.

Nossa afirmação sobre a existência de uma nova classe trabalhadora se baseia numa outra maneira de definir uma classe social.

Tomemos um exemplo que ajudará a compreender o que queremos dizer. Se, numa aula de matemática, perguntarmos a um aluno do Ensino Médio o que é um círculo ele responderá: é a figura geométrica na qual todos os pontos são eqüidistantes do centro. Ora, um matemático explicará que isso é a apresentação de uma característica do círculo, e não a definição do círculo. Por quê? Uma definição só nos diz o que uma coisa é se nos mostrar a causa que faz com essa coisa exista e seja como é. Assim, a verdadeira definição do círculo é: a figura geométrica produzida pelo movimento de um semi-eixo ao redor de um centro fixo.

Da mesma maneira, definir uma classe social por renda, profissão, escolaridade e consumo não a define, mas apenas apresenta características que ela possui. Definir uma classe social exige que encontremos a causa que a faz existir. A causa da existência de uma classe social é a forma da propriedade e a maneira como ela se insere no sistema produtivo de uma sociedade.

No modo de produção capitalista, a propriedade privada dos meios sociais de produção (capital produtivo e capital financeiro) é a causa que define a classe dominante; por sua vez, a classe trabalhadora é definida pela propriedade da força de trabalho, vendida e comprada sob a forma de salário. Entre os dois pólos que definem o núcleo central do modo de produção capitalista, existe uma classe social que não é proprietária privada dos meios sociais de produção nem da força de trabalho que produz capital, e se define como proprietária privada de bens móveis e imóveis, situando-se nas profissões liberais, na burocracia estatal (ou no funcionalismo dos serviços públicos), na pequena propriedade fundiária e no pequeno comércio.

Dessa maneira, no caso do Brasil, se considerarmos as pesquisas que mencionamos e os números que elas apresentam relativos à diminuição e ao aumento do contingente demográfico nas três classes sociais e se, por outro lado, levarmos em conta as grandes transformações do modo de produção capitalista com o neoliberalismo e a globalização, poderemos formular algumas ideias sobre nossas classes sociais e, particularmente, sobre a nova classe trabalhadora:

1. Os projetos e programas de transferência de renda e garantia de direitos sociais (educação, saúde, moradia, alimentação) e econômicos (Bolsa Família; aumento real do salário mínimo; políticas de emprego; salário-desemprego; reforma agrária; cooperativas de economia solidária etc.) indicam que o que cresceu no Brasil foi a classe trabalhadora, cuja composição é complexa, heterogênea e não se limita aos operários industriais e agrícolas “tradicionais”;

2. O critério dos serviços como definidor da classe média não se aplica a todos os serviços, pois, com a desativação do modelo de produção industrial de tipo fordista, grande parte dos serviços que faziam parte da planta industrial foram terceirizados, mas continuam articulados à produção industrial e são dela um ramo, embora pareçam ser empresas autônomas; além disso, as condições tecnológicas exigidas por esses serviços indicam que o mero critério da escolaridade não pode servir para colocar esses trabalhadores como membros da classe média;

3. O critério da profissão liberal também se tornou problemático para definir a classe média, uma vez que a nova forma do capital levou à formação e à ampliação de empresas de saúde, advocacia, educação, comunicação, alimentação etc., de maneira que seus componentes se dividem entre proprietários privados e assalariados e estes, apesar de seus diplomas de escolaridade, sua renda e sua forma de consumo, devem ser considerados forças produtivas assalariadas e, portanto, colocados na nova classe trabalhadora mundial;

4. A figura da pequena propriedade familiar também não é critério para definir a classe média, porque a economia neoliberal, ao fragmentar e terceirizar o trabalho produtivo em milhares de micro-empresas (grande parte delas familiares) dependentes do capital transnacional, transformou esses pequenos empresários em força produtiva que, juntamente com os prestadores individuais de serviços (seja na condição de trabalhadores “precários”, seja na condição de trabalhadores informais), é dirigida e dominada pelos oligopólios multinacionais; em suma, os transformou numa parte da nova classe trabalhadora mundial.

Restaram, portanto, como espaços para alocar a classe média, as burocracias estatal e empresarial, os serviços públicos, a pequena propriedade fundiária, o pequeno comércio não filiado às grandes redes de oligopólios transnacionais e os profissionais liberais ainda não assalariados. No Brasil, essa classe se beneficiou com as políticas econômicas dos governos petistas, cresceu e prosperou, mas, conforme as pesquisas mencionadas, não no mesmo grau nem na mesma intensidade que a classe trabalhadora.

O que sabemos efetivamente dessa nova classe trabalhadora?

Assim, quando dizemos que se trata de uma nova classe trabalhadora, consideramos que a novidade não se encontra apenas nos efeitos das políticas sociais e econômicas dos governos petistas, mas também nos dois elementos trazidos pelo neoliberalismo, quais sejam: de um lado, a fragmentação, terceirização e precarização do trabalho e, de outro, a incorporação à classe trabalhadora de segmentos sociais que, nas formas anteriores do capitalismo, teriam pertencido à classe média.

Donde uma pergunta: o que sabemos efetivamente dessa nova classe trabalhadora? Resposta: quase nada.

