Por Sergio Saraiva
E chegou aos Seus ouvidos que ao pássaro expiatório era dedicado amor.
Encolerizou-se o Senhor.
O pássaro expiatório, por óbvio e função, não existe para ser amado.
Não trata-se do cordeiro de Deus, cujo sangue em sacrifício retira os pecados do mundo.
Não. O pássaro expiatório deve ser e permanecer o símbolo do pecado do mundo. Deve ser, aos olhos do homem, a mácula indelével que o lembre, a cada dia, dos seus próprios pecados e da punição consequente.
O amor redime e o pássaro expiatório não pode ser redimido.
Ao pássaro expiatório havia o Conselho dos 11 Sábios, os guardiões da Lei, condenado a voar durante o dia para lembrar aos homens o valor da liberdade e a grandeza do Conselho que a permite mesmo aos não livres. Mas ser engaiolado a cada noite para igualmente lembrar ao homem da fragilidade dessa liberdade e do poder do Conselho dos 11 Sábios em retira-la dos desobedientes.
Ai do homem livre que atentasse contra as leis ou contra o pudor.
Ocorre que as bocas da delação fizeram chegar aos Seus ouvidos que uma linda jovem amava por demais o pássaro expiatório e que, estando esse engaiolado, abrira-lhe, sem autorização, por instantes a prisão e o tomara entre os dedos. Após um terno beijo filial, recolocara-o na gaiola, fechara a portinhola e se retirara.
Havia os olhos vigilantes dos patrulheiros voluntários da moral, e eles estavam atentos. Viram esses olhos que a jovem fora ajudada furtivamente por guardas que, inversamente, lá estavam para impedir qualquer contato com o pássaro aprisionado.
O coração da Guarda havia se enternecido pelo amor da jovem pelo pássaro expiatório.
Teve então o Senhor a prova da qual necessitava, o amor a tudo degrada. O poder e a ordem são inimigos do amor. O amor é terrorista.
Determinou o Senhor que não mais o pássaro voaria. Nem com o sol nem com a lua. Passaria, dali para frente, os dias enclausurado. E assim permaneceria enquanto durasse Sua ira eterna.
O amor da jovem havia desafiado o Seu poder e sem o Seu poder não haveria a ordem. Deveria, então, o amor ser punido punindo-se o ser amado, de tal sorte que, quanto maior fosse o amor, maior seria a punição.
Mesmo o amor dever ser reverente e subalterno ao poder e a ordem. Mesmo o amor necessita de autorização superior.
Decretou-se oficialmente a danação do pássaro expiatório. E fez-se o decreto ser sabido de todos os homens.
Perguntaram ao Senhor se o Conselho dos 11 Sábios não deveria ser consultado antes de tal alteração daquilo que o próprio Conselho havia decidido. Mas disse o Senhor: Eu presido o Conselho, logo, como o Conselho me afrontaria com decisão diferente da que já tomei?
Lembraram ao Senhor que a jurisprudência e a doutrina eram valorizadas pelos homens livres, davam-lhes segurança. E a jurisprudência e a doutrina não recomendavam o engaiolamento perpétuo do pássaro expiatório. Respondeu o Senhor: Eu sou a decisão da qual nasce a jurisprudência. O Meu entendimento é a exegese e a hermenêutica. Eu sou a fonte do saber que faz a doutrina.
Alertaram, então, ao Senhor que outros pássaros, alguns de belas e coloridas plumas, mas a maioria pardais, também eram pecadores e também gozavam do voar diurno e penavam a gaiola noturna. Esses também eram secretamente amados pelos que lhes eram caros. Engaiolar o pássaro expiatório poderia levar a necessidade engaiolar a todos os outros pássaros.
Isso pouco me importa, bradou o Senhor. Minha ira é a santa ira, ela mantém a unidade do povo e a linha reta a ser seguida. Portanto, deve ser terrível, para não ser desafiada. Se para punir um, for necessário punir quinhentos, que assim se faça, determinou.
Desesperam-se os carcereiros, como obter de pronto tantas gaiolas, como conviver com o montante de dor que o cumprimento da ordem traria?
Magnânimo, o Senhor concedeu: perdoo a todos os outros, o pássaro expiatório expiará os demais.
Indagaram-se, então, por ciosos que são, aqueles aos quais cabia cumprir a ordem: se a Justiça se aplica a um, mas não se aplica aos demais que lhe são iguais, ainda assim é Justiça?
Eu sou a Justiça, finalizou o Senhor.
E cumpriu-se a danação do pássaro expiatório.
Obs.: publicado originalmente em maio de 2014.
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