Uma classe social não é um dado fixo, definido apenas pelas determinações econômicas, mas um sujeito social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta a si mesma e se transforma por meio da luta de classes. Ela é uma práxis, um fazer histórico. Se é nisso que reside a possibilidade transformadora da classe trabalhadora, é nisso também que reside a possibilidade do ocultamento de seu ser verdadeiro e o risco de sua absorção ideológica pela classe dominante, sendo o primeiro sinal desse risco justamente a difusão de que há uma nova classe média no Brasil. E é exatamente por isso também que a classe média coloca uma questão política de enorme relevância para nós, como atesta sua participação majoritária nas manifestações de 2016 em favor do golpe do Estado.

Estando fora do núcleo econômico definidor do capitalismo, a classe média encontra-se também fora do núcleo do poder político: ela não detém o poder do Estado (que pertence à classe dominante) nem o poder social da classe trabalhadora organizada. Isso a coloca numa posição que a define não somente por sua posição econômica e política, mas também e sobretudo por seu lugar ideológico – e este tende a ser contraditório.

De fato, essa contradição se explica pela posição da classe média no sistema social, posição que a faz ser fragmentada, raramente encontrando um interesse comum que a unifique. Todavia, certos setores – como é o caso, por exemplo, de estudantes, professores, setores do funcionalismo público, intelectuais, lideranças religiosas – tendem a ser organizar e a se opor à classe dominante em nome da justiça social, colocando-se na defesa dos interesses e direitos dos excluídos, dos espoliados, dos oprimidos; numa palavra, tendem para a esquerda e, via de regra, para a extrema esquerda e o voluntarismo. No entanto, essa configuração é contrabalançada por outra, exatamente oposta. Fragmentada, perpassada pelo individualismo competitivo, desprovida de um referencial social e econômico sólido e claro, a classe média tende a vivenciar a experiência de um tempo descontínuo, volátil e efêmero e procura, por meio do imaginário da ordem e da segurança, algo que introduziria permanência temporal e espacial.

O sonho e o pesadelo da classe média

Esse desejo e ordem e segurança também surge porque, em decorrência de sua fragmentação e de sua instabilidade, o imaginário da classe média é povoado por um sonho e por um pesadelo: seu sonho é tornar-se parte da classe dominante; seu pesadelo, tornar-se proletária. Para que o sonho se realize e o pesadelo não se concretize, é preciso ordem e segurança. Isso torna a classe média ideologicamente conservadora e reacionária, e seu papel social e político é assegurar a hegemonia ideológica da classe dominante. No caso do Brasil, o sonho (e o pesadelo) se exprime pela busca de prestígio e de signos de prestígio, como por exemplo, os diplomas e os títulos vindos das profissões liberais, e pelo consumo de serviços e objetos indicadores de autoridade, riqueza, abundância, ascensão social – o apartamento no “bairro nobre” com quatro “suítes”, o carro importado, a roupa de marca, o número de serviçais etc. Em outras palavras, o consumo lhe aparece como ascensão social em direção à classe dominante e como distância intransponível entre ela e a classe trabalhadora.

No caso da classe média brasileira, também não podemos deixar de mencionar, além das características gerais dessa classe, que ela é determinada pela estrutura autoritária da sociedade brasileira, marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o espaço público e fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: em nossa sociedade, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece; as diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência, e as desigualdades são naturalizadas, reforçando preconceitos e exclusões. As relações entre os que se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e com os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação; quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão, de sorte que a divisão social das classes é sobre-determinada pela polarização entre a carência (das classes populares) e o privilégio (da classe dominante).

A classe média brasileira não só incorpora e propaga ideologicamente as formas autoritárias das relações sociais, como também incorpora e propaga a naturalização e valorização positiva da fragmentação e dispersão socioeconômica, trazidas pela economia neoliberal e defendidas ideologicamente pelo estímulo ao individualismo competitivo agressivo e ao sucesso a qualquer preço por meio da astúcia para operar com os procedimentos do mercado, embora dê aparência de alta moralidade, chamando a competição individualista agressiva e o sucesso com o nome de meritocracia.

E é nisto que reside o problema da absorção ideológica da nova classe trabalhadora brasileira pelo imaginário de classe média, absorção que atualmente, no Brasil, se manifesta na disputa entre duas formulações ideológicas que enfatizam a individualidade bem-sucedida: a “teologia da prosperidade”, do pentecostalismo, e a “ideologia do empreendorismo”, da classe média neoliberal, ou o célebre “empresário de si mesmo”. Em outras palavras, visto que a nova classe trabalhadora brasileira se constituiu no interior do momento neoliberal do capitalismo, nada impede que, não tendo ainda criado formas de organização e de expressão pública, ela se torne propensa a aderir ao individualismo competitivo e agressivo difundido pela classe média. E ela própria é levada a acreditar que faz parte de uma nova classe média brasileira.

Essa crença é reforçada por sua entrada no consumo de massa. De fato, Esta, por sua vez, ao ter acesso ao consumo de massa, tende a tomar esse imaginário por realidade e a aderir a ele.

Donde uma nova pergunta: se, pelas condições atuais de sua formação, a nova classe trabalhadora brasileira está cercada por todos os lados pelos valores e símbolos neoliberais difundidos pela classe média, como desatar esse nó?

(*) Professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Marilena Chaui é especialista na obra de Baruch Espinoza. É considerada a filósofa mais importante do Brasil.

    

Redação

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